Você sabe o que é eutanásia, distanásia ou ortotanásia? É o primeiro passo para começar uma conversa sobre a terminalidade da vida e o posicionamento de pacientes, médicos, família e Estado. A eutanásia é a interrupção voluntária da vida, ainda que por razões piedosas, ou seja, para poupar o paciente de sofrimentos desnecessários ou inúteis. O suicídio assistido é algo um pouco diverso, pois é o paciente quem realiza o ato de ingerir o medicamento ou dar início ao processo de interrupção da vida, muito embora todo o aparato e as condições para isso sejam providas por terceiros que têm esta intenção.
Em direção oposta, a distanásia é o prolongamento do processo de morte, alongando-o além do curso normal da enfermidade. Difere do processo de cura, porque o bem-estar do paciente não é o objetivo principal. A ortotanásia significa o respeito ao processo evolutivo natural da morte, procurando oferecer ao paciente sobretudo dignidade e conforto, assistindo-o na dor e nas consequências dos processos de degeneração orgânica que compõem a terminalidade. São os chamados cuidados paliativos.
A grande questão é conseguir entender quais são e como se estabelecem os limites entre esses atos. Quando é que se deixa de lutar pela cura ou prolongamento da vida sob o manto da terapêutica, e se priorizam os cuidados paliativos? Quando é que a não realização de alguma intervenção medicamentosa ou procedimento não configura omissão de socorro? Enfim, que posição tomar diante do leito de um ente querido no momento de tomar esse tipo de decisão?
É preciso, pois, colocar o tema em pauta. Precisamos debater, informar, avaliar, promover um círculo de comunicação e de treinamento multidisciplinar contínuo, criar procedimentos, protocolos e práticas que envolvam os profissionais de saúde, os pacientes e suas famílias, e também os profissionais legais e administrativos das instituições de saúde.
Decisões difíceis e complexas são mais fáceis quando são minuciosamente treinadas e se a multiplicidade de fatores envolvidos for devidamente considerada, com método e atenção aos detalhes e particularidades de cada caso.
Preparar os profissionais, os pacientes e suas famílias para os difíceis eventos e decisões que envolvem a terminalidade da vida com antecedência e realismo, e utilizar os mecanismos já existentes para esta difícil travessia, é uma prática que deve estar presente nos muitos locais onde se convive com a enfermidade progressiva e incurável, bem como com as consequências de acidentes incapacitantes.
A Corte Europeia e a situação brasileira
No Brasil, a resolução 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina regulamentou, no âmbito da ética médica, a ortotanásia, e a resolução CFM 1.995/2012 regulamentou a cognição e atuação médica frente às diretivas antecipadas do paciente (também denominada testamento vital). Mas nenhum arcabouço legal (a despeito dos vários projetos de lei tramitando acerca do assunto) será eficiente se não houver diálogo, diálogo e ainda mais diálogo entre as partes envolvidas.
Os conflitos na Europa e no Brasil acerca dos limites da ortotanásia, da distanásia e da eutanásia (ainda que passiva), são os mesmos. Lá, começam a surgir decisões cujo conhecimento podem nos ajudar a ampliar o debate do tema. No ano passado, em 5 de junho, a Corte Europeia de Direitos Humanos (implementa a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, feita em Roma, em 1950) proferiu uma importante decisão no caso conhecido como Lambert v. República Francesa. Segundo essa corte, que não há violação ao artigo 2 da Convenção (Direito à vida) na decisão médica de suspender a nutrição e hidratação de um paciente com dano cerebral e em estado vegetativo sem possibilidade de comunicação. Segundo a Corte, ainda que a nutrição artificial e hidratação possam ser retiradas quando a sua continuação resultar em obstinação terapêutica irrazoável, o simples fato de a pessoa estar em um estado de perda irreversível de autonomia (dependente do tratamento para sobreviver) não caracteriza uma situação em que a continuação do tratamento seja fútil ou obstinada.
No caso, disse a Corte que o médico encarregado do paciente deve basear a decisão de suspender hidratação e nutrição em uma gama de fatores médicos e não-médicos, cujo peso relativo não pode ser determinado antecipadamente, mas vai depender das circunstâncias de cada paciente, de forma que a situação deve ser avaliada em suas peculiaridades.
Além dos fatores médicos, que devem cobrir um período suficientemente longo de tempo, a avaliação deve ser coletiva, deve incluir a situação atual do paciente, a evolução de seu quadro desde o início da moléstia ou acidente, seu grau de sofrimento e o prognóstico clínico. O médico deve, igualmente, levar em conta as manifestações de vontade anteriores do paciente como fator de grande importância, sob qualquer forma.
É urgente discutir as relações entre pacientes, médicos, família e Estado no período terminal de vida. Cada um de nós, no futuro, irá se beneficiará disso.
Se o desejo da pessoa acerca da condução de sua terminalidade não for conhecido, não se pode presumir como uma recusa do paciente em aceitar a evolução natural do processo de morte, mas deve-se levar em consideração a opinião de pessoa de confiança, quando o paciente designou tal pessoa ou membros da família do paciente (ou pessoas a ele próximas), sempre na busca de um consenso.
No Brasil, precisamos incentivar uma discussão honesta e aberta entre os profissionais e instituições de saúde, os pacientes e as áreas jurídicas – advogados, promotores e juízes – para que, antes do consenso, difícil de se conseguir, se possa compartilhar informações de forma clara e objetiva, e sempre de boa-fé.
A Corte Europeia demonstrou que não há como estabelecer tais limites senão caso a caso, mas isto de forma alguma quer dizer que a convicção de tomar uma ação em qualquer direção possa estar baseada em avaliações subjetivas.
Os cuidados paliativos, a ortotanásia e as posições acerca da terminalidade da vida nos dois polos deste espectro (distanásia e eutanásia) só poderão ser bem compreendidos – posto que cada um deles tem fundamento em valores e sentimentos comuns – quando se instalar a mentalidade e a cultura de reconhecer a morte e o período final da vida como realidades presentes na existência de cada indivíduo e da sociedade, das igrejas, da política, do Estado e da lei
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