Zezinho, profissão: sineiro

O clima é semi-árido. A vegetação lembra a da caatinga. Encravada entre a Serra do Espinhaço e a margem esquerda do Rio Capivari, em pleno Vale do Jequitinhonha, está a segunda cidade mais pobre de Minas Gerais. Antigo quilombo de negros fugidos de Diamantina, Chapada do Norte tem uma população de 15 mil habitantes, que vive basicamente de programas assistenciais, pensões por aposentadoria e do dinheiro mandado por quem saiu – boa parte dos homens foi trabalhar no corte de cana no interior de São Paulo.

Apesar disso, é uma das regiões culturalmente mais ricas do País, que preserva intactas manifestações artísticas típicas da população de origem africana. Cerca de 80% dos habitantes do município têm essa ascendência. É a terra de personagens fantásticos, como o sineiro Zezinho – o Quasímodo brasileiro -, que tem desde criança a função de chamar os fiéis para as missas, batizados, enterros e festejos religiosos.
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Festividades como a de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos acontecem no lugar há pelo menos 200 anos e sua história remete a uma lenda: em certa época a santa apareceu sob as águas do mar. Imediatamente, os caboclos, já devotos da virgem, por meio da catequese dos jesuítas, rezaram e dançaram, ao som de seus batuques, para que ela viesse até eles. Mas ela não veio.

Em seguida, os marujos, também devotos, fizeram a sua tentativa de trazer a Virgem do Rosário até eles. Realizaram suas danças e tocaram suas músicas, mas também não conseguiram trazê-la. Por fim, vieram até a praia os negros, ou catopês, como são chamados nesta região os de origem africana. Após louvarem a santa, ela veio até eles.

Por isto se diz que ela é a protetora dos negros e sua reverência – em forma de festa – é um modo de aliviar os sofrimentos infligidos pelos brancos.

Com seus congados, pastorinhas e encenações da luta entre mouros e cristãos – que buscam recuperar a bandeira da Virgem do Rosário, roubada pelos “inimigos” – a festa toma conta de Chapada do Norte uma vez por ano, no mês de outubro. O sineiro Zezinho, ou José Aparecido Carvalho, 40 anos, é figura central nesta comemoração religiosa.

Vestido com a opa – espécie de capa sem mangas, usada pelas confrarias e irmandades religiosas -, ele acorda ainda de madrugada para chamar para a primeira missa. Como no clássico de Victor Hugo, em que o sineiro Quasímodo gastava a vida badalando o sino da catedral de Notre Dame, Zezinho dirige-se para a Capela do Rosário, pendura-se no antigo badalo e com os olhos marejados de emoção acorda a população da pequena cidade para a primeira oração do dia, às seis da manhã.

Ao perceber que está sendo fotografado por Brasileiros, Zezinho, meio vaidoso, meio preocupado, pergunta: “A Irmandade sabe que vou aparecer na revista?” Com a resposta afirmativa, mira a lente do fotógrafo, compenetra-se e esboça um ar de seriedade. Na missa, durante o ofertório, mostra novamente eficiência e apressa-se em pegar a cesta e recolher as minguadas oferendas dos humildes fiéis.

“Desde pequeno o Zezinho chorava porque queria ir à igreja”, conta sua mãe, Nilza Carvalho. “Ele foi criado junto com padre e sua maior diversão, além de tocar o sino, é visitar gente doente pelas comunidades rurais. Até em caso de morte, quando tem que tocar o sino dobrado, ele faz o serviço compenetrado. Mas a maior alegria dele é mesmo a Festa do Rosário.”

Durante os dez dias de festa, a pacata rotina de Zezinho e dos habitantes de Chapada do Norte – dois terços deles vivendo na zona rural, em condições precárias de higiene, saúde, educação e infra-estrutura – transforma-se. Já nos preparativos, junto com as mulheres da comunidade, Zezinho se esmera para deixar impecável a Capela de Nossa Senhora do Rosário. Com água trazida do Córrego da Misericórdia, eles lavam toda a igreja nos dias que antecedem os festejos. Depois é hora de preparar as comidas: matam as galinhas, cozinham fubá para o angu. Sob a responsabilidade da rainha – ou festeira – ele é servido na rua para a população, que se aglomera pelas calçadas.

Em seguida vem a congada, uma espécie de bailado em que os figurantes representam, entre cantos e danças, a coroação de um rei do Congo. O auge das comemorações acontece no sábado à noite. É o mastro a cavalo. As montarias mais bonitas da região são requisitadas para os festejos. Durante todo o dia cavaleiros empenham-se no preparo dos animais. Ferraduras são trocadas. Crinas aparadas.

As mulheres lavam as calçadas e deixam as ruas bonitas para a cavalhada que acontecerá. O ritual representa uma cruzada. Em frente à Igreja do Rosário centenas de pessoas se juntam para ver tudo de perto. De um lado, o rei mouro e seu exército montado, de uniforme vermelho, negociam com o rei cristão, com seus cavaleiros de azul. Quando termina o teatro a céu aberto, as luzes são apagadas e os cavaleiros correm em disparada ao redor da igreja. Vislumbram-se apenas silhuetas dos vultos iluminados pelos fogos de artifício.

A Festa do Rosário é palco para o desfile dos caboclos, marujos e catopês. Os primeiros representam os índios que, ao som de caixas de couro e sanfona, reverenciam a Virgem. Simbolizam a persistência do indígena, que não se deixou dominar. Usam coletes coloridos, adornados de lantejoulas, cocares de penas coloridas, perneiras com penas, pulseiras e brincos.

Já os marujos desempenham o papel do homem branco, a Esquadra Portuguesa na luta contra os Mouros. Fantasiam-se de marinheiros. Cantam ao som de cavaquinhos e violões, pandeiros, xiquexiques, flautas e caixas de couro.

Mas o papel principal cabe aos catopês, os negros que – ao som do batuque das caixas de couro – revivem os gemidos nas senzalas. Vestem capas de chita estampada, enfeitam-se com espelhos, lenços, penas na cabeça. São os responsáveis por encaminhar a bandeira ao mastro, tirar do trono os festeiros, tirar Nossa Senhora do altar e depois devolvê-la.

A festa também é hora da volta para a casa daqueles que foram buscar sustento fora da cidade. As ruas se enchem de gente, ganham uma efervescência que contrasta com a calmaria dos dias normais. É o momento do reencontro nos bares. De matar a saudade daqueles que foram atrás de trabalho e só mandaram notícia por carta.

Como Eustáquio Rodrigues Oliveira, 26 anos, montador de gesso na construção civil em São Paulo, que deixa a capital paulista dois meses antes da Festa do Rosário, todos os anos, para ajudar nos preparativos. “A gente trabalha em São Paulo, mas o coração está aqui”, afirma, enquanto ajeita no espelho a coroa de rei cristão, que exibirá durante os dias da festa.

Antes da comemoração religiosa, Eustáquio encarrega-se de angariar fundos para a festa e para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Visita as comunidades rurais. Recolhe donativos. Na terça-feira da semana da festa, promove um leilão para recolher mais fundos. Vale-tudo como prenda: uma assustada galinha embrulhada em papel celofane, uma gritona leitoa de 15 quilos. O dinheiro é depositado num cofre, entregue depois para a Irmandade, numa solenidade em que são recebidos os novos irmãos de Nossa Senhora do Rosário. Ao Rei cabe também a distribuição de doces. Da janela de sua casa ele distribui centenas de porções com doce de leite, banana e mamão.

Quando a festa chega ao fim e a cidade volta à tranqüilidade habitual, com suas casinhas antigas, ruas tortuosas, poucos carros e compadres papeando nas janelas, os homens quase todos vão embora. Permanece o padre – que reza para que Nossa Senhora interceda pelos jovens que foram em busca de sustento. Fica o sineiro Zezinho – “uma espécie de criança grande e inocente, que não se habituaria à vida dura da cidade grande”, como define o prefeito Eraldo Soares. Sobram também os velhos. Como Olímpio Soares, 70 anos, morador do bairro da Faceira, uma das seis comunidades descendentes de quilombolas de Chapada, classificadas pela Fundação Palmares, a entidade do governo federal encarregada de fomentar a cultura afro-brasileira.

Relatos dos mais velhos identificam quilombos na região de Chapada do Norte antes mesmo da chegada dos bandeirantes. Os negros vinham fugidos dos maus-tratos do trabalho escravo da região do Tijuco. Embrenhavam-se na mata virgem e formavam seus refúgios nas terras da chapada. Bisneto de quilombola, Olímpio é hoje animador de comunidade, zelador da saúde do povo, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e rei mouro na Festa do Rosário.

Já enfrentou a gigante da mineração, a Companhia Vale do Rio do Doce, hoje apenas Vale, que queria derrubar um morro da cidade para explorar minérios. Movimentou a população, colheu assinaturas e até em Brasília chegou, para alertar o que queriam fazer com o que resta da vegetação nativa de Chapada do Norte. O bisneto de escravos trouxe o sentido de organização para a comunidade. “Quando a gente soma as forças consegue as coisas”, ensina ele. “Foi assim que conseguimos restaurar a Capela de Nossa Senhora do Rosário e acabamos com a falta d’água nas comunidades carentes, construindo mais de 2 mil caixas-d’água abastecidas pelas chuvas.”

Olímpio afirma que a sabedoria adquirida veio da observação e do sofrimento de muitos anos. “Antes nós fazíamos a roça e o gado dos outros comia tudo. A gente não tinha força de comprar arame e o gado passava tudo na boca. Depois a gente foi se organizando. Pedindo pra prefeitura um pouquinho de arame, cercando do jeito que a gente podia. Assim fomos crescendo.” Olímpio é exemplo vivo do sofrimento secular de um povo. Sofrimento que se reverteu em melhoria de vida – mesmo que ainda de forma tímida. Que resultou também na mais pura e autêntica cultura popular brasileira.


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