Lidar bem com o passado é para poucos. Meu amigo Dino Baggetta é um desses poucos. Na verdade, era. Quase ficou louco.

Lá na infância, quando encerrou a escola primária, encerrou. Nunca mais falou dos peitos da professora. Nem das estrelinhas douradas, nem da Soninha, tampouco do lanche rançoso. Acabou, acabou. Do primário, sobrei eu. Agradeço, somos amigos até hoje.

No ginásio, a mesma coisa. Deixou para trás a paixão pela Bel e a raiva do professor que o perseguiu. Virou a página. Passou, passou. Com ele não se remói o tempo.

No colegial foi o mesmo e depois com a faculdade e, então, por toda a vida. O Baggetta gosta das pessoas, desfruta, valoriza, prestigia, respeita e enaltece. Mas, acabou, acabou.

Ele pensa a vida em páginas.

Há páginas que viram naturalmente com o tempo. Na verdade, o que viram são as circunstâncias. É a natural troca de atores no palco. Surgem páginas novas no lugar das antigas. Quando apropriado, ele volta às antigas. Com respeito, como quem degusta algo raro e delicado.

Há outras páginas, mais sombrias, que ele não vira. Corta cirurgicamente junto à lombada e dá um sumiço. Não fica marca. São as difíceis, mas sem maldade. Se ele olhar para o passado, saberá que houve algo por ali. Não deu certo, mas não havia o mal. A estas não volta porque não mais existem. Restam imagens difusas, uma ou outra música, talvez alguns aromas.

E, por fim, há as páginas mais pesadas. Até sinistras. Onde há o mal. Estas, ele arranca. Amassa, queima e joga fora. Destas não sobra nada. É como se jamais tivessem existido.

Não fique a impressão de que o Baggetta é insensível, frio ou desatento. Nada disso. É pessoa doce, mas que passa ao largo do rococó e distante dos detalhes. Não perde tempo com bobagem. Leva as coisas bem. Na verdade, levava.

Em dezembro, me perguntou o que eu achava de zumbis. Eu disse que temia o vodu de uma maneira geral. Quanto aos zumbis, propriamente ditos, me assustavam muito. A ideia de que um morto ressurja do túmulo e caminhe por aí em estado catatônico me atemorizava.

Ele me ouviu ansioso e foi logo atropelando a fala. Disse que estava recebendo mensagens da Soninha. Imagine! A Paula, aquela amiga gostosíssima da Bel, aparecera do nada. Acredite! Recebeu convite para ser amigo do Vicentão, que o espancou no primário. E assim foi desfiando um rosário de aparições que me deixou realmente impressionado. Arrematou com seu característico: Cazzo, esses caras tão loucos!

Desde que se enredara nesses sites de relacionamento, não conseguia mais lidar com o passado como fazia antes. As coisas encerradas estavam ressurgindo a toda hora. As coisas presentes não se encerravam mais. Hoje em dia, todo o passado, a qualquer instante, emerge no presente. Como lidar com essa miríade de pessoas, eventos, relações, memórias, fotos e fatos, amalgamados num pasticcio indeglutível?

Não tinha cabeça para isso. Tomara uma decisão drástica. Encerrara seus e-mails, seus perfis, se suicidara nos sites, nos cadastros, nas listas, nos chats, grupos, twitters e blogs. Em todo lugar. Um trabalhão danado. Desaparecera de todo canto. Sem rastro.

Eu acolhi aquela catarse até o fim, me despedi e voltei para casa. Desconfiado, fiz busca com “Dino Baggetta”. Não havia nada, absolutamente nada. Casquetada! No estimado trilhão de páginas da web não havia qualquer referência a Dino Baggetta. O paisano evaporara. Incrível!

Liguei para ele e confirmei tudo. Mais sereno, ele disse que ia começar tudo de novo. Dessa vez, dissimulado. Com parcimônia. Muita moderação. Extrema cautela. Discreta prudência e, sobretudo, seletividade nos relacionamentos. Pediu-me que anotasse seu novo e-mail. Eu anotei tucurunda@gmail.com em meus contatos, mas nem associei a Dino Baggetta.

Há de ter muita cautela nesses ambientes.


*Marcos Rodrigues é engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.


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