“Luís ficou 80 dias na UTI. Meu filho não viu o sol… que ele gostava tanto”. Aos 19 anos, a goiana Maria Vitória Ataídes foi mãe, viveu o abandono do marido, enfrentou as consequências nefastas do Zika, descobriu que teria que lutar para conseguir o mínimo e, agora, vive um doloroso luto. Falamos com Maria em março para a Revista Brasileiros. Com o título de “Herdeiros do Zika”, a reportagem mostrava a saga enfrentada pela mãe para conseguir tratamento para o filho Luís, que nasceu com anomalias associadas à infecção por Zika que acometeu Maria durante a gravidez. Na época, todos tentavam entender o que acontecia – e, ainda hoje, muito pouco está esclarecido.
O texto ganhou, por unanimidade, o prêmio da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical na categoria revista. Ficamos gratos em relatar esse momento tão difícil para a saúde pública. Mas, agora, qual foi a nossa tristeza quando soubemos que Luís não sobreviveu. Ele se foi com 10 meses, no dia 23 de agosto, dois dias antes de completar 11 meses de vida, vítima de uma infecção hospitalar.
Foi com pesar e cuidado que procurei Maria recentemente para prestar meus sentimentos. Ela tinha muito o que dizer sobre a sua experiência. Na primeira reportagem, a história de Maria mostrava quem são as pessoas e experiências por trás dos boletins epidemiológicos e dos estudos clínicos. Quais são suas necessidades? Do que precisam? O que pensam? Ali, ela já demonstrava sua força e determinação.
Agora, o relato da mãe é ainda mais pujante. Ela denuncia a falta de empatia e de orientação. Também consegue ver com crítica e lucidez tudo o que viveu. “Quando o filho da gente está na UTI, a gente concorda com tudo, não pensamos em fazer uma pesquisa, nada”, disse. Nossa conversa foi longa, mas separo alguns trechos abaixo. Agradeço imensamente à Maria pela oportunidade que ela nos dá de conhecer a sua história. Parabéns pela luta e coragem, Maria! Receba o nosso abraço.
A perda
“O Luís até os oito meses estava bem. Aprendeu a sentar, segurava o pescoço. Recebia muitos elogios da fisioterapeuta. Mas, nos últimos tempos, ele começou a ter um comportamento estranho e passou a ter convulsões. Fomos ao neurologista antes de tudo isso. O médico aumentou a dose do anticonvulsivo, mas não adiantou nada. Em uma das noites, como sempre fazia, eu dei a mamadeira para ele e o coloquei no meu peito. Fiz carinho. Ele estava com a respiração muito ofegante e com falta de ar. Fomos ao hospital, mas aqui na minha cidade não tinha estrutura. O oxímetro [aparelho que mede a quantidade de oxigênio no sangue do paciente] não funcionava.
Ele continuou tendo crises convulsivas e ninguém sabia explicar o porquê. Depois, viram que ele estava com hidrocefalia, com muito líquido no cérebro. Os médicos colocaram uma válvula externa que drenou o líquido na cabeça. Não funcionou e tentaram uma interna. Foi aí que tudo começou. O Luís teve infecção generalizada e ficou entubado muitos dias. Ele vomitava muito. Fizeram traqueostomia e depois uma gastrostomia mas, nem assim, ele conseguiu se alimentar. Descobriram que havia uma aderência no intestino e o Luís fez mais uma cirurgia. Ao todo, foram cinco procedimentos cirúrgicos. No último deles, ele pegou uma bactéria KPC [Klebsiella Pneumoniae Carbapenemase, uma superbactéria resistente a maioria dos antibióticos] , que se alojou no pulmão. Ficou muito inchado. Não abria o olhinho. Os médicos pediram para que a gente saísse da UTI. Eu e o pai dele ficamos lá fora [Maria se emociona]. “Seu filho não está conseguindo mais respirar…. Você quer vê-lo pela última vez?”, perguntaram. Eu disse que não, que não queria ver ele sofrendo daquele jeito. Ficamos esperando a notícia. Fiquei muito triste porque ele estava bem antes da bactéria, com previsão de alta. Eu fui comprar uma roupinha nova para ele, para quando saísse. Foi com essa roupa que ele foi enterrado.”
Indignação
“Quando o filho da gente está na UTI, a cabeça da gente vira. Tudo o que o médico fala, você concorda. Você não pensa em fazer uma pesquisa. Ele chega e fala: ‘se você não fizer isso, seu filho não vai sobreviver’, e é claro que você concorda com tudo. Eu acho que ele deveria ter sido transferido para um hospital melhor. Não tinha neurocirurgia infantil onde ele estava. Tinham médicos muito bons, mas eles não eram especializados em crianças. Perguntei se não seria melhor transferir. Disseram que não. Também acho que foram feitas muitas cirurgias.
Essa bactéria poderia ter sido evitada. Não tem alguém que oriente direito sobre os procedimentos na UTI. Eu vi como se lavava as mãos porque tinha um aviso em cima da pia. Mas tinha uma mãe com outra criança que não sabia ler, nem escrever. Como ela iria aprender a lavar as mãos? Eu ensinei para ela como fazia, mas isso era uma tarefa do hospital, de ter gente qualificada para instruir o que deve ser feito. E não só sobre as mãos.
Também muitos médicos entravam e saíam da sala a todo momento, não sei se eles trocavam a touca, se trocavam as roupas especiais. Lá, todo mundo que saía do centro cirúrgico voltava com uma bactéria. O Luís tinha microcefalia, que era grave, mas não foi o que levou ele. Foi a bactéria. Ele poderia ter tido chances. Agora, ele não tem nenhuma. Eu fui pesquisar. No Brasil inteiro, tem bactéria hospitalar todo dia. Gente que chega com unha inflamada e sai morta por sepse. E é a família que sofre. Os profissionais vão seguir a vida deles. E a gente? Como vamos seguir com a nossa vida? Como eu vou seguir sem a vida do meu filho [Maria se emociona novamente].”
As tristezas e as alegrias do SUS
“No começo foi muito difícil conseguir o tratamento para o Luís. Tive que pagar à parte. Era R$ 400 a consulta. Veio assistente social, veio gente da vigilância epidemiológica colher informações aqui em casa, mas ninguém fez nada. Só consegui o tratamento quando fui à imprensa e coloquei a boca no mundo. Muita gente ajudou na campanha também. Gente até de outras cidades. A maioria das coisas que eu consegui, eu tive que ir descobrindo sozinha. Mas quando consegui uma vaga no SUS, foi maravilhoso. O Luís estava fazendo tratamento em um lugar incrível, no CRER [Centro de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo, em Goiânia]. Era muito bom. A fisioterapia era pelo SUS e a profissional era inacreditável. Ela ia atrás de tudo o que precisava para o Luís. A evolução dele foi perfeita. Foi ótima. Não tenho o que falar disso.”
O cansaço e a falta de apoio
“Eu ficava cansada o tempo todo. Minha vida era para ele. Luís fazia fisioterapia cinco vezes por semana. As consultas eram a 200 km da minha casa [Maria mora em Rio Verde, que fica a 200 km de Goiânia]. Às vezes, tudo o que eu queria eram cinco minutos para ficar no sofá, parada. Não tinha. Às vezes, era uma hora para conseguir dar o remédio. Ele engasgava, chorava. Nos últimos meses, ele estava muito irritado, chorava muito e tinha muita crise convulsiva. Eu também chorei muito sozinha depois de consultas, quando me falavam da situação dele. Eu não tive apoio psicológico em nenhum momento. Não tenho até hoje, depois de perder o Luís. Não há apoio para as mães. Vi que uma das mães que conheci no hospital abandonou o filho. Disse que não ia mais cuidar dele. Talvez se ela tivesse tido apoio, as coisas poderiam ser diferentes. Mas eu não tenho arrependimento nenhum. Eu fiz tudo o que eu podia pelo Luís. Nunca faltei em uma consulta. Nenhuma.”
O recado para mamães especiais
“Eu chorava muito. Eu tinha medo do futuro. Tinha medo de que o Luís fosse excluído na escola, de ele não andar, não falar, não ter amiguinhos. Mas hoje vejo que, do jeito que ele estivesse, se fosse perto de mim, estaria ótimo. Se ele não fosse aceito na escola, eu virava professora e dava aula pra ele. Se ninguém quisesse brincar com ele, eu brincava. Eu diria para as mães que têm um filho especial para amarem o seu filho hoje. Esquecer um pouco a rotina do hospital e brincar com ele, focar em outras coisas. A gente que tem um filho especial, a gente tem medo o tempo todo. Pensa que o filho vai sofrer. Hoje eu sei que, mesmo que ele não fizesse tudo o que uma criança normal faria, ele fazia as coisas dele que eram especiais pra mim. Tem que esquecer o hospital e esquecer o sofrimento. O que mais me ajudava era que eu tirava uma hora do dia para brincar com ele. Eu sentava com ele. Eu conversava com ele. Eu esquecia de todo o sofrimento nesse momento.”
A volta do pai
“Quando o Luís estava com sete meses, o pai dele voltou. Falei para ele: “o Luís precisa de nós dois e outros parceiros nossos podem não entender. Vamos criar ele juntos”. E percebi que esquecer tudo e ter ele de volta foi importante. Eles tinham as brincadeiras deles, que só eles faziam. O Luís melhorou, percebi que ele ficava feliz naqueles momentos, que se divertia, que ficava no colo do pai. As mães precisam muito desse apoio. A gente se sente bem quando os pais vão às consultas e fazem perguntas para o médico. Eu me sentia feliz quando vi ele participando. Falta isso para a maioria dos pais. Eles precisam estar mais por dentro das necessidades do filho, saber detalhes. Não é só falar ‘meu filho tem microcefalia’.”
Um recado para profissionais de saúde e autoridades
“Eu acho que profissionais e médicos poderiam se colocar mais no lugar da família que está com parentes doentes no hospital. Me falavam: ‘seu filho não vai andar, não vai falar, vai ter pouca interação com você.’ Tem que ter alguém que saiba conversar, que não jogue as coisas assim na cara. Também tem que investir em saúde. As pessoas acham que eu não sei que essa bactéria poderia ser evitada? Não é assim, que tinha que acontecer. Poderia ser evitado. Tem que investir em saúde porque é de vidas que a gente está falando. De pessoas que vão voltar para casa sem seus familiares. De pessoas, como o Luís, que não vão ter mais chance de nada. Não pode tirar dinheiro da saúde pra ir pro bolso deles. Faltam hospitais melhores, em que você pode ter confiança que, quando seu filho entrar no centro cirúrgico, ele vai sair vivo. Precisa de um médico que saiba conversar com você, que te acalme. Enfim, está faltando muita coisa.”
E agora?
“Passei no vestibular em pedagogia. Começo o ano que vem. Eu quero trabalhar com criança especial. É muito importante valorizar as crianças especiais. Elas também podem aprender muita coisa. Precisam muito e há muito o que se pode fazer por eles. Também voltei a trabalhar e sou caixa de supermercado aqui na minha cidade. Vi que não podia ficar em casa vendo as coisas dele. Penso nele a todo momento. Vou estudar e, quem sabe mais pra frente, ter mais filhos.”
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