Hospital em SP é acusado de transformar em pesadelo parto de jovem soropositiva

“Não era o que você queria? Agora aguenta a dor.” Foi o que Carolina*, jovem vivendo com HIV, disse ter ouvido de uma obstetra do Hospital Municipal do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, ao dar à luz o filho Mateus. A frase foi só o começo do martírio em que se transformou o que era para ser o dia mais feliz na vida de Carolina.

Jovem vivendo com Aids denunciou maus tratos durante o parto. Foto: Ingimage
Jovem vivendo com Aids denunciou maus tratos durante o parto. Foto: Ingimage

Além de ouvir comentários desagradáveis na sala de parto, ela e o filho receberam orientações médicas totalmente contrárias aos protocolos oficiais mais primários. Como, por exemplo, a de amamentar o bebê – o guia de recomendações do Ministério da Saúde sobre cuidados com a gestante soropositiva diz que a mãe não deve amamentar, pois o HIV está presente no leite materno.

Tudo começou nas primeiras horas do dia 30 de junho, quando a bolsa de líquido amniótico da jovem rompeu. Ela foi levada pela família ao Hospital Municipal do Campo Limpo. “Cheguei lá confiante, tinha certeza de que tudo correria muito bem. Estava com 36 semanas de gestação e, apesar de não conhecer a equipe daquele hospital, fui bem instruída pelas médicas que me acompanharam no pré-natal, no Serviço de Assistência Especializado (SAE Jardim Mitsutani)”, conta.

O parto estava previsto para 13 de julho, mas a criança resolveu nascer no dia em que Carolina teria a última consulta de pré-natal no SAE. “Quando a bolsa estourou eu tinha a caderneta e o kit gestante em mãos. Na caderneta, havia a recomendação da médica do SAE para parto cesárea, até porque eu estava com o colo do útero baixo. Mas os exames, inclusive o de carga viral, ficaram no prontuário do SAE. Não deu tempo de ir lá pegar, porque a bolsa rompeu e corri direto para o hospital”, continua Carolina.

O exame de carga viral é importante para avaliar a probabilidade de a mãe passar o vírus para o bebê. Quanto menor a carga viral, menores são as chances de infecção. A de Carolina estava indetectável.
Além disso, em seu kit gestante tinha todos os medicamentos necessários para ela e o filho durante o parto:  remédio para cortar o leite, AZT xarope para a criança e duas ampolas de AZT para serem injetadas no soro para ela.

No hospital

Assim que chegou ao hospital, Carolina foi atendida na emergência do ambulatório. “A primeira médica que me examinou disse que o parto cesárea era o ideal para mim, mas a decisão não seria dela e sim de outra equipe que me atenderia.”   

Carolina foi levada para o centro cirúrgico e suas contrações aumentavam a cada momento. “Quando eu cheguei na sala de parto fui atendida por um médico ‘bonzinho’. Ele tentou me tranquilizar o tempo todo. Logo depois, o plantão foi trocado e outra equipe passou a me atender.” 

Carolina diz que uma médica, chamada de dra.Luiza, entrou na sala demonstrando mau humor: “Senti muita dor quando ela fez o primeiro exame de toque. Eu  me mexi e ela falou algo assim: ‘não mexe, na hora de fazer a criança você não estava mexendo’.” 

No segundo exame de toque, segundo Carolina, ela foi mais ‘agressiva’ ainda. “Eu estava tendo contrações muito fortes, sentia muita dor. Pedi para ela esperar um pouco para repetir o toque, mas ela não me ouviu e seguiu com o exame. Acabei me mexendo novamente e ela disse: ‘você não é única que sente dor, mas se não quer minha ajuda fique aí sozinha´. E foi embora”. 

Carolina diz que ficou muito assustada, se sentiu humilhada, desamparada, mas pensou no filho. “Decidi concentrar minhas energias para trazer o Mateus* ao mundo. Fui ao banheiro e fiquei lá, fazendo força, até que chegou uma enfermeira e constatou que já era possível ver a cabecinha do neném. A médica voltou, mandou me deitarem numa mesa ginecológica. Mandou também chamar minha tia para assistir ao parto.”

A garota conta que quanto mais se aproximava a hora do parto, mais a sala ia ficando cheia de enfermeiros e médicos e o nervosismo da obstetra aumentava. “Quando ela descobriu que eu não estava com o exame de carga viral, passou a dizer que eu era  irresponsável por não estar com o exame, por ser jovem soropositiva e ter engravidado, mesmo sabendo do risco de contaminar o meu filho, me acusou de não levar o tratamento a sério, de ser egoísta por não deixar meu bebê nascer. Disse que eu não gostava do meu filho e queria que ele nascesse doente.”

Na maca quebrada

Foi esse o clima que a tia de Carolina, Lúcia Helena*, notou ao chegar à sala do parto. “Ela veio passar a mão em mim, para me acalmar. A médica gritou para ela tirar as mãos, disse que eu poderia infectá-la. A tensão foi aumentando, o Mateus não nascia,  a enfermeira já havia dito até que o coração dele estava ficando fraco, eu não tinha força.” 

Lúcia Helena diz que ficou horrorizada com a situação, mas preferiu se calar. “Eu não queria deixar minha sobrinha mais nervosa ainda. Já tinha visto um parto de uma afilhada e foi totalmente diferente, humanizado. Sei o quanto é importante para a gestante ter paz numa hora dessas. A Carolina estava sendo discriminada ali por ser soropositiva.”

A médica, segundo Carolina, seguiu reclamando. “Chegou a ameaçar chamar a polícia para mim porque eu me mexia muito e, às vezes, acertava o pé nela. Ela só esqueceu que eu estava numa maca com um dos suportes para os pés quebrado.”

Carolina conta que um dos momentos de maior desespero foi quando a médica começou a dizer que se o neném morresse a culpa seria dela.
“Ela falava que ia me cortar, mas não me daria anestesia para não correr o risco de se infectar e infectar sua equipe, que era orientada por ela a não colocar a mão em mim. Fui ficando cada vez mais assustada.” 

Depois de quase três horas, Mateus nasceu. De parto normal, mesmo Carolina tendo em sua carteira de gestante a recomendação de cesárea. A anestesia, apesar de a médica ter ameaçado não fazer, foi dada.

“Só consegui dar à luz depois da chegada de um outro médico à sala. Ele apertava minha barriga e pedia que eu fizesse força junto com ele. Nessa hora, o neném desceu mais um pouco, a médica  colocou as mãos dentro de mim e o puxou.”

Problemas no pós-parto

Com o filho no braço, Carolina levou outro susto ao receber a indicação de amamentá-lo, conforme consta no seu prontuário (foto). Como já sabia que o aleitamento materno não era recomendado, a nova mamãe não deu seu leite para a criança.


Na saída do hospital, ela estranhou outro procedimento do hospital: uma receita assinada e carimbada pela pediatra Synthia Souza (foto) indicava 10,1 ml de AZT para o recém-nascido a cada 12 horas. “Cheguei em casa,  disse para a minha tia que a dose era muita alta e decidi diminuir por minha conta.”

“Eu nasci com HIV e lembro que, aos 5, 6 anos, eu tomava essa medicação e não era uma quantidade tão grande. No hospital, o Mateus também não tomava essa superdose. Era só um pouquinho na seringa. Diminuí a dose para 3 ml e marquei uma consulta urgente com uma pediatra do SAE.”

Segundo infectologistas ouvidos pela Agência Aids, o certo são 4 mg por quilo/dose. No caso de Mateus, que nasceu com 2 quilos e 700 gramas, o recomendado é 3,6 ml, segundo calculou a infectologista Mariliza Henrique, do CRT (Centro de Referência e Tratamento – SP), a pedido da reportagem.  A informação sobre dosagem de AZT para recém-nascidos também consta do Consenso Pediátrico de Aids.   

Carolina conta que levou a receita do AZT para uma das pediatras do SAE Mitsutani e, quando a médica viu, achou um absurdo, ficou muito brava, chamou a assistente social e disse: “Não é a primeira vez que chega uma receita do Hospital de Campo Limpo de AZT para recém-nascidos na quantidade errada.”

O SAE Jardim Mitsutani é ligado à Secretaria Municipal de Saúde e, assim como os outros serviços da cidade, se manifestam por meio da pasta. Procurada para esclarecimentos sobre o caso, a secretaria nos enviou a seguinte nota: “A Autarquia Hospitalar Municipal (AHM) informa que foi feita uma reunião com familiares da paciente para esclarecer o caso. Também foi criada uma comissão interna para averiguação dos procedimentos. Ao término da investigação, os resultados serão comunicados aos interessados.” 

O movimento social

Depois de alguns dias do parto, a jovem e sua família procuraram a ONG Anima, que Carolina frequenta desde os 2 anos, para relatar o ocorrido. A ONG faz parte do Mopaids (Movimento Paulistano de Luta contra a Aids), que colocou o fato na sua pauta de reunião mensal.
O assunto foi discutido no encontro do movimento em agosto.  “Nossa ideia nunca foi expor a Carolina, mas as pessoas precisam saber deste caso para que outras jovens não vivam a mesma situação”, explica a psicopedagoga da Anima, Renata Godinho Brandoli.

No dia 21 de agosto, o Mopaids enviou uma carta/denúncia – copiando Secretaria Municipal de Saúde – exigindo das autoridades municipais investigação e posicionamento.

“O Mopaids repudia o comportamento não humanizado de  alguns profissionais do Hospital de Campo Limpo e ressalta o grave erro na indicação com dose errada do medicamento”, diz o documento. Para o movimento, erros assim “mostram a fragilidade da rede de atendimento às mulheres com HIV”.

Investigação

No dia 4 de setembro, a equipe técnica do Hospital de Campo Limpo recebeu os representantes do Mopaids José Araújo Lima e Renata Godinho,  além de Carolina e sua tia Lúcia Helena, para uma conversa. 

“O Hospital do Campo Limpo mostrou ser um fracasso quando o assunto é gestante vivendo com HIV/aids. Na realidade, existe um enorme buraco na cidade de São Paulo que precisa ser sanado. Não falta só protocolo de tratamento, falta ética na saúde municipal”, opina Araújo.
O ativista conta que o clima na reunião não foi amigável. “Senti o tempo inteiro que a equipe do hospital queria minimizar o ocorrido. Eles tinham resposta para tudo. Um dos médicos até disse: ´só nos resta pedir desculpas´. ”

Ainda, segundo conta Araújo, a equipe do hospital convidou o movimento social para fazer uma capacitação com os profissionais do local. “O Programa Municipal de DST/Aids é que tem de fazer capacitação contínua. E nos responder onde está,  de fato, o treinamento? Indicar amamentação para um bebê filho de mãe soropositiva é um erro primário.”

Procurado, o Hospital do Campo Limpo, também ligado à Secretaria Municipal de Saúde, alegou que aguarda as apurações.

Trauma

Nesses três meses, Carolina tem tentado esquecer a situação e se dedicar ao filho. Foi difícil reviver os fatos ao nos dar essa entrevista.  “Eu me senti julgada o tempo todo. É como se você fosse um etezinho, ninguém coloca a mão em você pois você oferece risco. É desumano. Senti medo da médica. Toda vez que ela me tocava era como se eu estivesse  num filme de terror. Tudo me machucava.”  

Nova vida

Carolina vive com Mateus e o pai dele, um jovem soronegativo, na periferia da zona sul, na casa da avó do marido.  Ela parou de estudar no segundo ano do ensino médio e ele trabalha num lava-rápido. Carolina diz estar vivendo as experiências de qualquer mãe de primeira viagem. “A vida ficou muito corrida. É bem divertido e, às vezes, assustador. Mas eu teria o Mateus outra vez se voltasse ao passado. É muito importante ser mãe porque eu precisava de um pedacinho meu fora de mim. Eu olho para ele e penso: nossa, fui eu quem fiz. Ele é tão bonito.”

* Os nomes Carolina, Mateus e Lúcia Helena são fictícios. Foram trocados para preservar a identidade das personagens.

* Carolina deu entrevista à diretora Roseli Tardelli e à repórter Talita Martins (http://agenciaaids.com.br/home), na casa de sua avó e tia, na zona sul. 

Secretário Padilha, da Saúde, promete rigor e rapidez na apuração das denúncias de violência obstétrica a jovem soropositiva

Investigação rigorosa e punição na mesma medida se forem comprovadas falhas técnicas ou éticas. É o que promete o secretário municipal da Saúde, Alexandre Padilha, no caso das denúncias de violência obstétrica sofrida por uma jovem soropositiva ao dar à luz no Hospital Municipal do Campo Limpo, no dia 30 de junho. “Que isso sirva de alerta: essa situação é inadmissível na nossa rede”, disse ele à Agência de Notícias da Aids, em entrevista concedida na quinta-feira (8). Nós conversamos com o secretário antes de ele assinar o acordo de cooperação entre a prefeitura e o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) para o projeto Viva Melhor Sabendo Jovem, no bairro Vila Nova Cachoeirinha, zona norte. Falamos também sobre o caso com Eliana Gutierrez, coordenadora do Programa Municipal de DST/Aids. Veja a seguir:

Agência de Notícias da Aids: Já foi aberta uma sindicância para apurar esse caso?

Alexandre Padilha: Esse caso deixou a todos nós indignados. Todos os profissionais têm acesso ao protocolo do Ministério da Saúde e a própria coordenadora do Programa de DST/Aids da cidade [Eliana Gutierrez], ao saber do caso, fez questão de reenviar esse protocolo com uma carta de punho pessoal para essa profissional e os demais do hospital. Esse caso exige uma apuração mais rápida possível. Temos de investigar a falha técnica e falta ética em relação ao tratamento, ao cuidado e ao respeito para com a paciente. Essa situação também é um alerta a todos os profissionais de saúde. O protocolo está aí, é distribuído em todos os serviços, os medicamentos são garantidos, os cursos de educação permanente são feitos e a orientação como um todo acontece. Todos nós sabemos da responsabilidade ética de todo profissional com qualquer paciente. Então, o alerta é que, à medida em que um  profissional tiver dúvida sobre como conduzir um caso como esse, acesse o protocolo, participe dos processos de educação permanente, dialogue com as áreas técnicas para que erros como esse não se repitam. É inadmissível qualquer tipo de erro técnico. A Autarquia Hospitalar já começou a apuração e também já foi instalada uma comissão para investigar o caso.  

Agência Aids: Nós publicamos essa matéria no dia 24 do mês passado. Ou seja, há 15 dias. O senhor pode nos dar uma previsão de quando termina essa apuração e quais medidas serão tomadas? 

Padilha: Essa denúncia é algo tão grave que a apuração precisa ser rigorosa e feita de maneira adequada. Quando chegarmos aos resultados, divulgaremos inteiramente as providências tomadas. 

Nós conversamos com grupos e ONGs que atuam no combate à violência obstétrica. Soubemos que uma a cada quarto mulheres são vítimas de violência obstétrica, seja essa psicológica ou física. No relato da jovem que teve o parto no Campo Limpo, houve uma causa a mais, que é o HIV. Então, além da violência já conhecida pelas ONGs houve o preconceito relacionado ao HIV. Existe algum programa de reciclagem e sensibilização para que isso não ocorra  nas unidades de saúde?

Esse dado é de uma pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo. Eu era ministro da Saúde quando a gente financiou essa pesquisa e toda a implantação da Rede Cegonha. Esse programa tem também a finalidade de sensibilizar e coibir qualquer prática de violência, seja ela física ou psicológica. E qualquer atitude que não seja condizente com o pré-natal e o parto humanizado. Inclusive, no período da implantação da Rede Cegonha, foi instalada uma ouvidoria específica para esse tipo de denúncia que funciona permanentemente na Secretária Municipal de Saúde.

Também instalamos a Carta SUS (Sistema Único de Saúde) que permite ao paciente que estiver internado a possibilidade de denunciar atos de desrespeito ou violência institucional. Tudo isso exatamente para que a gente não conviva com práticas de violência e falta de respeito no Sistema Único de Saúde.  Sabemos que existe racismo e preconceito institucional e nosso combate deve ser permanente. Por isso, a apuração desse caso tem de ser rigorosa e imediata, mas de maneira adequada para que tenhamos uma resposta correta e punição, se necessário. Inclusive, encaminhar ainds o caso para os órgãos de controle ético que são os conselhos regionais da profissão. 

É importante que as gestantes, as mulheres e os familiares saibam que se eles passarem por qualquer tipo de situação constrangedora ou desrespeitosa nos serviços de saúde, podem e devem denunciar. São essas denúncias que nos permitem punir os responsáveis.

O governo tem o projeto de descentralizar o atendimento aos soropositivos, levando-o para a atenção básica (AB). Com essa denúncia no Hospital Municipal do Campo Limpo, o que os soropositivos podem esperar da AB?

Esse caso chama a atenção para o fato de que o problema não é a atenção básica. Foi algo que aconteceu em um serviço hospitalar. As pessoas podem contar com todo o nosso esforço de educação permanente e de sensibilização. Qualquer denúncia e qualquer reclamação será acolhida e o profissional que fizer isso será fortemente punido. Eu, como secretário, não admito que isso aconteça e não vamos ignorar essa denúncia. Quando nós soubemos dela,  exigimos que a autarquia instalasse a sindicância imediatamente. Então, as pessoas podem esperar de mim um aliado para o combate de qualquer tipo de preconceito e desrespeito aos soropositivos ou qualquer outra pessoa que seja desrespeitada nos serviços de saúde. E, cada vez mais, vamos ter mais mecanismos de denúncia. Se, após a apuração, houver a necessidade de punição, ela será adequada e rigorosa. Que isso sirva de alerta: essa situação é inadmissível na nossa rede.

Pergunta para Eliana Gutierrez:

Com base no relato que a jovem nos deu,  o que os profissionais que trabalham no Programa que tem como função o combate ao HIV/aids e ao preconceito sentiram ao terem conhecimento dessa denúncia?

É um relato muito forte e muito impactante. Nós temos de acompanhar e aguardar a apuração, que é institucional. Independentemente de qualquer coisa que venha ser apurada, a gente tem de reconhecer que o parto dela foi motivo de sofrimento. Nós sabemos que o momento do parto é  especial na vida de qualquer pessoa e pelo relato dela podemos identificar que ela passou por um sofrimento muito grande. Esperamos que as próximas gestações dela sejam experiências melhores. Então, independentemente de qualquer apuração, expressamos nossa profunda empatia por essa jovem. 


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