No começo do mês de outubro, Saúde!Brasileiros publicou uma reportagem que mostrava a relação entre o uso de benzodiazepínicos, medicamentos usados para o tratamento da ansiedade e insônia (como o Rivotril) e o risco aumentado para Alzheimer. Esse texto teve mais de 90 mil acessos e 72 mil curtidas no Facebook.
Ele mostrava as diretrizes de um colegiado americano de neurologistas e psiquiatras (American College of Osteopathic Neurologists and Psychiatrists), que alertavam para o risco do uso prolongado desses medicamentos. Essas recomendações, por sua vez, citavam um estudo polêmico publicado em 2014 no British Medical Journal.
A pesquisa demonstrava, na amostra estudada, que quem fez uso da droga por um período superior a três meses, mas inferior a 180 dias, teve risco aumentado de desenvolver Alzheimer em 32%. Quando o período de uso de um benzodiazepínico passa de seis meses, o risco chega a 82%.
Na esteira das visitas à página, foram muitos comentários e dúvidas sobre a relação encontrada nesse estudo. Muitos queriam saber se o medicamento que usavam era um benzodiazepínico, outros reforçaram o achado do estudo e relataram os efeitos enfrentados pela memória. Também alguns discordaram da pesquisa e disseram que conheciam alguém (ou eles próprios) que fizeram uso do medicamento por anos e tinham uma memória perfeita.
Muitos desses questionamentos acerca dos achados do estudo foram pertinentes e interessantes. Por exemplo, a pesquisa tinha como amostra uma população idosa (acima de 65 anos).
Isto posto, essa mesma relação poderia ser estendida para todos? E quem já tem Alzheimer e faz uso dessa medicação, deveria parar? Há substitutos para esses medicamentos?
Saúde!Brasileiros reuniu a maioria dessas dúvidas e procurou uma das autoras do principal estudo que deflagrou a discussão. Assim, entrevistamos Sophie Billioti de Gage. Ela realiza pesquisas em farmacoepidemiologia (campo de estudos que investiga os efeitos de uma droga populações) na Universidade de Bourdeaux, na França.
Sophie de Gage reforçou que, independentemente da relação com o Alzheimer, há diretrizes internacionais que indicam o uso de benzodiazepínicos somente por três meses. A indicação seria do limite de uso por um mês desses medicamentos para o combate à insônia e de 90 dias para o tratamento da ansiedade.
A relação sobre a memória de curto prazo (reversível após a retirada dos medicamentos), segundo ela, já está documentada, bem como o risco para a dependência e outros efeitos colaterais. Abaixo, ela detalha melhor esses efeitos e a relação desses medicamentos com o Alzheimer encontrada na pesquisa.
Entrevista: Sophie Billioti de Gage
Saúde!Brasileiros: O estudo encontrou o risco em pessoas que faziam uso de medicamentos por mais de três meses, mas haveria algum motivo para as pessoas que utilizam o medicamento por uma vez apenas se preocupem?
Sophie Billioti de Gage: O risco aumentado para Alzheimer foi visto exclusivamente para o uso de benzodizepínicos em pessoas com mais de 66 anos que faziam uso do medicamento por mais de três meses. Nós não achamos nenhum risco para o uso desses compostos por um tempo menor do que esse período.
Mas o risco aumentou quanto maior o tempo de exposição ao medicamento. Por isso, o risco que encontramos deveria preocupar todos os usuários crônicos que fazem uso prolongado.
Se a medicação for interrompida, esse risco diminui?
O estudo dos efeitos da descontinuação da droga não estava no escopo do estudo. Um outro tipo de desenho de pesquisa seria necessário para responder essa questão.
Mas é importante não confundir os efeitos agudos de curto prazo dos benzodiazepínicos sobre a cognição, que estão muito estabelecidos e são reversíveis após o uso do medicamento, com o risco para Alzheimer, que foi o escopo do estudo, e é uma doença irreversível hoje.
Nos comentários sobre o estudo, muitos relataram algo como “conheço alguém que usou o medicamento por anos e a memória dessa pessoa é ótima”. O risco encontrado no estudo poderia estar associado a um determinado perfil de pessoa e a outros não?
Alguns perfis são mais sensíveis à droga. Pessoas mais velhas têm uma sensibilidade aumentada para os efeitos colaterais desses medicamentos em relação a pessoas mais jovens por conta de comorbidades, vulnerabilidades neurocognitivas e outras alterações fisiológicas relacionadas à idade.
No que se refere à demência, a doença é certamente multifatorial e muito mais precisa ser feito para elucidar os mecanismos e os seus fatores de risco.
O que o estudo faz, no entanto, é alertar a todos sobre o uso crônico e prolongado dos benzodiazepínicos. Esses medicamentos só devem ser tomados de acordo com diretrizes internacionais (sem exceder um mês para hipnóticos [indutores de sono] e três meses para ansiolíticos).
Essas diretrizes foram estabelecidas pelos efeitos colaterais já documentados com essa classe de medicamentos, particularmente em pessoas mais velhas (risco de queda e fraturas, dependência, amnésia…) e pelo risco potencial de demência.
Indivíduos que já têm Alzheimer e fazem uso de calmantes simultaneamente ao tratamento da doença deveriam parar de tomar benzodiazepínicos? Eles têm potencial para piorar a condição?
O estudo dos efeitos dos benzodiazepínicos na evolução da doença estava fora do escopo do estudo, mas a literatura sobre o assunto é numerosa e parece que os benzodiazepínicos pioram as habilidades cognitivas em pacientes com Alzheimer.
De qualquer maneira, a descontinuação abrupta dessa medicação deveria ser evitada por riscos com síndrome de abstinência. A interrupção do uso crônico de qualquer benzodiazepínico deve ser feita gradualmente e necessita do monitoramento de um médico.
Há alguma discussão sobre se esse risco aumentado só seria aplicado em pessoas que já iriam desenvolver Alzheimer de qualquer maneira. Acredita que seja esse o caso?
É difícil dizer e seria perigoso fazer essa implicação sem saber quem realmente tem potencial para desenvolver Alzheimer (é uma questão ética, na verdade). Nós consideramos vários riscos potenciais em nossas estimativas.
Mesmo assim, a natureza da relação (causal ou não) que encontramos em nosso estudo está ainda indefinida, mas as nossas conclusões mostram uma relação entre a dose e os efeitos (quanto maior o tempo de uso dos benzodiazepínicos, maior o risco).
Esse fator reforça a nossa suspeita que, independente do potencial de cada indivíduo para o desenvolvimento do Alzheimer, deve haver uma relação direta.
De qualquer modo, a condição que deflagrou o uso dos benzodiazepínicos pode ser , em si mesma, uma doença associada a um risco aumentado para a demência.
Para quais condições os benzodiazepínicos são necessários e para quais outras médicos deveriam considerar opções? Eles poderiam ser substituídos por antidepressivos?
Primeiramente, é importante dizer mais uma vez que os benzodizepínicos são uma valiosa ferramenta para lidar com a ansiedade ou insônia e nós não encontramos nenhuma evidência de risco para Alzheimer em pessoas que tomam os medicamentos de acordo com as diretrizes internacionais (de curta duração, sem exceder um mês para a insônia e três meses para ansiolíticos).
Agora, para as pessoas que precisam continuar fazendo uso de benzodiazepínicos, é crucial encorajar médicos para que observem atentamente se os riscos excedem os benefícios. O desmame abrupto de tratamentos longos com essa classe de medicamentos deve ser evitada pelo risco documentado de síndrome de abstinência, como eu disse.
O que fazer para lidar com problemas de ansiedade e depressão sem prescrever esses medicamentos é uma questão importante.
Antidepressivos e ansiolíticos não possuem as mesmas propriedades farmacêuticas, mas algumas pessoas com depressão não diagnosticadas corretamente são tratadas com benzodiazepínicos.
Nesses casos, o uso de antidepressivos seria preferível, mesmo se a administração de curta duração de benzodiazepínicos for necessária (ansiedade pode ocorrer juntamente com a depressão).
O estudo foi feito em pessoas mais velhas. Há alguma hipótese ou preocupação para pessoas abaixo dessa idade?
Nós conduzimos o estudo com uma amostra de pessoas acima de 65 anos. Nossos ressultados não podem ser estendidos para a população mais jovem. Mais estudos são necessários para avaliar esse risco. De qualquer maneira, a regulação internacional é muito clara sobre os riscos do uso prolongado desses medicamentos para todos, inclusive para os mais jovens.
Hoje, temos vários tipos de benzodiazepínicos e eles são indicados de acordo com o tempo de ação no organismo. É possível estabelecer uma hierarquia? Qual oferece mais risco?
O risco para o Alzheimer é proporcional ao tempo de uso do medicamento e ao seu tempo de ação no corpo. Para pacientes mais velhos, as diretrizes atuais recomendam o uso de medicamentos de curta duração.
Qual é a ação específica dos benzodiazepínicos no cérebro que poderia explicar seus efeitos e o risco aumentado para o Alzheimer?
Os malefícios de curto prazo dos benzodiazepínicos na memória estão bem documentados. Eles são mediados por uma ação agonista sobre os receptores do ácido gama-aminobutírico A.
[nota da redação: os benzodiazepínicos ajudam a aumentar a produção desse ácido (ação agonista). Esse composto, por sua vez, tem uma ação inibidora (de ajudar o corpo a relaxar].
Nenhuma observação fisiológica, no entanto, pode explicar de maneira razoável o risco aumentado para demência. Uma hipótese plausível (mediante uma relação causal), seria que os benzodiazepínicos podem, a longo prazo, limitar a capacidade de reserva cognitiva.
Isso faria, por exemplo, que em face de uma lesão cerebral primária, essa pessoa não tivesse “reserva” para acessar novas redes neuronais.
Por meio de uma análise por autópsia, uma redução do número de receptores para benzodizepínicos foi observada na comparação de cérebros de pessoas com Alzheimer com o de pessoas saudáveis. Se essa associação explica ou não um mecanismo biológico que ligaria os benzodiazepínicos com o Alzheimer, é difícil saber. Mais estudos em animais são necessários para observar essa relação no cérebro.
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