O começo dessa história todos sabem. Está no desemprego, nos protestos e no aumento de preços. É o cenário político e econômico conturbado que dá o tom dos cortes e das perdas históricas para o Sistema Único de Saúde. À pressão por cortes de gastos imediatos, soma-se uma agenda que quer tirar a saúde das costas do governo permanentemente.
Se o modelo de financiamento que estipulou uma nova base de cálculo para o orçamento da saúde for implementado, o SUS pode chegar ao colapso no ano que vem. Essa é avaliação de especialistas e parlamentares ligados à saúde pública ouvidos pela Saúde!Brasileiros.
O caminho da derrocada, ponderam, não é de agora: a falta de dinheiro para o SUS é histórica e vem de longe. Desde sua instituição com a Constituição de 88, nenhum governo garantiu financiamento necessário para a universalização da saúde pública.
Os entraves são inúmeros. Financiamento de campanhas políticas por planos de saúde, mudanças necessárias na legislação, falta de vontade política para garantir um orçamento viável e até a crença de que o SUS é só para pobre.
Nesta reportagem, segue uma tentativa de mapear a crise financeira e explicar como chegamos até aqui. Prepare-se porque o caminho é longo. Mas com a mesma coragem do SUS, vamos juntos tentar entender todo esse imbróglio.
Subfinanciamento histórico
Se pudéssemos explicar o porquê do SUS ser ineficiente, a resposta seria: “Não tem dinheiro. Há mais demanda que recursos”
Claro que problemas de gestão são importantes, contemporizam especialistas, mas o cerne do problema mesmo é que a conta do SUS nunca fechou. “Não tem jeito da conta fechar do jeito que está. Nunca. O SUS só é universal como conceito”, afirma Ana Maria Costa, presidente do Centro de Estudos em Saúde (Cebes) e professora da Escola Superior de Ciências da Saúde-ESCS/DF. “O sistema sempre sofreu com o subfinanciamento. ”
E por que faltam recursos? Alguns alegam que o governo federal nunca enxergou o SUS como prioridade, não discute o pagamento da dívida pública e, por isso, o sistema é historicamente subfinanciado. Outros defendem que o dinheiro precisa vir de outro lugar, da cobrança direta mesmo, ou que o setor privado atenda a demanda que o SUS não consegue cobrir.
Esse debate é histórico. Mas um fato recente fez com que uma dessas propostas voltasse à cena com força total. O SUS foi um dos pontos da “Agenda Brasil”, o pacote anticrise apresentado por Renan Calheiros, presidente do Senado, à Dilma Rousseff. O pacote estabelecia a cobrança por serviços de saúde –o que acaba, na prática, com o SUS.
A proposta do Senado aparentemente caiu, mas o projeto do SUS não está ileso. “O fantasma continua”, diz Ana Costa. Para os defensores do SUS como Ana, o pacote anticrise era o pior que poderia acontecer, mas muita coisa ruim vem nocauteando o sistema desde o início do ano.
“Tivemos péssimas notícias para o SUS. E é um momento difícil, o governo está suscetível ao lobby e o SUS nunca esteve tão ameaçado”, diz Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
A crise e o SUS
De fato, o SUS amargou grandes perdas com a crise política e econômica antes do pacote Renan entrar em cena. A lista é longa. São essas as más notícias citadas pelo professor da USP:
Começou no orçamento da saúde. Este ano, a LOA (Lei Orçamentária Anual) determinou que R$ 103, 3 bilhões fossem destinados à pasta, mas só 91,5 bilhões foram executados. Um corte de 11,8 bilhões.
O economista Carlos Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) lembra, no entanto, que esse corte não necessariamente incide sobre serviços públicos de saúde, mas na totalidade do orçamento do Ministério da Saúde.
“Claro que, de forma indireta, essa falta de dinheiro vai impactar e afetar políticas que são importantes para o SUS”, diz. O especialista faz uma outra ressalva: o governo injetou R$ 3 bilhões diretamente na saúde para tentar cobrir o rombo.
A arrecadação de impostos e a distribuição entre as esferas é um outro gargalo. O financiamento do SUS é feito por contribuições sociais e por meio de tributos. Historicamente, no entanto, o governo federal vem diminuindo a porcentagem de tributos que repassa à saúde, dando espaço a maior contribuição municipal e estadual.
Essas contribuições não vão para o país inteiro. Pesa ainda o fato de que estados e municípios têm menos participação nos impostos do que o governo federal e com o ajuste fiscal esse cenário fica ainda pior.
Também no primeiro semestre de 2015, foi aprovada a Lei 13.097/2015 que permite a exploração do capital estrangeiro na saúde, inclusive aquele sem fins lucrativos (da Santa Casa, por exemplo).
Isso leva, segundo defensores do SUS, a uma apropriação do fundo público sem a contrapartida da fiscalização do sistema. Outro problema, dizem, é a oferta de um sistema falho e limitado que visa apenas o lucro e a exploração do setor (leiam esta carta da Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
A outra má notícia para o SUS foi a Emenda Constitucional 86/2015, aprovada em sessão comandada por Renan Calheiros, que alterou o cálculo base para o dinheiro destinado à saúde.
A emenda prevê que a União chegue progressivamente a um gasto de 15% da Receita Líquida (RCL) com saúde em 2020. A RCL representa a soma de todos os tributos arrecadados pelo governo, menos as transferências estabelecidas pela Constituição.
Hoje, o gasto com a saúde é calculado pela variação nominal do PIB (grosso modo, o cálculo de quanto o Brasil cresceu no ano anterior) sobre o valor do orçamento da saúde empenhado (quanto o governo reservou para gastar com a área).
Para o economista do Ipea, se a RCL for o único cálculo para 2016, será o fim do SUS. “Não dá para adotar porque o orçamento vai ser menor que antes. Será um desastre para o sistema.”
O melhor, explica Ocké-Reis, é que o gasto continue sendo calculado como anteriormente. Os números também não negam. Se fizéssemos um exercício de calcular o orçamento do ano passado com base no que foi aprovado na Emenda 86, ele representaria 14,38% da RCL. Isso dá uma ideia do rombo que pode estar por vir: segundo a emenda, o previsto para 2016 é 13,2% e o governo só vai chegar a 15% em 2020 (o que dá quase o mesmo orçamento de 2014!)
“Para ser minimamente realista, será preciso fazer um acordo para continuar com o cálculo anterior e repensar essa alíquota para que chegue a 19% em 2017 já”, diz. “E isso é uma postura meramente defensiva, que só garante o mesmo orçamento. Nem estou falando de resolver o problema do SUS.”
O especialista diz que uma outra saída é que se aumente a contribuição de quem de fato está lucrando com a crise: o capital financeiro. “Uma forma é discutir a contribuição sobre o lucro líquido do setor financeiro, que é quem está ganhando muito com o aumento da taxa básica de juros.”
Tudo culpa do PT?
Governo com problemas e Congresso cheio de lobistas produzem combinação emocionante – e não no bom sentido
“Quanto mais encurralado fica o governo Dilma, mais ele vai defender a agenda conservadora, e mais refém vai ficar dos lobbys dos planos de saúde no Congresso, que não são poucos” diz Ivan Valente, deputado federal pelo PSOL.
Já outros parlamentares acreditam que o cenário conturbado no Congresso e o ajuste fiscal não justificam os cortes na saúde que, por ser prioritária, não poderia ter sido atingida.
“Pode cortar onde for, mas estamos falando da vida humana. Vamos ser responsáveis pela morte de pessoas. Dinheiro para a Copa e para a Olimpíada sempre aparece”, diz Welson Gasparini, deputado estadual pelo PSDB e membro da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa de São Paulo.
Antes do ajuste fiscal, no entanto, lembra Cláudio Ocké-Reis, o governo aumentou os gastos reais com os serviços de saúde. “Os governos petistas poderiam ter avançado mais em reformas estruturais”, diz. “Mas não se pode negar que houve um aumento real com serviços de saúde até 2012, tempo de crise internacional.”
Reformas culturais: o SUS não é só para pobre
Junto com a derrocada do SUS, o País viu crescer o mercado privado e os subsídios governamentais para o setor
Dados da PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios) mostram que em 1981 o governo pagava 68% dos atendimentos. Só 9% vinha de plano e 21% do próprio bolso. Em 2008, o financiamento público caiu para 56%, enquanto o do plano cresceu para 21% e o do pago por cidadãos para 19%.
Para Ana Maria Costa, do Cebes, o crescimento da participação do mercado privado na saúde é o resultado de uma agenda politica que vê no subfinanciamento do SUS uma reserva de mercado. “Muita gente não quer que o SUS funcione”, diz. “Só interessa o SUS para pobre e para tratamentos que os planos não querem arcar.”
Outro motivo apontado pelo Cebes são os subsídios aos planos dados ao longo do tempo, como o que permite a dedução dos serviços de saúde no IR. Para o centro de estudos, esse dinheiro deveria ser usado para financiar o SUS.
Pouco movimento político tem sido feito, denuncia o Cebes, para que os planos paguem ao SUS os procedimentos feitos no sistema público por seus clientes. A dívida dos planos está avaliada em R$ 742 milhões esse ano, de acordo com levantamento do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor).
Tudo isso, acredita Ana, põe ainda mais em xeque a universalidade do SUS e o tira do espaço público e político. “Devido ao subfinanciamento, o povo naturalmente vê falta de qualidade no SUS, não confia no SUS”, diz.
“E aí cria-se a fantasia de que é o sistema privado que vai dar segurança para a saúde, mas isso não corresponde à realidade, porque o plano não paga tratamentos complexos, porque a saúde para o idoso é caríssima.”
“O caminho para o SUS passa por reformas culturais, de parar de enxergar que o SUS é para pobre ou só para tratamento de alta complexidade”, diz Ocké-Reis.
A necessidade de reforma tributária também é citada pelo economista como um pressuposto importante para o funcionamento saudável da saúde. “Quando você tributa menos o consumo e mais o patrimônio e a riqueza, você gera mais uma possibilidade para superar o gargalo do SUS.”
Já para o deputado Welson Gasparini (PSDB-SP), membro da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa, a questão para salvar a saúde passa, inclusive, pelo corte de Ministérios. “Não precisa de tudo isso, para quê 39?”, questiona.
O deputado defende também que se investigue a defasagem da tabela SUS, padrão de referência para pagamento de serviços prestados pelo setor privado e filantrópico à rede pública de saúde. “Há indícios de que ela está há mais de 10 anos defasada.”
“O que é preciso discutir é o ressarcimento dos planos ao SUS”, afirma Ana Costa.
Os caminhos para resgatar o SUS
O SUS, segundo o Cebes, precisaria de uns R$ 200 bilhões anuais para funcionar de forma saudável, bem acima dos R$ 82 bilhões atuais do pós-ajuste.
Para isso, o centro de estudos dá algumas ideias. A tributação de grandes fortunas e o fim da renúncia fiscal (pelo abatimento dos serviços de saúde privados no imposto de renda) são algumas.
O economista do IPEA apoia as sugestões do Cebes. “Isso pode atrair a clientela da medicina privada para o SUS e ela podem entender com isso que vai gastar menos com serviços de saúde”, diz o economista. “Mas isso deve acontecer simultaneamente ao maior gasto público no setor, porque você precisa ganhar politicamente as pessoas.”
Outra bandeira é que se coloque o orçamento da saúde atrelado à seguridade social, como previsto na Constituição. Lá, segundo Ana Costa, estima-se que 25% do orçamento da seguridade vá para a saúde, o que, segundo ela, chegaria em torno de R$ 160 bilhões, mais perto do que o SUS precisa.
“Além do caráter material de se atrelar a saúde à seguridade, há um argumento conceitual. Dada a pobreza e as desigualdades regionais, é importante olhar a seguridade como um todo. A saúde é, assim, mais um fator de garantia dessa qualidade de vida junto com outros parâmetros”, argumenta o economista.
“Isso tudo é importante, mas ainda é insuficiente. O SUS precisa de muito dinheiro para compor o financiamento adequado, não tem pré-sal que dê conta”, diz Mário Scheffer, da USP.
A coragem de discutir a dívida pública
O Cebes concorda que o dinheiro é insuficiente, mas é aí que entra o caminho mais difícil e polêmico: a negociação da dívida pública.
“O Brasil gasta um volume muito grande de recursos públicos com o pagamento de juros (10%) e amortização da dívida (8%), contra apenas 6% para a saúde”, diz Ana Costa.
“O pagamento da dívida é sagrado no Brasil e o montante de recursos destinados é gigantesco”, diz Ivan Valente. “Ninguém discute isso.”
A dívida pública atingiu R$ 2,32 trilhões em março de 2015, o que representa 42% do valor do PIB de 2014, de R$ 5,5 tri. A luta popular por mais financiamento para a saúde, que desembocou no movimento Saúde + 10, pede 10% do PIB.
Referências:
PAIM, J.S. O que é o SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.
ALMEIDA, C.M; BAHIA, l; MACINKO, J.; PAIM, J.S; TRAVASSOS, M.C.R. O sistema de saúde brasileiro em “Saúde no Brasil a série The Lancet, 2011. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2011
“SUS público e integral não é prioridade do governo federal, diz economista” em http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25628:2015-07-23-17-35-14&catid=3. Acesso em 03 de agosto de 2015.
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