Imagine a seguinte situação: alguém não está conseguindo pagar o aluguel e diz para o locador que ele, locatário, teve que escolher entre pagar o aluguel ou comprar comida. Nessa equação, comida foi considerada o mais importante e o aluguel, infelizmente, vai ficar para depois. O motivo foi explicado, mas não tirou do locador o direito de receber o dinheiro.
É mais ou menos isso que o Estado está fazendo com alguns dos nossos direitos – e com áreas essenciais como a saúde pública. Diz que não há dinheiro para assegurar direitos, mas importante não perder de vista que direito continua sendo direito mesmo que supostamente haja uma explicação para que eles sejam negados.
Antes, cabe explicar porque uso o “supostamente”. Ora, os problemas de saúde pública se repetem e são procrastinados ao longo do tempo – independente da saúde financeira do Estado. Há dez anos, não havia médicos, leitos e remédios para todos e hoje as reclamações não são diferentes: o paciente não consegue agendar uma consulta ou exame, não encontra vaga no hospital e a farmácia do governo não tem o medicamento receitado pelo médico.
Isso cria um cenário de carência generalizada que atinge a todos. Quem pode, paga com recursos próprios e contrata um plano de saúde privado, pagando muito caro por isso. Quem não pode, é obrigado a esperar na fila enquanto a doença se agrava – a doença que lhe aflige a saúde e a doença que mata, pouco a pouco, o próprio sistema público de saúde.
Parece que o governo se acomoda no argumento de que não há dinheiro, de que o que é público tem que ser deficitário, para negar direitos. O descaso com direitos se arrasta também para as críticas feitas às ações judiciais que pedem, na Justiça, que o Estado banque terapias e medicamentos não disponíveis no SUS – no fenômeno conhecido como “judicialização da saúde”.
O fenômeno também é uma consequência da carência geral. Como o Estado não oferece saúde com qualidade e eficiência, a solução para aqueles que não podem esperar é recorrer aos familiares, às organizações não governamentais ou procurar por outras opções terapêuticas cujo custo caiba no bolso. Há casos, porém, em que essas alternativas não estão disponíveis.
Assim, o cidadão que está doente ou vê seus pais ou seus filhos nessa condição, sem poder contar com o atendimento médico necessário, acaba recorrendo ao poder judiciário, pois, afinal de contas, que pai ou mãe deixaria de fazer tudo por um filho?
É inacreditável o que se tem dito hoje em relação a isso: culpam o paciente pela judicialização da saúde e não o governo, este sim, incapaz de oferecer o serviço “contratado” pelo cidadão que paga imposto.
A alegação de que “não há remédios para todos” não é argumento de defesa para o Estado. Isso pode, no máximo, ser entendido como uma explicação do motivo do descumprimento da obrigação, mas não como um argumento que autoriza o poder público a não custear o tratamento.
Corrupção e “escolhas de direito”
Tudo só se agrava pelas denúncias de corrupção cada vez mais evidenciada nas esferas dos governos municipal, estadual e federal. Só nesta semana foi deflagrada no Amazonas a operação “maus caminhos”, do Ministério Público Federal, que apura o desvio de mais de R$ 110 milhões dos recursos destinados ao SUS naquele Estado.
Experimente explicar a um paciente que ele não terá direito ao tratamento porque o valor necessário para tratá-lo pode ser utilizado para beneficiar muito mais pessoas ou até mesmo pessoas com maiores chances de cura em meio a esse cenário de corrupção generalizada.
Ao juiz, também não cabe analisar se deve decidir por ajudar a melhorar a qualidade do final de vida de uma pessoa ou se nega o pedido para que os recursos que seriam utilizados para custear esse tratamento sejam repassados para outras finalidades que possam salvar mais vidas.
O juiz tem que aplicar a lei e nela está escrito, com todas as letras, que o cidadão tem direito ao tratamento médico – é a tal frase clichê, embora verdadeira, de que “A saúde é um direito de todos e dever do Estado”. Mais do que slogan político de inúmeras campanhas eleitorais, a frase está em nossa Constituição Federal, lei máxima de nosso País.
O juiz não faz “escolhas de Sofia”, mas sim “escolhas de direito”. Se o poder público tiver justificativa legal para negar a cobertura do tratamento, assim deve decidir o juiz. Quando não houver essa justificativa, o pedido do paciente deve ser concedido pela Justiça e cabe ao Estado encontrar soluções para garantir a efetividade dos direitos do cidadão.
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