Depois que famílias passaram a reivindicar na Justiça o direito de utilizar a cannabis sativa para uma série de enfermidades, a polêmica em torno da liberação de alguns compostos da maconha para uso medicinal e em pesquisas está longe de terminar. Há uma forte pressão para a autorização do seu uso medicinal, mas a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) resiste e alerta para o fato da ciência não ter mapeado todos os efeitos da droga.
O mais novo fato nessa disputa foi a publicação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, nesta segunda-feira (21), no Diário Oficial de uma mudança confusa em relação ao THC, o tetrahidrocanabinol, um dos compostos presentes na erva. O composto continua na lista de substâncias proibidas, mas o seu uso medicinal e para pesquisa foi formalizado, ou seja, “liberado” por decisão da Justiça. “Formalizado” e não regulamentado porque, em tese, uma lei anterior já previa o uso do composto para fins medicinais. Enfim, há uma espécie de imbróglio jurídico em relação ao satus da erva e seus derivados no País.
A confusão só aumenta, porque a agência diz que vai recorrer da decisão da Justiça. Saúde!Brasileiros aguarda esclarecimentos pedidos à agência sobre os motivos pelos quais entrará com recurso.
Em nota, a agência adiantou que vai recorrer da decisão porque o “Canabidiol e o o THC não possuem registros no Brasil e, portanto, não têm sua segurança e eficácia comprovadas”. O que não está claro ainda é que se antes o uso medicinal era permitido mediante autorização, porque a decisão da Justiça de retirar o produto da lista de substâncias proscritas no País muda o cenário e motiva um recurso? Segundo a própria Anvisa, mesmo com a nova resolução, o uso de substâncias derivadas da maconha ainda requer laudo médico e receita para a importação dos compostos.
Status do THC na Anvisa é objeto de disputa judicial. Foto: Ingimage
Por que tudo está confuso?
A confusão vem, em parte, porque a ressalva feita pela Justiça ao THC ocorreu à despeito da vontade da Anvisa. Foi uma resposta a uma ação judicial movimentada pelo Ministério Público que pediu, inicialmente, a retirada do composto da lista de substâncias proscritas. Eis que, depois de recorrer, a Anvisa conseguiu que o composto continuasse na lista de substâncias proibidas, mas teve que fazer uma ressalva. O THC virou um “composto especial”, com o seu uso medicinal formalizado na portaria.
Procurada por Saúde!Brasileiros, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) tenta explicar o imbróglio. A agência diz que possui uma portaria de 1998 que restringe o uso medicinal de substâncias proibidas no Brasil, e entre eles, estavam dois derivados da maconha: o tetrahidrocanabinol (o THC) e o canabidiol (o CBD).
Só que uma lei “muda” essa portaria e permite que todos os compostos da lista de substâncias proscritas possam ser utilizados em situações especiais, entre elas para fins medicinais, de pesquisas e religiosos, desde que autorizado por autoridade competente. A Agência enviou, por e-mail à Brasileiros, trechos da lei 11.343 (o negrito e itálico são da própria Anvisa):
Lei 11.343
Art. 2o Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.
Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.
Art. 31. É indispensável a licença prévia da autoridade competente para produzir, extrair, fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em depósito, importar, exportar, reexportar, remeter, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir, para qualquer fim, drogas ou matéria-prima destinada à sua preparação, observadas as demais exigências legais.
Então, o que parece mediar esse “possível” avanço visto por ativistas não é necessariamente a “letra da lei”. O que parece estar ocorrendo é uma lenta desburocratização do uso medicinal, com leis e resoluções que vão se sobrepondo umas às outras, sem uma mudança estrutural efetiva –até porque o plantio e cultivo de maconha ainda é crime no Brasil.
Mesmo a descriminalização do seu uso também é objeto de controvérsias. Não há uma definição sobre a quantidade para que seja possível diferenciar uso pessoal de tráfico. Esse imbróglio corre no Supremo Tribunal Federal.
Para ativistas, há avanços
Apesar da confusão, ativistas pró maconha medicinal consideram que houve um avanço prático. Ele incide sobre o fato de que cada vez mais o uso medicinal da maconha vai sendo desburocratizado. A medida foi comemorada por Norberto Fischer, pai de Anny Fischer, portadora da síndrome CDLK5, tipo de epilepsia refratária que compromete muito o desenvolvimento.
Em 2014, a família Fischer motivou uma disputa para poder tratar a doença de Anny com o canabidiol. Um intenso ativismo se pôs em curso. O documentário “Ilegal” foi filmado, a rede Repense foi criada e a luta culminou na regulamentação da substância pelo Conselho Federal de Medicina.
“A gente percebe que a cultura está mudando, que o preconceito em relação a planta está mudando. As pessoas estão tendo mais conhecimento sobre o assunto. Esse é mais um avanço e acredito que vamos caminhar para uma regulamentação completa em relação ao uso de derivados da maconha”, disse Norberto Fischer à Saúde!Brasileiros.
Uso medicinal do THC e ciência
O THC já é o princípio ativo de uma série de medicamentos, como o Sativex, que trata a dor crônica e espasmos musculares na esclerose múltipla. O composto está aprovado na França, Reino Unido, Espanha e Canadá, por exemplo, e aguarda há um ano uma resposta sobre o seu registro no Brasil na Anvisa.
O Marinol, já aprovado no FDA, Estados Unidos, também tem THC na forma sintética (dronabinol) e é usado para amenizar a perda de apetite associada à Aids. O medicamento também é usado para tratar náuseas e vômitos durante a quimioterapia.
Na Holanda, o Bedrocan tem mais de 22% de THC e é liberado para aliviar a pressão intraocular no glaucoma. O medicamento também é utilizado no Canadá e vem importado da Holanda.
O Cesamet é outro medicamento que contém THC sintético (nabilona) na sua formulação. Ele também trata náuseas durante a quimioterapia. Atua como analgésico e alivia dores crônicas na fibromialgia.
Segundo a nova portaria da Anvisa, todos esses medicamentos poderão ser importados. Eles não possuem registro no Brasil. Cabe salientar que nenhum medicamento a base de maconha possui registro no Brasil – seja ele a base de THC ou de canabidiol.
A Anvisa diz, no entanto, que há produtos à base de Canabidiol e THC que não são não registrados como medicamentos em seus países de origem. “Assim sendo, não é possível garantir a dosagem adequada e a ausência de contaminantes e tampouco prever os possíveis efeitos adversos, o que implica em riscos imprevisíveis para a saúde dos pacientes que os utilizarão, inclusive com reações adversas inesperadas.”
Para saber mais
A publicação no Diário Oficial
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/111534809/dou-secao-1-21-03-2016-pg-28
A nota da Anvisa
A decisão judicial
http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/docs/decisao-embargos-cannabis
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