Um ato em Brasília no dia 14, outro em São Paulo (18) e mais uma manifestação na estreia do Fórum Social Mundial, nesta terça-feira (19), em Porto Alegre. Isso só em janeiro. No Distrito Federal, uma ocupação segue firme desde dezembro dentro da sala da Coordenação de Saúde Mental e no gramado em frente ao Ministério da Saúde.
Dentre os ativistas, estão profissionais da saúde, psicólogos, médicos e usuários do serviço de saúde mental. A luta se arrasta desde o final do ano passado. Manifestantes pedem a destituição do psiquiatra Valencius Wurch do cargo de Coordenador Nacional de Saúde Mental. Wurch representaria um retrocesso ao ser, segundo ativistas, favorável ao manicômio.
Na esteira da nomeação, psicólogos querem a garantia da continuidade da reforma psiquiátrica, lei vigente no Brasil desde 2001. A reforma representa o fim do modelo baseado na hospitalização. Nela, o manicômio sai do centro da assistência e vira um recurso limitado, só adotado em último caso e por tempo determinado.
A lei insere uma série de princípios éticos e de direitos humanos para a saúde mental. Ela regulamenta que a internação involuntária, por exemplo, deve ocorrer sob supervisão do Ministério Público.
“Para os trabalhadores e usuários, é muito claro o ganho da reforma psiquiátrica. Esse novo modelo faz muita diferença na vida das pessoas”, diz à Saúde!Brasileiros Elisa Zaneratto Rosa, presidente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. “Estamos preocupados com o retrocesso de uma política que foi duramente conquistada.”
O nó todo está no seguinte: depois da indicação do psiquiatra, movimentos consideraram que a reforma psiquiátrica está ameaçada. Mas o Ministério da Saúde diz que, por ser lei, não há ameaça alguma e Wurch continua.
Só que, pela história pessoal do coordenador, o movimento quer garantias de continuidade da reforma e a destituição dele do cargo; já o governo, diz que essa garantia não é necessária.
Mas cabe detalhar melhor que história do psiquiatra é essa e o que está em jogo.
(Para saber mais sobre a progressão dessa demanda, confira as reportagens da Saúde!Brasileiros. Há textos sobre as diversas notas de repúdio de instituições no Brasil e o início da ocupação, no dia 15 de dezembro. Reportamos, também, como ativistas passaram o fim de ano em Brasília)
Por que os movimentos sociais estão preocupados?
Valencius foi o diretor do maior manicômio privado da América Latina, a Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. A instituição foi fechada por ordem judicial em 2012 após anos de denúncias sobre violações dos direitos humanos.
“Havia prática sistemática de eletroconvulsoterapia, ausência de roupas, alimentação insuficiente e de má qualidade e número significativo de pessoas em internação de longa permanência”, relatou a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, em nota de repúdio à nomeação de Wurch divulgada em dezembro.
O medo dos ativistas é que a nomeação do psiquiatra indique um retrocesso dessas conquistas, dado o seu histórico pessoal. “O ministro está se mostrando irredutível e colocou uma pessoa na coordenação que é claramente contra a reforma psiquiátrica, que é uma conquista histórica”, disse um dos coordenadores dos atos em São Paulo, que não quis se identificar.
Para o ministério, entretanto, a entrada de Wurch não indica um retrocesso na reforma psiquiátrica, muito pelo contrário, a sua nomeação vem para reforçar a política, diz a pasta.
O Ministério da Saúde relata ainda que “não vai admitir retrocessos na política em desenvolvimento.”
Também a biografia divulgada pelo ministério de Valencius é outra, bem diferente da colocada pelos ativistas e por organizações como a Abrasco e o Conselho Federal de Psicologia. A pasta fala que, dentro da Casa de Saúde Eiras, Valencius trabalhou em “prol da humanização na entidade.”
Segue na íntegra a nota do Ministério da Saúde enviada à Saúde!Brasileiros por e-mail:
“A Política Nacional de Saúde Mental desenvolvida pelo Ministério da Saúde tem por objetivo consolidar um modelo de atenção à saúde aberto e de base comunitária, promovendo a liberdade e os direitos das pessoas com transtornos mentais.
Em consonância com a Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2001), o Governo Federal tem impulsionado a construção de um modelo humanizado, mudando o foco da hospitalização/segregação e promovendo tratamento às pessoas com transtornos mentais e decorrentes do uso de álcool e drogas com base em um modelo de cuidados voltado para a reinserção social, a reabilitação e a promoção de direitos humanos.
A escolha do novo coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, o médico psiquiatra Valencius Wurch, vem reforçar essa política. Wurch participou das discussões que culminaram na Reforma Psiquiátrica, amplamente debatida pela sociedade e aprovada pelo Congresso Nacional.
O Ministério da Saúde considera a Reforma Psiquiátrica uma conquista do setor e não admite retrocessos na política em desenvolvimento. Ainda, deve ser observada que sua implementação está garantida por lei, que prevê assistência multiprofissional e estruturas adequadas para a complexidade do setor, o que requer desde a atenção ambulatorial até os leitos de retaguarda nos hospitais gerais.
O novo coordenador atua há 33 anos na saúde pública, tendo ingressado no Ministério da Saúde após a extinção do antigo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Entre 1993 e 1998, Dr. Valencius foi diretor da Santa Casa de Saúde Dr. Eiras, onde trabalhou em prol da humanização do atendimento na unidade. Além da prática médica, Wurch também atuou na área acadêmica, exercendo a função de professor de psiquiatria e coordenador de Internato e Residência da Universidade Federal Fluminense (UFF).”
Coordenador sugere em entrevista que retomada de leito psiquiátrico é inevitável
Embora o ministério afirme que Valencius vem para reforçar os preceitos da reforma psiquiátrica, é notória uma entrevista que o médico concedeu ao Jornal do Brasil em junho de 1995, criticando a lei que extingue os manicômios. No texto, ele afirma que os fundamentos que nortearam a reforma “são de caráter ideológico e não técnicos e se baseiam em situações ultrapassadas.”
O psiquiatra cita experiências em que a retomada do leito psiquiátrico foi necessária. Diz o texto: “Segundo o especialista, tanto os Estados Unidos, quanto a Inglaterra retomaram o atendimento hospitalar diante do fracasso da experiência [da reforma].”
Amigo do ministro?
Para ativistas e psicólogos, um dos problemas da indicação do Valencius está na decisão “pessoal demais” do Marcelo Castro, ministro da Saúde. Segundo eles, é a primeira vez que um ministro quebra um pacto com a sociedade civil, de só nomear coordenadores com o histórico de luta a favor da reforma psiquiátrica.
“Nenhum outro ministro sofreu tanta resistência e isso ocorre porque ele quebrou um pacto histórico com a sociedade civil”, diz Ivarlete Guimarães de França, psicóloga e integrante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Manicomial (Renila).
Ivalerte atuou como psicóloga na rede pública durante 32 anos e assistiu de perto as conquistas da reforma psiquiátrica. Ela foi uma das integrantes do ato no Fórum Social Mundial e também integra o Fórum Gaúcho de Saúde Mental.
A posição do ministro deve ser repensada, relata Ivalerte, e uma nova nomeação deve ter como base o respaldo do nome no corpo de atenção à saúde mental no País. “Nas audiências que foram feitas, ele diz que Valencius é da confiança dele, um amigo, mas não é assim que funciona”, diz.
“Nós estamos defendendo uma política nacional consolidada no Brasil e construída com toda a sociedade, e o ministro nos aponta, que vai nomear alguém simplesmente porque é amigo dele.
A gente entende que, para conduzir uma política dessa complexidade, deve se ter mais atributos que simplesmente ser amigo do ministro. O nome deve ter respaldo na sociedade”, ressalta.
Novos protestos e retomada do diálogo
Sem sucesso no Ministério da Saúde, o movimento antimanicomial pediu agora uma audiência na Casa Civil. “Esperamos que alguém se sensibilize com a nossa demanda. A gente sabe que todos os canais de pressão são importantes ”, diz Ivalerte.
Por hora, a ocupação segue em Brasília e novos protestos estão planejados. Em São Paulo, o próximo é no dia 18 de fevereiro. O dia 18 é escolhido porque nessa data, em maio, é comemorado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
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