Rui Silva é dos caboclos que se deram bem em Manaus. Cinegrafista, viajava para fazer um curso no “sul” (no eixo Rio de Janeiro-São Paulo). No avião, um paulista puxa conversa:

– Então, você é de Manaus?
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– Sim, sou.

– E é verdade que lá tem muito índio?

– Sim, tem sim – responde Rui, enfastiado.

– Então, vocês devem ter muito artesanato também…

– Sim… Lá a gente tem muito artesanato. Inclusive, lá na sua casa deve ter alguma coisa do artesanato indígena que a gente faz em Manaus.

– Sério? Não acredito. Não tem nada de artesanato lá.

– Você não tem TV? DVD? Computador?

– Tenho, sim.

– Então… O que vocês chamam de tecnologia, a gente chama de artesanato. Tudo isso aí é feito pelos “índios” de Manaus.

O senso de humor de Rui pode não ser dos mais diplomáticos, mas mostra que as idéias preconcebidas sobre a Amazônia estão longe de representar o que ela de fato é. Os anos de isolamento geográfico e uma sociedade que passou décadas de olhos fechados para mais da metade do território brasileiro fizeram com que muitos de nós considerássemos a Amazônia tão remota quanto as savanas africanas. Mas não é. Ela é logo ali. Ou melhor, logo aqui. E Manaus, capital do Amazonas, com quase 1,6 milhão de habitantes, é a sua metrópole mais representativa. Encravada na confluência de dois dos maiores rios do mundo – o Negro e o Solimões -, a cidade que já foi chamada de “Paris dos Trópicos”, no fim do século XIX, hoje busca uma identidade em meio a um dos processos de crescimento urbano e econômico mais rápidos do Brasil.

Guindaste humano
O porto da “Manaus Moderna” não tem nada de moderno. São meia dúzia de balsas de metal improvisadas sem qualquer infra-estrutura, onde barcos de todo o Amazonas e do Pará aportam para deixar toneladas de alimentos e milhares de pessoas. O calor no local é insuportável. Diz-se que há dois sóis em Manaus. Um para o resto da cidade e outro só para a “Manaus Moderna.” O nariz sente o cheiro acre de peixe e frutas apodrecidas. A mistura de buzinas, motores velhos roncando e os gritos da cantora Joelma, da Banda Calypso, criam uma caótica trilha sonora. Dali, o imponente Teatro Amazonas, ícone maior da fartura do ciclo da borracha, é uma lembrança esparsa. Mesmo assim, o local é fascinante.

Pedro Rodrigues de Araújo, 44 anos, é um dos homens mais ocupados de Manaus. A máxima de que “tempo é dinheiro” lhe cai bem. Fala rápido e não tem tempo para conversa fiada. Pequeno e atarracado, tem pouco mais de 1,67 metro de altura. O rosto sempre suado dá a dimensão de seu esforço. É carregador no porto e fica atento a cada novo barco que atraca para retirar as cargas que vêm dentro dos porões. Carrega de tudo: farinha, tucumã (palmeira nativa do Brasil), frutas, cimento. E carrega muito. Consegue levar até 150 quilos amarrados à cabeça e às costas. É um guindaste humano.

Pedro chegou a Manaus aos 12 anos de idade. Veio de Coari, município distante 325 quilômetros da capital, pelo Rio Solimões, em um barco regional de madeira conhecido como recreio. Tinha parente na cidade e queria um emprego no Distrito Industrial. “Qualquer coisa servia”, recorda-se, mas não conseguiu nada. Estudou somente até a 1ª série do ensino fundamental. Hoje, pai de quatro filhos – ele só conta os legítimos -, ganha até R$ 70 por 12 horas de trabalho diárias e mora em uma casa pobre do bairro Armando Mendes, na zona leste de Manaus. “O meu sonho era conseguir um emprego no Distrito, mas não deu. Toda vez que eu ia lá, me diziam que não tinha vaga. Daí eu resolvi vir para o porto. Aqui é bom porque não tenho patrão”, afirma. Mas, se a liberdade de ser autônomo o anima, um fantasma o assusta. A coluna. “Eu rezo pra não ter nenhum problema na coluna porque todos os meus amigos já tiveram. Se eu tiver, não vou ter como trabalhar”, diz.

O emprego no Distrito Industrial de Manaus é, para os amazônidas, o equivalente ao posto de pedreiro em São Paulo para os migrantes nordestinos da década de 1970. Aqui estão instaladas aproximadamente 550 indústrias que chegaram à cidade atraídas pelos incentivos fiscais da Zona Franca, implementada pelo governo federal em 1967, durante o regime militar. À época, vigorava o batido lema “integrar para não entregar”. Quarenta anos depois, o resultado é um moderno parque industrial que fabrica produtos com altíssima tecnologia empregada. É só olhar direito e você verá que boa parte dos televisores, aparelhos de DVD, mídias digitais, telefones celulares e computadores de sua casa ou de seu escritório é fabricada por aqui.

Ah… oito em cada dez motoboys que infernizam o trânsito de São Paulo o fazem com uma motocicleta fabricada em Manaus. Somente no ano passado, o Pólo Industrial de Manaus (PIM) teve um faturamento de US$ 25,6 bilhões e gerou mais de 98 mil empregos diretos. Com tanta “propaganda” assim, fica difícil não querer vir. Para o geógrafo e secretário estadual de Ciência e Tecnologia do Amazonas, José Aldemir de Oliveira, Manaus é uma “cidade-estado”, alusão às cidades gregas de Atenas e Esparta. “Aqui, se decide o que vai acontecer no resto do estado. Quase a metade da população do Amazonas vive em Manaus e a maior parte da atividade industrial está concentrada na capital. O poder de atração é enorme”, explica.

Duas cidades
O complexo Millenium Center é o refúgio de boa parte dos remediados de Manaus. Com ar-condicionado a toda potência, jazz nos alto-falantes, cheiro de canela no ar. Suas três torres espelhadas de 18 andares mostram que Manaus cresce não apenas para os lados, mas, sobretudo, para cima. Na praça de alimentação, adolescentes e “antenados” de todas as idades lotam as mesas, quase sempre sozinhos. Abrem suas mochilas e tiram seus laptops. Virou moda usar a rede de internet sem fio do local. De longe, parecem jovens empresários resolvendo problemas inadiáveis num momento de descanso. De perto, estão olhando o Orkut.

Num sábado de chuva, foi lá que encontrei Luiz Cézar Salama, 47 anos. Médico, acupunturista e surfista, ele aproveita o tempo vago para dar aulas de fotografia, uma de suas grandes paixões. O tempo levou os cabelos aloirados e deixou-os brancos, mas os olhos seguem num azul cristalino. Cansado do trânsito e da violência do Rio de Janeiro, resolveu mudar de ares com a esposa. Escolheu Manaus e está aqui há 11 anos.

Depois de um início complicado, hoje o médico surfista mora em um dos condomínios fechados mais caros da cidade, na região da Ponta Negra, na zona oeste. Ele diz que Manaus é um dos melhores lugares do Brasil para a sua profissão. “Aqui a gente tem um mercado muito amplo. Paga-se bem para médicos, principalmente os especialistas. No meu caso, tive problema porque minha especialidade não era muito conhecida, mas agora já estou estabelecido”, afirma. Para substituir as ondas, Salama busca refúgio na floresta. “No meu condomínio, eu já fotografei cotia, capivara e até jacaré. Em que outro lugar eu poderia ter isso?”, indaga.

Deserto de água
A natureza que encanta o médico surfista da Ponta Negra parece distante para quem mora nas zonas leste e norte de Manaus. Resultado da ocupação desordenada durante 40 anos, a área abriga 43% da população da cidade. Nas ruas de asfalto quebradiço e esburacado, não há canteiros nem arborização. Também não há parques verdes significativos e os igarapés que cortam os bairros foram transformados em esgotos a céu aberto. De ultraleve, vê-se uma imensa mancha cinza no meio da floresta cada vez mais ameaçada. Mas o pior desse deserto – pelo menos para a população – não é a falta de árvores, mas de água. Acredite. Em meio à maior bacia hidrográfica do mundo, onde está concentrada 20% de toda a água doce do mundo, 300 mil pessoas não têm qualquer tipo de abastecimento de água tratada. Outras 500 mil têm, mas de forma precária. Os dados do esgoto são ainda piores. Somente 6% da população é abastecida pela rede de coleta de esgoto.

No bairro Nova Vitória, “nascido” há pouco mais de seis anos, poços artesianos foram perfurados, mas o problema ainda está longe de ser resolvido. A água chega às casas por meio de ligações clandestinas que vazam o tempo todo. Energia elétrica só se for “gato”. Dia desses, um morador morreu eletrocutado ao tentar puxar um “bico” de luz para seu barraco. No Monte Sião, crianças empurram carrinhos de rolimã com dezenas de garrafas e baldes de água tirada sob suspeita de contaminação. São cenas típicas do semi-árido nordestino em plena Floresta Amazônica. “O pior é que todo ano tem político que diz que vai acabar com a falta d’água em Manaus. É uma das principais bandeiras de campanha durante as eleições. Não dá para se conformar com essa situação. É um absurdo que nós não tenhamos água em plena Floresta Amazônica”, diz, indignado, Luiz Odilo, presidente do Fórum Permanente da Cidadania. E do meio desse deserto de possibilidades, surge Amadeus Vieira Vale Malaquias, 19 anos. Bíblia nas mãos e braço tatuado escondido sob uma camisa branca de mangas compridas, em meio a um calor de 38 graus do Parque São Pedro, conhecido como “Invasão da Carbrás”, na zona norte. Pele negra de caboclo forte e cabelos negros partidos para o lado à base de muito gel. Na boca, fala e vocabulário mansos de um recém-convertido. “Olá, irmãos. É bom tê-los aqui em nossa casa”, recepciona. Amadeus deixou em Coari a família e o passado de “galeroso” – termo utilizado para designar jovens pertencentes a gangues de rua. Diz que se converteu por obra de Deus, mas admite que a idéia só lhe passou pela cabeça depois de ter sido baleado e quase perder a perna direita. Buscava trabalho e encontrou. Virou ajudante de pastor e hoje trabalha para Jesus Cristo, mas não recebe salário por isso. Vive da comida e da morada que lhe dão no Ministério Pentecostal Igreja de Deus Internacional.

Futuro incerto
A morte não manda recado, mas, em Manaus, o tempo de vacas gordas tem data para acabar: 2023. É quando termina a vigência dos incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus. Toda pujança econômica que a metrópole amazônica vem exibindo nos últimos anos pode desaparecer e o impacto social será incalculável. A afirmação é de Ulisses Tapajós, diretor da Masa da Amazônia, empresa ligada ao grupo multinacional Flextronics, que fatura US$ 30 bilhões por ano. Filho de um garçom que trabalhava nos prostíbulos da cidade, esse jovem avô de 60 anos de idade é um “pop star” do mundo empresarial e o único amazonense a comandar uma empresa do Distrito – o que por aqui tem muito valor.

Conhecido pelo otimismo e pela simpatia, Tapajós franze a testa calva para falar do futuro de Manaus. “Eu vejo que a cidade cresce a 100 quilômetros por hora, mas as autoridades estão trabalhando a 20 quilômetros por hora. Manaus não se preparou para o fim da Zona Franca. Quando chegarmos a 2023 e os incentivos terminarem, as empresas vão embora e o desemprego será muito grande”, alerta. Colega de Ulisses, José Aldemir usa a cautela de um secretário de Estado em suas previsões. “Nós estamos preparando o Amazonas para o fim da Zona Franca. Acreditamos que o futuro é nos transformarmos em um pólo de biocosméticos produzidos com as matérias-primas da nossa floresta”, diz. Enquanto soluções e previsões são traçadas pelos intelectuais da cidade, na “Manaus Moderna”, Pedro Rodrigues, o guindaste humano, se alvoroça. Outro barco do Pará está chegando.

A ZONA DA ALEGRIA

A Zona Franca de Manaus (ZFM) foi criada pelo governo federal em 1967 como um projeto de desenvolvimento integrado. Porém, seu foco maior era o comércio, sendo depois direcionado para a indústria e a agropecuária. A idéia era atrair indústrias oferecendo vantagens fiscais nos âmbitos federal, estadual e municipal – exceto para os produtores de armas de fogo e munições, fumo e derivados, bebidas alcoólicas e automóveis para passageiros. Entre os principais atrativos fiscais estão a isenção total ou parcial do imposto sobre importação, do imposto sobre exportação para produtos fabricados na ZFM e isenção de imposto de renda. Além de isenção do ICMS, restituição do ICMS para produtos industrializados – que pode variar de 45% a 100% – e isenção do IPTU.

O setor comercial foi o primeiro a se fortalecer. Nos primeiros anos, Manaus funcionou como uma espécie de shopping center dos importados para os brasileiros mais afortunados, já que o governo proibia as importações. Era possível comprar de tudo: gravatas, perfumes, equipamentos eletrônicos. O Distrito Industrial foi inaugurado em 1972 e as empresas, inicialmente, importavam partes e peças desagregadas de um produto para que fosse montado por operários amazonenses – e para ser comercializado apenas no mercado nacional. Desde a sua criação, a Zona Franca, prevista para durar 30 anos, passou por algumas mudanças. Em 1988, ela foi prorrogada para durar até 2013 e, em 2003, o prazo para a manutenção dos incentivos fiscais foi alterado para 2023. Isso significa que, até lá, os produtos fabricados no Pólo Industrial de Manaus terão um custo mais baixo que no resto do País.


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