Zuenir Ventura em 1968, 1988 e 2008

Em 1988, o jornalista lançou 1968 – O Ano que Não Terminou. Agora o clássico é relançado em edição revisada e acrescida de mais um livro, 1968 – O que Fizemos de Nós. A seguir trechos que mostram por que vale a pena ler a obra

O QUE NÃO TERMINOU

Nelson Rodrigues

Resistiu tanto e tão consensualmente que corre o risco de sucumbir ao que decretou em 68: “Toda unanimidade é burra”. Amado e odiado, agora é só admirado. Continua sendo o frasista mais citado do país, até porque, como ele mesmo disse, “o brasileiro mata e morre por uma frase”. Felizmente, quem não terminou foi o Nelson Rodrigues subversivo em arte e não o reacionário em política

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Minorias
As mulheres, os negros, os homossexuais eram chamados de “minorias” não por serem poucos, ao contrário – mas pela desimportância social que tinham. Foi 68 que ensinou a valorizá-los. Depois desse ano eles não foram mais os mesmos.

Sonho
Embora John Lennon, Bob Dylan e Gilberto Gil tenham decretado seu fim (“Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou”), é licença poética, ele não acabou. Sonho é desejo, ensinou Freud. “A vida é sonho, e os sonhos sonhos são”, já dizia no século XVII o clássico espanhol Pedro Calderón de la Barca. Não confundir sonho com pesadelo. Algumas coisas que pareciam sonho em 68, como as drogas, eram pesadelos. Nada melhor do que um sonho bem sonhado, como cantou Martinho da Vila, inspirado no “Sonho de um Sonho”, de Carlos Drummond de Andrade.

Capitalismo
Era mais forte do que a vã ilusão da época pensava. Bem que Marcuse advertiu: “Combatemos contra uma sociedade que funciona extraordinariamente bem”. Nesse caso, ele não foi ouvido. A direita repetia uma piada que irritava muito os comunistas: “O capitalismo é a exploração do homem pelo homem. O comunismo é o inverso”.

O QUE TERMINOU

Comunismo
Embora não tenha sido uma invenção brasileira, foi a grande ameaça que os militares usaram para amedrontar a população em 1964 e 1968. Segundo a propaganda, o “perigo vermelho” era iminente: além de se apoderar do patrimônio particular, inclusive das moradias, um governo comunista ia dissolver a família e o casamento. Funcionou tanto que a crença nesse risco existe até hoje como paranóia. Entretanto, seu partido é pouco representativo, e seus adeptos não têm expressão política. Convicto mesmo, comunista para ninguém botar defeito, só se conhece um: Oscar Niemeyer.

Alienado
Chamar alguém de “alienado” hoje é prova de alienação. No entanto, foi uma das ofensas políticas mais empregadas nos anos 60. O contrário era “engajado”, um elogio. Ambos os termos envelheceram tanto quanto a calça patte-d’éléphant.

Certezas
Só resta uma certeza, a de que não as há mais – nem ideológicas, nem científicas, religiosas ou culturais. Nem mesmo em relação ao futuro do planeta, que o aquecimento global torna cada vez mais incerto. Saudades da Guerra Fria, que durante tanto tempo ameaçou o mundo com uma destruição nuclear fajuta.

Passeatas
Colocar 100 mil ou mesmo 50 mil pessoas nas ruas para uma manifestação a favor ou contra qualquer coisa é praticamente impossível. Como forma de pressão, elas foram substituídas pelos e-mails, ou seja, pelas “passeatas virtuais”. Inspirada no que foi feito em Washington em 2003, uma “caminhada virtual rumo a Brasília contra a corrupção” chegou a ser organizada. Para percorrer os 1.012 quilômetros de São Paulo à capital federal, foram precisos 506 mil participantes, já que cada um representava 2 metros de percurso. Hoje, só os gays põem multidões para marchar.

Geraldo Vandré
Um dos ícones musicais daquele ano, autor de “Caminhando”, que Millôr Fernandes considerou a nossa “Marselhesa”, Vandré saiu completamente de cena. E com ele o voluntarismo proposto por seu hino à resistência. “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer” ficou como um verso sedutor, mas não como verdade.

O QUE MUDOU

Che Guevara
O heróico guerrilheiro cubano, quem o diria em 68, virou ídolo pop e perdeu a virulência. Um ano depois de sua morte na Bolívia, em 67, ele era um mártir, quase um santo. A foto daquele rosto carismático, barbado e cabeludo, feita por Alberto Korda, correu o mundo e tornou-se a segunda imagem mais difundida da era contemporânea (a primeira é de Jesus). Foi parar em biquínis da modelo Gisele Bündchen e em tatuagens no braço de Maradona e no peito de Mike Tyson. Em 68, Fidel fez o povo cubano repetir como uma oração: “Nosso dever é criar homens como Che”. O consumo acabou criando milhões deles, virtualmente. Seu neto Canek Sánchez Guevara lamentou: “Impressiona ver que um homem que escolheu o capitalismo como inimigo tenha acabado assim”.

Invasão de privacidade
Num mundo despudorado como o atual, a “invasão” foi substituída pelo que o humorista Tutty Vasquez chamou de “evasão” de privacidade. Agora, as celebridades do showbiz é que perseguem a mídia para revelarem suas intimidades do corpo e da alma. Da alma, muito pouco.

O QUE NÃO EXISTIA

Os jovens de hoje têm dificuldade de imaginar que houve um tempo em que se vivia sem: CD, DVD, Gisele Bündchen, bala perdida, telefone celular, internet (web, Google, Orkut, site, e-mail, MSN, Second Life), alimentação diet, Viagra, Big Brother, mania de correr, notícia em tempo real, interatividade, iPod, aids, medo de colesterol, medo de assalto, grades nos prédios, piercing, depilação dos grandes lábios, Botox, seios turbinados, o “estarei fazendo”, anorexia, globalização, DNA, pensamento único, academias de musculação, Bill Gates, baile funk, controle remoto, forno de microondas, TV em cores, TV a cabo, garotas de programa (com este nome), shopping centers, ecstasy e mania de fazer listas como esta.


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