Em documento emitido nesta terça-feira, 3, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) fez ressalvas à fosfoetanolamina, droga da USP a qual tem sido atribuído efeito anticâncer. Para a entidade, como a substância não tem sequer sua segurança inteiramente mapeada, nem indicação para uma doença para a qual não existe tratamento disponível, não há justificativa para acelerar o seu desenvolvimento.
O comunicado da Academia Brasileira de Ciências vai na contramão da “corrida” observada em torno da substância, que está envolvendo diversas instituições no Brasil. Ministério da Saúde e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), por exemplo, após clamor popular, abriram grupo de trabalho na sexta-feira, 30, para o desenvolvimento de pesquisas. A substância também foi objeto de audiência pública no Senado no dia 29.
A posição da academia não é consenso entre instituições. Enquanto a ABC não vê justificativa para acelerar o desenvolvimento de pesquisas e contraindica o uso do composto em humanos, outras entidades defendem que estudos sejam feitos urgentemente para garantir a segurança de pacientes que já fazem uso da droga por meio de decisão judicial.
É o caso do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP), que denunciou a USP por condições inadequadas de produção da fosfoetanolamina (leia mais abaixo). O conselho defendeu que testes sejam feitos rapidamente para, pelo menos, mapear a segurança do composto. “A população está exposta a riscos”, escreveu o conselho em nota.
O texto da ABC foi escrito pelos especialistas João Batista Calixto e Mauro Martins Teixeira, diretores da Academia Brasileira de Ciências. Calixto é diretor-presidente do Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos (CIEnP) e Teixeira é professor no Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Além das ressalvas ao clamor em torno da substância, o documento dos especialistas também foi no sentido de explicar como funciona a ciência no Brasil e de mostrar a complexidade de uma doença como o câncer, que não pode ser tratada como uma única condição.
“Não existe um tipo único de câncer, mas uma enorme gama de doenças médicas caracterizadas pelo crescimento exagerado e descoordenado de células cancerosas (câncer). Para cada caso particular de câncer, há a necessidade da demonstração da eficácia clínica“, diz o documento.
Segundo os pesquisadores, para ser eficaz para todo o tipo de câncer, a fosfoetanolamina deveria ter passado por testes clínicos para cada tipo de tumor, o que não é o caso.
“Na fosfoetanolamina, a maioria das etapas descritas e indispensáveis necessárias para que a molécula se torne um medicamento com provas cientificas de eficácia e segurança não foram conduzidas”, atestam.
Para embasar o documento, os acadêmicos fizeram uma busca em banco de dados sobre o composto e, além do descrito acima, chegaram às seguintes conclusões:
1) Não há garantia da segurança da produção e estabilidade química entre os vários lotes;
2) Não há evidências disponíveis que demonstrem a segurança (toxicologia) e a eficácia da molécula em estudos pré-clínicos;
3) Não existem estudos clínicos demonstrando detalhes da farmacocinética da substância (que define a frequência que a mesma deverá ser utilizada em seres humanos). Tais estudos clínicos só podem ser realizados após a conclusão dos estudos não clínicos;
4) Não existem estudos clínicos demonstrando a segurança toxicológica do uso da molécula em seres humanos;
5) Não existem estudos clínicos demonstrando a eficácia da molécula e, em especial, a eficácia comparativa da molécula em relação a outros tratamentos já existentes;
6) Finalmente, não há o desenvolvimento da molécula para uma doença específica para a qual não existe tratamento; não há justificativa para o desenvolvimento acelerado da mesma, em especial tendo em vista a ausência de estudos de segurança pré-clínica e clínica.
A entidade explica ainda que nem todas as moléculas sintetizadas em laboratório chegam a virar medicamento e que todo o processo é feito com muito cuidado. “Em média, de cada 30.000 novas moléculas sintetizadas, uma ou duas podem chegar a clínica.”
O texto conclui que a molécula está “em fase ainda muito preliminar de desenvolvimento e que está muito distante de poder ser recomendada para uso como medicamento em seres humanos.”
A Academia Brasileira de Ciências também foi categórica em sua conclusão. “Recomenda-se, portanto, que a fosfoetanolamina sintética não seja utilizada”, escreveram.
USP produz composto em condições inadequadas
Depois de ser obrigada a produzir a substância para atender liminares conseguidas na Justiça, a USP de São Carlos foi denunciada pelo Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo no último dia 28 de outubro. Segundo o conselho, a produção da fosfoetanolamina tem sido feita sem a presença de um farmacêutico responsável e sem controle de qualidade.
“Na fiscalização, foi encontrado esse “medicamento” -cuja substância é preparada num bequer- sem qualquer cuidado, sendo manipulado num laboratório didático de química, sem nenhuma condição e sem nenhum controle de processo ou de qualidade”, disse o conselho em nota.
O conselho esclareceu não ser contra a produção do medicamento e parabenizou a atitude do Ministério da Saúde de criar um grupo para agilizar os procedimentos necessários para garantir a segurança dos pacientes, mas afirmou sua preocupação sobre o composto e disse que a população está exposta a riscos.
“Diante do clamor público, o governo poderia liderar um esforço concentrado para realizar as pesquisas mínimas de segurança e liberar, com isso, a utilização da substância em casos específicos. Da forma como está, a população está exposta a riscos”, afirmou o presidente do CRF-SP, Pedro Eduardo Menegasso, em nota.
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