Entidades criticam nomeação de diretor de manicômio que violava direitos humanos

Entidades de saúde mental emitiram notas de repúdio nesta semana contra a nomeação do médico psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho para o cargo de Coordenador Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde. O médico foi nomeado por Marcelo Castro, ministro da pasta. Uma nota foi emitida pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e outra pelo Conselho Federal de Psicologia. 

Também Sidarta Ribeiro, professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte divulgou vídeo em que exorta a sociedade a lutar contra a nomeação do psiquiatra. “É preciso resistir e defender as conquistas históricas em saúde mental”, diz. Outro especialista a criticar a nomeação foi Luiz Fernando Tófoli, professor de psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas e especialista na área de políticas públicas de saúde mental. “Vamos lutar contra as mudanças nefastas que estão acontecendo na área técnica do Ministério da Saúde.”

O repúdio, segundo as entidades, se deve ao fato de Wurch ter sido diretor do maior manicômio privado da América Latina, a Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi,  na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. A instituição foi fechada por ordem judicial em 2012 “diante das condições subumanas a que os pacientes eram submetidos”, diz a nota do Conselho Federal de Psicologia.  O fechamento aconteceu após anos de denúncias sobre violações dos Direitos Humanos. 

Wurch foi diretor do manicômio de 1994 até o início dos anos 2000. Foi nessa época que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados constatou graves violações de direitos humanos na casa. Havia prática sistemática de eletroconvulsoterapia, ausência de roupas, alimentação insuficiente e de má qualidade e número significativo de pessoas em internação de longa permanência, relata a Abrasco.


A casa também funcionou como uma espécie de prisão para presos políticos na Ditadura Militar. Há relatos de maus-tratos e casos de tortura dentro do hospital. Paracambi foi o maior manicômio da América Latina, com 3,5 mil leitos e funcionou por mais de 70 anos. O fechamento do hospital foi considerado uma conquista importante na luta antimanicomial. 

Protesto contra todas as formas de manicômio em São Paulo, realizado no Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Foto: Monique Oliveira/18-05-2015
Protesto contra todas as formas de manicômio, realizado no Dia Nacional da Luta Antimanicomial em SP. Foto: Monique Oliveira/18-05-2015

As entidades também defendem que o médico não tem autoridade técnica para ocupar o cargo. “Dada a exigência de publicação científica como um indicador de produtividade no campo da ciência e da academia, informamos que o Dr. Valencius W. Duarte Filho não possui trabalhos publicados no âmbito da psiquiatria e da saúde mental”, diz a nota da Abrasco, que traz como referência uma busca por estudos feitos no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.


Opositor da reforma psiquiátrica?

Ainda, Wurch concedeu entrevista em que declarou ser contra a alguns pressupostos da Reforma Psiquiátrica, de 6 de abril de 2001.  A reforma, segundo entidades, foi um marco no Brasil. Trata-se de um aparato complexo, que inclui a inclusão de princípios éticos e de direitos humanos para a saúde mental. Ela regulariza a internação involuntária, colocando-a sob a supervisão do Ministério Público, e tira o manicômio do centro da assistência.

Segundo dados do SUS, no Brasil, entre 2002 e 2012 houve uma queda na quantidade de leitos psiquiátricos de 51.393 para 29.958 e uma redução do percentual de gastos com a rede hospitalar de 75,24% para 28,91%. Já a quantidade de Centros de Atenção de Atenção Psicossocial (CAPS) subiu de 424 para 1.981 e o percentual de gastos extra-hospitalares aumentou de 24,76% para 71,09% nesse período.  

“Além disso, trata-se de um opositor histórico ao movimento antimanicomial,  desqualifica os saberes e práticas da Psicologia e de outras ciências no campo da saúde mental ao taxar de meramente ideológico o fechamento dos manicômios”, escreveu o Conselho Federal de Psicologia. 

Ambos os documentos foram assinados  pelo Conselho Federal de Psicologia, pela Associação Brasileira de Saúde Mental, pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva, pelo Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, pelo Movimento Nacional da Luta Antimanicomial/MNLA e pela Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial/RENILA.

Segundo as instituições, a nomeação “é um retrocesso e vai na contramão do consenso internacional sobre o caráter iatrogênico [danoso] dos hospitais psiquiátricos.”

“A Psicologia sempre exerceu protagonismo na luta antimanicomial e em defesa dos Direitos Humanos, assumindo o compromisso social e ético de produzir saberes e boas práticas com efeitos no cotidiano dos cidadãos e nas políticas públicas de saúde.

Pelos motivos elencados, é inaceitável para esse coletivo calar-se frente ao risco de mais este enorme retrocesso e por isso nos colocamos ao lado de todos os demais movimentos e manifestos de repúdio a esta afronta – uma ameaça de desmonte do SUS e de aniquilamento da reforma psiquiátrica.”



Fim do manicômio não é ideologia

As entidades afirmam que a Organização Panamericana de saúde, desde a Declaração de Caracas, em 1990, propõe que a reestruturação da atenção em saúde mental implique na revisão crítica do papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico na prestação de serviços. 

Também a Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza a progressiva substituição dos manicômios por uma gama de serviços territorializados e articulados em rede.

Um dos temores das entidades que assinam a nota é uma possível desarticulação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que é um projeto com base no que é preconizado por essas organizações internacionais.  

Essa rede é composta hoje por um trabalho multidisciplinar descentralizado. São 2.300 CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) espalhados pelo país. Neles, trabalham cerca de 30 mil profissionais.