Já faz quinze anos que Alice Davanço Quadrado perdeu a filha Eliana em um acidente de moto. O primeiro ano após a morte da filha, que tinha 25 anos, foi o mais longo e pesaroso. Foi nesse período, em que se sentiu muito sozinha, que ela decidiu montar um grupo de apoio com outros pais em luto, ou enlutados em geral, para ter um espaço de troca de experiência.
O grupo Casulo foi criado em 2001 e, desde então, oferece esse espaço voluntariamente para quem precisa de amparo. Outra forma de lidar com a dor foi através da escrita. A pedagoga sempre gostou de escrever e mantinha seus diários. “Um dia, meu terapeuta sugeriu que eu passasse a limpo o que tinha escrito sobre ela. E meu filho, que é jornalista, me incentivou a publicá-lo”, conta Alice, autora de “O Perfume de Eliana”.
Terapia, grupo de apoio, livro – foram muitas as armas de Alice para se proteger da sensação aterradora provocada pela ausência da filha. “Cada um tem sua forma de lidar, mas é importante aumentar sua rede de apoio”, diz, com a experiência de quem não só viveu, mas abraçou muitas mães em luto na década e meia de Grupo Casulo. E a dor, avisa Alice, nunca passa. “Você só tem que arranjar um lugarzinho no coração para ela”.
Falar sobre a dor, encarar a morte, viver o luto. Essas ações são todas ainda muito tímidas no Brasil, mas esse cenário vem mudando. Quando estava em busca de um tema para seu doutorado, no início dos anos 90, a psicóloga Maria Helena Franco andava intrigada com casos de mortes de entes que ocorriam na sequência: como o infarto que matou o poeta Carlos Drummond de Andrade apenas doze dias após a morte de sua filha, Maria Julieta, que morreu de câncer. “O que leva as pessoas a morrerem logo após a morte de uma pessoa próxima?”, questionou-se na época.
Pensando nisso, mergulhou na literatura estrangeira (não havia muita coisa sobre o tema no Brasil), fez as malas, partiu para a Inglaterra e, uma vez lá, descobriu um universo muito maior: o processo do luto. Quando voltou, não queria que sua tese fosse mais uma arquivada nas prateleiras da universidade. Tomou a frente na criação do Laboratório de Estudos sobre o Luto (LELu), um espaço de estudos e atendimento clínico dentro da PUC-SP.
“No começo, tivemos que divulgar muito e pedir que nos enviassem pacientes”, recorda. “Hoje, sempre há fila de espera”. Dois anos depois, na ânsia de querer fazer mais, criou o 4Estações, uma clínica particular especializada em perda e luto, com mais cinco psicólogas (hoje são quatro sócias). Maria Helena é uma das pioneiras nos tratos e tratamentos do luto. E confirma: estamos aprendendo a falar mais sobre o tema.
Tanto que grupos como o Casulo brotaram nos últimos vinte anos. Alice, que foi buscar referência em Portugal para criá-lo, fica feliz em ver que sua semente germinou. Um desses grupos, criado em 2014, propõe já em seu nome um desafio a todos: Vamos falar sobre o luto? O grupo é formado por sete amigas que decidiram compartilhar suas experiências entre si e com mais e mais gente (leia mais sobre o grupo aqui).
O luto na psicoterapia
Carlos Eduardo Thomaz da Silva, psicólogo de Campinas, não gosta da palavra perda. Ele tenta, com seus pacientes, mudar o conceito a partir da escolha certa das palavras. “Eu prefiro dizer que a pessoa deixa de estar presente, deixa-se de conviver com ela, mas não se perde tudo aquilo que se viveu com ela”, explica. Sua forma de atuar com enlutados, lapidada em dez anos de estudos nos Estados Unidos, incluindo uma passagem pela Universidade da Califórnia (UCLA), onde fez seu PhD, é através da Terapia Cognitivo Comportamental (TCC).
Enquanto trabalha o comportamento e as emoções do paciente diante da fatalidade, ele atua também no campo da cognição, ou seja, na forma de ver e entender o mundo. O ponto principal, no caso dos enlutados, é buscar mudar as crenças falsas ou equivocadas sobre a morte, como a culpa – um sentimento que quase todos vivenciam – ou as frases de consolo espiritual que, muitas vezes, podem atrapalhar a pessoa a seguir adiante.
O psicólogo do Instituto de Psicologia Médica e Luto lembra que nem todos que perdem (ou que deixam de viver com) alguém precisam necessariamente de um processo de terapia.
“É preciso, primeiro, diferenciar luto de luto complicado. Toda morte é um trauma pela impossibilidade de comunicação entre o vivo e o morto, é um processo de como reorganizar a vida sem essa pessoa”, diz.
A grande maioria, entretanto, consegue levantar da cama e seguir com suas atividades rotineiras após um tempo de enclausuramento. Carlos Eduardo estima que dois meses é o tempo médio no qual a pessoa fica inerte e triste a maior parte do tempo. “Passado esse período, se ela começa a apresentar características depressivas, de ansiedade, e não dá conta de retomar suas atividades rotineiras, pode ser aconselhável uma terapia”.
Um estudo alemão feito em 2009 com 2.500 pessoas revela que somente 7% dos casos são complicados. Especialistas do Centro de Luto Complicado, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, jogam esse número para cima: entre 10% e 15%.
Em um estudo recente feito pelo Centro da Columbia, notou-se que o processo se complica quando se trata de gente mais velha (com mais de 65), que já se despediu de muitos ao longo da vida e está face a face com sua própria finitude; de pessoas que perderam alguém devido a mortes trágicas e repentinas; dos que enterraram parceiros e filhos e, por fim, de quem já tinha quadros de depressão, ansiedade ou de abuso de substâncias.
Os sintomas de luto complicado usados como parâmetros por esses pesquisadores são a durabilidade do sofrimento (de seis meses a um ano, ou mais), o excesso de pensamentos preocupantes e a inabilidade em aceitar a perda e de imaginar um futuro sem o outro.
“Os parâmetros são importantes, mas é preciso olhar caso a caso e analisar as possibilidades de complicação: quais os fatores de risco? Tem família que o acolhe? Em que condição se deu a morte? Só com o quadro detalhado é possível fechar o diagnóstico de luto complicado. E, para cada um, será necessário um tempo diferente de tratamento”, explica Maria Helena, que faz parte de um grupo internacional de acadêmicos que estudam o assunto. A especialista, através do LELu ou do 4Estações, já esteve à frente de casos de grandes tragédias, como a explosão no Osasco Plaza Shopping, em 1996, e na queda do avião da TAM, no mesmo ano.
No Brasil, não existe um programa focado em Terapia do Luto na rede pública, mas muitas universidades oferecem o tratamento gratuitamente, caso do próprio LELu. Os grupos de autoajuda, como o Casulo e o Vamos Falar Sobre o Luto?, embora não tocados por profissionais, também acolhem de forma gratuita. “Esses grupos são maravilhosos! Nós, psicólogos e psiquiatras, não daríamos conta de fazer todo o trabalho”, diz Carlos Eduardo, que orienta voluntários de grupos como esses em Campinas.
Como ajudar
Para quem está próximo de alguém em sofrimento pela perda, Maria Helena recomenda uma dica simples: ouvir é sempre melhor que falar.
“Não diga a ele o que é melhor fazer, não incentive grandes mudanças nos dois ou três primeiros meses após a morte, como vender a casa ou desfazer o quarto do falecido, e evite frases de consolo clichés, como ‘Deus chamou’”, recomenda.
Ajudar a pessoa a resolver pequenas coisas burocráticas do dia a dia já faz com que ela consiga dar os primeiros passos para sair do casulo. E saber que nada vai ser resolver de forma mágica. “O luto é a outra face do amor: só sofre com a morte de uma pessoa quem amou essa pessoa. Por isso dói tanto. E não é um evento que passa logo, é um processo.
Será necessário viver muita coisa, amargar lembranças, realocar memórias, até encontrar o lugar que essa pessoa vai ocupar na vida de quem ficou”, diz Maria Helena. Porque o fim de uma vida é também o recomeço para quem fica – longo, pesaroso e excruciante. Mas, ainda assim, um recomeço.
Na Ditadura. E quando não há corpo para realizar o luto?
É preciso olhar o corpo do morto, fazer o ritual de despedida, ir ao velório e, se possível, ao enterro. É preciso dizer adeus e entender que aquela vida se encerrou ali. Do contrário, como se inicia o processo de luto? A psicanalista gaúcha Bárbara Conte, da Sigmund Freud Associação Psicanalítica, vivenciou, como profissional, histórias de vítimas da ditadura militar brasileira que, até hoje, mais de 30 anos depois, alimentam uma pequena esperança de reencontrar o parente, dado como desaparecido.
“Como realizar o luto quando não há corpo, quando não há atestado óbito? Como reconhecer que se perdeu alguém se o corpo não está ali”, questiona a psicóloga, que esteve à frente do projeto Clínicas do Testemunho, no qual, durante dois anos, 55 pessoas vítimas da ditadura foram atendidas em Porto Alegre (o projeto também aconteceu em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife).
O projeto foi criado pela Comissão da Anistia (do Ministério da Justiça) como forma de proporcionar a reparação psíquica para os que sofreram com a prisão, tortura, exílio e morte de pessoas próximas durante os anos de chumbo. Além de atender as vítimas e parentes delas em atendimentos individualizados e em grupo, o projeto teve mais dois braços: conversas públicas em espaços como universidades (“Os jovens não fazem ideia do que aconteceu na ditadura”, constatou Bárbara) e insumos como livros e vídeos com o registro das Clínicas.
Para trabalhar com aqueles que têm parentes, parceiros e amigos tidos como desaparecidos até hoje foi preciso, antes, trabalhar o reconhecimento da perda. E, assim, aos poucos vivenciar o luto. “Quando este não é efetivado, não se vive o presente nem se dá margem para a chegada do futuro. Vive-se preso ao passado”.
Um livro para crianças que fala sobre a morte?
“Meu avô foi a segunda pessoa importante que eu perdi. A primeira foi minha prima Cíntia, um ano mais nova que eu, vítima de uma leucemia implacável aos 19 anos. Até esses dois, morte era uma coisa distante para mim, algo que só acontecia com bisavós e primos de terceiro grau dos meus pais. Mais de dez anos após a morte do meu avô, tive uma crise repentina de choro e de muita saudade.
Para me acalmar, decidi escrever as minhas memórias sobre a infância que tive com ele. Como o texto ficou bonitinho, mandei para uma amiga que trabalhava numa editora de livros e lhe questionei: é para crianças? Ela disse que sim e abraçou o projeto. E assim lancei meu primeiro livro, o infantil “A Horta do Vovô Manduca” (Lafonte) – porque de tudo o que eu mais gostava do meu avô, João Manduca, sua horta e sua alfaiataria eram as minhas favoritas. Só que, no final do livro, como na vida real, o vovô morre.
E, uma vez lançado, passei a ser bombardeada por mães, algumas amigas minhas, sobre a necessidade de “tocar nesse assunto” com os pequenos. Um dia, numa apresentação em uma escola, a pergunta veio à tona de novo. E eu respondi: é um livro sobre a vida, e não sobre a morte, afinal uma é parte da outra, e, como tal, deve ser falada, discutida, revelada desde cedo.
Como esconder a única certeza que temos? No final das contas, percebi que as crianças lidavam melhor com o assunto que os adultos. Se falar do meu avô num livro foi a minha forma de concretizar o luto, dividir a história dele com as crianças, ainda que romanceada, é uma forma de eternizá-lo. A história da gente é o nosso legado mais perene.”
*Débora Rubin, jornalista e autora de “A Horta do Vovô Manduca” (Lafonte)
Deixe um comentário