A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) de liberar o consumo da fosfoetanolamina sintética, droga anticâncer distribuída gratuitamente há mais de uma década na USP, está gerando um debate intenso. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) diz que a droga não possui estudos conclusivos, nem registro.
Também a USP de São Carlos reagiu à decisão, com uma carta em que menciona que a universidade “não possui acesso ao conhecimento para a produção da substância, produzida por parentes”, nem “médico disponível para orientação”.
Segundo o presidente do TJ-SP, desembargador José Renato Nalini, em decisão que liberou a substância neste mês, “apesar de não ter estudos conclusivos (…), não se podem ignorar os relatos de pacientes que apontam melhora no quadro clínico.”
O próprio desembargador chegou a proibir a entrega da substância no dia 29 de setembro. Nesse meio tempo, no entanto, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela liberação da substância para um determinado paciente e o TJ-SP reviu sua decisão.
Nos autos do TJ-SP, o desembargador cita uma contraposição de princípios fundamentais: de um lado, a necessidade de resguardo da legalidade e da segurança dos procedimentos; do outro, necessidade de proteção do direito à saúde.
Para que uma decisão seja tomada, diz o desembargador, em princípios muitas vezes de igual peso, um deve se sobrepor sobre o outro. “Conquanto legalidade e saúde sejam princípios igualmente fundamentais, na atual circunstância, o maior risco de perecimento é mesmo o da garantia à saúde.”
Segundo a decisão do TJ-SP, prevaleceu o entendimento que levou a liberação do composto. “Por essa linha de raciocínio, que deve ter sido a que conduziu a decisão do STF, é possível a liberação da entrega da substância”, escreveu.
A substância chamou a atenção de autoridades. No Senado, ela será objeto de audiência pública. Também o senador Ivo Cassol (PP-RO) defendeu no início do mês a liberação do medicamento e informou que pediu audiência na Anvisa para avaliar um possível registro.
Segundo a Agência Senado, Cassol disse que visitou a USP de São Carlos e também cobrou do governo mais incentivo à pesquisa com a substância. Também mencionou a boa vontade dos pesquisadores em “doar a droga para o SUS.”
Reação da USP e problemas de regulação
A substância que promete curar o câncer foi distribuída por mais de uma década, mas teve seu fornecimento barrado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Ela era dada pelo professor Gilverto Orivaldo Chierice, hoje aposentado. Segundo a USP, o docente “doava” o medicamento por decisão pessoal.
Sem fornecimento por decisão da Anvisa, as pessoas que tomavam ou queriam o medicamento entraram na Justiça em agosto e, com a decisão, a USP se viu obrigada a produzir a substância para atender à demanda.
A circunstância gerou um conflito regulatório. A Anvisa prevê a autorização e o acesso a medicamentos que ainda não tiveram ensaios clínicos concluídos ou obtiveram registro. Porém, na maior parte dos casos, estudos de fase III (já em humanos) precisam estar em curso ou concluídos.
O problema é que, embora haja indícios de benefícios, o composto não foi testado em um protocolo de estudo para avaliar seus efeitos no câncer em humanos –mesmo que haja evidências publicadas sobre a ação da fofoetanolamina no câncer em laboratório e em camundongos e na luta contra outras doenças.
Este ano, a Nature publicou artigo em que mostra indícios da substância em questão no combate ao agente causador da malária.
Pela legislação brasileira, uma droga como essa só é aprovada se feito um estudo clínico que a compare com um placebo (substância sem efeito) ou com medicamento já usado no tratamento convencional.
Em face da polêmica e com o professor que distribuiu o medicamento já aposentado, a USP de São Carlos divulgou carta de esclarecimentos em que pouco responde. Apenas cita que “não possui dados sobre a eficácia da sustância” e “não dispõe de médico para orientar e prescrever a utilização.”
A seção de perguntas e respostas, no final da carta, é igualmente obscura. A USP, no entanto, lamenta “quaisquer inconvenientes causados às pessoas que pretendiam fazer uso da fosfoetanolamina com finalidade medicamentosa.”
E salienta que “não pode se abster do cumprimento da legislação brasileira e de cuidar para que os frutos das pesquisas realizadas cheguem à sociedade na forma de produtos comprovadamente seguros e eficazes.”
A possível ação do composto
O site de notícias G1 divulgou em agosto relatos sobre o sucesso da droga e de pessoas desesperadas na busca pelo medicamento. O portal também relata as várias tentativas dos pesquisadores da USP de realizar parcerias para mais estudos. Menciona ainda pessoas que criaram uma rede alternativa de distribuição.
Segundo o G1, as pesquisas com o composto começaram nos anos 1930 (artigos recentes sobre a droga relatam um outro, usado como referência, publicado na Nature nos anos 1950 sobre a ação da substância em tumores bovinos). As pesquisas da USP são dos anos 1990. O mecanismo de ação do composto seria sobre o sistema imunológico.
No site, um dos pesquisadores relata que a característica de um tumor é ter citoplasma ácido (espaço dentro da célula, preenchido por um fluido), DNA modificado e pouco ATP (composto que armazena energia; quando necessário, ele é quebrado para que o corpo funcione)
Na célula, o citoplasma e mitocôndria (estrutura responsável pela respiração celular) produzem energia. Só que a mitocôndria não funciona se o citoplasma estiver ácido porque ela precisa de gordura – que não se ‘transporta’ em meio ácido. O que a fosfoetanolamina proporcionaria é a devolução da gordura, permitindo à mitocôndria funcionar normalmente nas células tumorais, o que combateria o câncer.
Deixe um comentário