“Recebemos a notícia da ação na região com pasmo”, diz Arthur Pinto Filho, promotor do Ministério Público de São Paulo. O espanto do promotor não é à toa. Pinto Filho diz que o projeto para a Cracolândia entregue ao MP-SP “era o contrário do que está acontecendo”. Psicólogos também estão consternados. “Em uma reunião com secretários, tivemos a garantia de que não haveria ataque policial”, relata o psicólogo Aristeu Bertelli, em coletiva de imprensa no CRP-SP (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo).
Os profissionais se referem à ação conjunta das administrações municipais e estaduais no “fluxo”, como é conhecida região do centro de São Paulo que concentra usuários de drogas. Em ação relâmpago, 900 policiais e agentes dispersaram a concentração na madrugada de domingo (21). Quarenta e oito pessoas foram presas. A ação incluía também a demolição de imóveis e, na terça (23), um imóvel foi demolido com pessoas dentro. Três delas ficaram feridas.
Ainda, segundo o site G1, o prefeito João Dória quer a possibilidade de internação compulsória de usuários da Cracolândia. Ele entrou com pedido urgente no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) nesta quarta-feira (24) para que médicos possam avaliar a possibilidade de internação sem autorização do usuário.
Se o pedido for deferido, será mais um descumprimento do acordo que a gestão fez com entidades. Também, segundo a lei 10.216, de 6 de abril de 2001, conhecida como “Reforma Psiquiátrica”, a internação é feita só em último caso e quando forem esgotados todos os recursos. Conforme consta:
Art. 4 – A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
§ 1 O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.
§ 2 O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
Brasileiros aguarda um retorno da prefeitura de São Paulo sobre o diálogo estabelecido com entidades e sobre o pedido feito ao TJ-SP.
Operação coleciona erros
Segundo o MP-SP e psicólogos, a ação na Cracolândia coleciona erros. Um deles é que a ação policial apenas dispersa usuários e o tráfico. Não resolve o problema. Ainda, a abordagem coercitiva e repressiva não contribui para o tratamento. O CRP-SP defende ação humanizada em políticas sobre drogas. Elas devem levar em consideração a reinserção social do usuário e sua experiência de vida.
“Não é a primeira ação higienista por aqui. Eu quero lembrar as pessoas violadas da comunidade Pinheirinho. Elas foram vítimas da mesma ação com a mesma justificativa, que era de acabar com o tráfico de drogas. Isso é uma falácia antiga”, diz o psicólogo Bertelli.
Já a prefeitura e o governo do Estado justificam a ação pela via da segurança pública. O objetivo, defendem, era prender traficantes e eliminar a feira de livre de drogas que ocorria a céu aberto na região.
“Do ponto de vista físico, a Cracolândia acabou e não volta mais. Aquele eixo da Rua Helvetia, toda aquela região que foi dominada pelo tráfico, por agentes de facções criminosas, acabou, não vai existir mais. Agora, o atendimento aos psicodependentes e o combate ao tráfico de entorpecentes são ações contínuas policial e medicinal”, afirmou o prefeito João Doria, em nota.
Para o promotor Arthur Pinto Filho, mesmo do ponto de vista da segurança pública, o problema do “fluxo” é a dependência e, com a ação policial, “o que estava ruim, piorou muito”.
“A ação não resolveu o problema básico da Cracolândia que é a dependência. Enquanto não se resolver isso, a droga vai continuar chegando, tanto lá como em qualquer lugar do Brasil. O principal é tentar cuidar do usuário dependente. Isso é que tem que ser feito”, diz o promotor.
Usuários e trabalhadores denunciam desrespeito
Desavisados, mesmo os participantes do programa “Braços Abertos”, ação da gestão anterior que ofereceu emprego, moradia e tratamento a usuários, foram dispersados com a ação da polícia na Cracolândia. Também agentes consideram que houve desrespeito com os trabalhadores. Ninguém sabia o que iria acontecer e ninguém foi ouvido, disseram.
“O soco que eu levei no estômago não passou. O que eu vi lá foi um aparato de guerra. O que eu vi foram profissionais e usuários totalmente sem rumo”, diz a psicóloga Maria Orlene Daré, da Comissão Nacional dos Direitos Humanos do Sistema Conselhos de Psicologia.
“As pessoas estavam perdidas e desmoronadas, sem qualquer referência. Todos estavam muito fragilizados. Era uma condição de desamparo total.”
Para os trabalhadores, a ação da polícia contribui para destruir vínculos construídos com muita dificuldade entre agentes e usuários. Era por meio de uma política humanizada, com base na confiança, que muitos aderiam ao tratamento, enfatizam.
“Quando a imprensa fala que a operação foi um sucesso, vou dizer que houve feridos. E vou dizer ainda que o ferimento maior é invisível porque atinge a subjetividade das pessoas. Essas pessoas foram violentadas por uma violência desmedida. Houve uma quebra total de todos os vínculos. Eles não sabem o que vão acontecer em suas vidas”, diz Orlene Daré.
Reações: Denúncia na OEA e inquérito do Ministério Público
A ação na Cracolândia será denunciada na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) nesta quarta-feira (24) pela ONG Conectas e pela Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas. A audiência ocorrerá em Buenos Aires, na Argentina. A comissão integra a OEA (Organização dos Estados Americanos).
Em nota, a Conectas diz que a operação foi desproporcional. “A ação resultou na prisão arbitrária de usuários e usuárias de drogas na região”, destaca o texto. Além disso, segundo a Plataforma Brasileira de Políticas Sobre Drogas, a ação é um desdobramento da política de encarceramento em massa. A entidade diz que a operação não tem como pilar a saúde e a assistência, mas sim a guerra às drogas.
“O Estado está legitimando novas formas de encarcerar usuários pela via da internação, contrariando orientações internacionais e a própria legislação brasileira”, afirma Gabriel Elias, coordenador de Relações Institucionais da PBPD.
Também o Ministério Público e a Defensoria abriram inquérito pra investigar ação da Guarda Civil Metropolitana na operação. A entidade acredita que houve desvio de função da guarda.
Além de notas de entidades citadas na reportagem, a ação gerou reações de repúdio de outras instituições. Publicaram nota os coletivos de saúde popular, o Conselho de Fonoaudiologia de São Paulo, o Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo e o Conselho Federal de Psicologia. Há também um abaixo-assinado on-line, assinado por mais de 70 entidades, profissionais, docentes de universidades, ativistas, psicólogos, associações, conselhos e ONGs.
“A barbárie deste 21 de maio de 2017 é inaceitável. A ação do prefeito João Dória viola a Constituição Federal no direito cidadão de ir e vir e fere o princípio da laicidade do Estado. Representa ainda uma afronta aos direitos humanos e à luta antimanicomial”, diz nota do Conselho Federal de Psicologia.
As ações do governo e da prefeitura
Segundo a prefeitura, mais de 500 pessoas foram acolhidas após a operação de domingo e foram levadas para o Complexo Prates e para o Centro Temporário de Acolhimento (CTA). Também, de acordo com a gestão, cerca de 600 profissionais estão nas ruas para fazer a triagem, o diagnóstico e o acolhimento dos usuários de drogas que circulavam na região. A prefeitura recolheu cerca de 70 toneladas de lixo e usou 150 litros de detergente para limpar a área.
Já o governo do Estado anunciou a ampliação de moradias no centro de São Paulo nesta quarta-feira (24) para revitalizar a região da Luz. “Com a entrega de terrenos que a Prefeitura de São Paulo está fazendo, nós poderemos ter mais 440 apartamentos na região”, afirmou o governador Geraldo Alckmin, em nota.
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