Está em protestos semanais nas principais capitais do país. Um debate mais ampliado sobre o aborto legal veio à tona após reação ao projeto de lei 5069, de autoria de Eduardo Cunha (PMDB-RJ). O projeto, na prática, cria artifícios para dificultar o acesso das mulheres ao atendimento.
No Brasil, o aborto é crime, exceto em caso de risco de vida à mãe, violência sexual e feto anencéfalo. Em 2013, segundo o Ministério da Saúde, foram realizados 1.523 abortos legais por meio do SUS. Em 2012, o número de procedimentos foi de 1.613.
O projeto de Cunha se refere ao aborto legal para mulheres em situação de violência sexual. Ele instaura a obrigatoriedade do boletim de ocorrência e do corpo de delito para que a mulher tenha acesso ao procedimento. Também coloca impedimentos para a orientação de abortivos.
O consenso entre especialistas de saúde pública e de ativistas é que o projeto quer “cansar” e “atrasar” o acesso ao aborto legal. Isso porque não há como comprovar o estupro no corpo de delito no momento da gestação. Quando já há a gravidez, provavelmente, a violência ocorreu há meses.
Mesmo se o BO e o corpo de delito for realizado imediatamente após o estupro, são pouquíssimas as mulheres que vão à polícia. Pesquisas mostram que menos de 10%. Muitas só encaram o fato quando precisam lidar com uma gravidez. Também nada impede que quem planeja mentir no hospital não possa mentir também na delegacia.
Um dos temores em relação ao projeto é sobre uma eventual dificuldade de acesso à pílula do dia seguinte, uma conquista que impede, inclusive, que muitas mulheres precisem fazer aborto.
E é por isso que a reação ao PL 5069 não parou desde que a lei foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no dia 21 de outubro. Em São Paulo, protestos ocorreram semanalmente. Os próximos, que já têm adeptos em Brasília, Rio de Janeiro, Belém e Belo Horizonte, serão no dia 25, uma quarta-feira.
Um revés que Cunha talvez não esperasse é que, por meio do seu projeto de lei, o aborto legal começou a ser melhor e mais discutido no país, bem como o acesso a ele. Em excelente levantamento, a Agência Pública disse haver um mistério em torno da lista de estabelecimentos que fazem o aborto legal no país.
A reportagem da Saúde!Brasileiros ligou para o Ministério da Saúde e perguntou sobre o acesso ao aborto legal. Também perguntamos sobre o porquê dessa lista ter sido negada às jornalistas. Segundo o órgão, todo o centro médico com obstetrícia está capacitado a fazer o procedimento e tal lista não existe.
Segue a nota do Ministério:
O Ministério da Saúde esclarece que existem três situações em que o procedimento de interrupção da gestação é considerado legal: quando não há outro meio de salvar a vida da mulher; quando a gravidez resulta de estupro e diagnóstico de anencefalia fetal.
Nestes casos, a mulher pode ser atendida em todos os estabelecimentos públicos de saúde que possuam serviço de obstetrícia, seguindo as normas técnicas de atenção humanizada ao abortamento do Ministério da Saúde e a legislação vigente.
Na prática, no entanto, não é o que os relatos mostram. Mulheres que chegam até o Pérola Byington relatam peregrinação por vários centros médicos na cidade com serviço de obstetrícia que não aceitaram fazer o aborto legal. Os hospitais dizem desconhecer o serviço, ou relatam que não fazem o procedimento após 12 semanas de gestação. Na verdade, o Ministério da Saúde prevê o aborto legal em até 22 semanas.
A assessoria de imprensa do Ministério da Saúde informou que o órgão não tem competência para fiscalizar esses hospitais, e que, em casos de negativa de atendimento, a Justiça deve ser acionada.
De qualquer modo, felizmente, existe o Serviço de Violência Sexual e Aborto Legal do Pérola Byington, em São Paulo, desde 1992 (jornalistas da Pública também fizeram uma tabela com hospitais de referência em outros Estados do país). O hospital é público e o atendimento é feito integralmente pelo SUS sem qualquer custo.
O Pérola Byington tem sido uma das poucas instituições com competência para falar abertamente sobre o assunto. As informações são claras e especialistas discorrem com clareza sobre o que ocorre, e em que circunstâncias. O princípio do hospital é ajudar a mulher e, para isso, trabalha com a presunção da veracidade. O Pérola é o centro que mais faz abortos legais no País. A média é de 130 por ano. Cerca de 40% deles não possuem boletim de ocorrência.
A psicóloga Daniela Pedroso é uma das especialistas do Pérola que tem contato de perto com a realidade dessas mulheres. Ela trabalha há 18 anos como coordenadora do setor de psicologia do Serviço de Violência Sexual e Aborto Legal do hospital, é membro do GEA (Grupo de Estudos Sobre Aborto) e do Núcleo de Sexualidade e Gênero do Conselho Regional de Psicologia.
Em entrevista, ela conta como funciona o serviço e mostra as dificuldades emocionais enfrentadas por mulheres em situação de violência sexual. Para ela, a escolha acaba sendo da mulher e não se pode violentá-la duas vezes.
Saúde!Brasileiros: Como as pessoas chegam até o serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington?
Daniela Pedroso: Alguns outros serviços de saúde indicam. Também uma grande maioria acha informações pela internet. Essas mulheres, em sua maioria, muitas vezes chegam sozinhas ou no máximo relatam para uma amiga.
Saúde!Brasileiros: Se uma mulher vítima de estupro está grávida e encontrou essa reportagem no Google, o que diria a ela?
Daniela Pedroso: Venha para o Pérola Byington (Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 683, 3248-8000, São Paulo) que você terá todo o atendimento necessário. Resolvemos tudo em, no máximo, uma semana.
Saúde!Brasileiros: Como é o atendimento no setor de aborto legal?
Daniela Pedroso: Assim que chega, a mulher faz um ultrassom para avaliar a idade gestacional. O aborto é feito em até 22 semanas de gravidez. Depois, ela é direcionada para assistente social e lá vai relatar a circunstância da violência sexual. Trabalhamos com a presunção da veracidade. Não tem boletim de ocorrência, nem delegacia e o atendimento é o mais respeitoso possível.
Mas a mulher assina um termo em que se responsabiliza no caso da informação sobre o estupro não ser verdadeira. Se algum dia alguém descobrir que aquela história não é verdade, ela terá que responder por falsidade ideológica e o hospital está isento de qualquer responsabilidade. Depois, ela passa comigo, na psicologia.
Saúde!Brasileiros: Poderia nos contar um pouco mais sobre o estado emocional dessas mulheres…
Daniela Pedroso: No primeiro contato, “elas querem resolver logo isso”, como elas mesmo dizem. Esse contato é breve e, geralmente, elas são estão ali para tentar sair daquela situação. Elas não se sentem grávidas. Vale observar que essas mulheres só engravidaram porque não pediram ajuda.
Na minha pesquisa de mestrado que eu fiz sobre o perfil dessas mulheres, constatei que só 10% procura ajuda imediata após estupro.
Em sua maioria, elas não contaram para ninguém o que aconteceu. Então, elas chegam dizendo que deveriam ter contado do estupro para o marido, que agora como vai ser. “Como é que vou falar que fui estuprada e ainda estou grávida?”, é uma pergunta comum.
O meu trabalho naquele momento é de me certificar de que elas estão certas do que querem, se é aquilo mesmo e apresentar as opções que elas têm. Digo, então, que ela poderá cuidar da criança e introduzi-la na família ou deixar para adoção.
Não estou ali para dissuadir, nem convencer, apresento as opções e a acompanho no processo. No fim, é sobre o que a mulher quer fazer nessa situação de violência. Ela precisa entender aquela gravidez como mais uma consequência de uma violência. Na maioria dos casos, elas optam pela interrupção.
Saúde!Brasileiros: Como elas tomam essa decisão?
Daniela Pedroso: O curioso é que eu as vejo muito mais pensando na criança. A decisão não é muito pautada na história da mulher. Elas não se sentem grávidas, e fica uma dúvida porque metade da criança é dela, e a outra metade não é. Elas não acham que vão poder cuidar da criança, não se sentem parte daquilo, não se sentem mães.
Saúde!Brasileiros: Já atendeu mulheres muito religiosas?
Daniela Pedroso: Sim, e mesmo assim a maioria optou pela interrupção. Na cabeça delas, tudo fica um pouco mais perdoável quando o aborto é decorrente de uma violência sexual e elas dizem que não fariam o mesmo caso a gravidez fosse do marido ou do namorado.
Saúde!Brasileiros: Alguém chegou a desistir?
Daniela Pedroso: Poucas desistem, mas teve um caso curioso há dois anos de uma mulher que desistiu de fazer a interrupção depois do estupro porque ela mesma havia sido gerada depois de uma situação de violência. Ela era filha de um estupro. Ela dizia que também deveria dar uma chance de viver para aquela criança porque ela teve essa chance.
O processo todo foi complicado porque o estupro aconteceu em uma data próxima a uma relação sexual dela com o marido. Foi ainda preciso fazer um exame de DNA para verificar a paternidade. Era mesmo uma gravidez decorrente do estupro. No fim, ela e o marido optaram por cuidar da criança. Eles jogaram todos os papéis do hospital fora e tentam apagar a história.
Saúde!Brasileiros: Depois que elas fazem o aborto, quais são as dificuldades que essas mulheres encontram? Há arrependimento? Elas continuam a fazer terapia no Pérola?
Daniela Pedroso: Elas recebem tratamento psicológico pelo tempo necessário, o que normalmente acontece por volta dos seis meses. Respeitamos o tempo dela para iniciar essa fase. De modo geral, o abortamento acalma. O que eu mais escuto é a palavra “alívio”. Não damos um questionário. Essa palavra é comum, vem da boca dessas mulheres. Todo mundo fala alívio.
Depois, a questão maior é a culpa pela violência ter acontecido. Elas se sentem culpadas o tempo todo. “Não deveria estar ali naquele momento, não deveria ter saído naquele horário, deveria ter voltado para casa” são frases comuns. Elas encontram toda a forma de culpa possível e pensam no que as pessoas vão dizer.
Saúde!Brasileiros: Como essa culpa é trabalhada?
Daniela Pedroso: É preciso trabalhar o que é dela, e o que é do outro. O primeiro passo é dividir bem as coisas porque está tudo muito confuso na cabeça dela. Dizer pra ela que ninguém tinha aquele direito, independente de onde e em que circunstância ela estivesse.
Saúde!Brasileiros: Elas continuam a terapia?
Daniela Pedroso: Nem todas. Também temos que respeitar a realidade que elas estão, nem sempre é fácil largar tudo e vir para o hospital falar dessa violência. Fiz uma pesquisa para o Ministério da Saúde, em que liguei para algumas mulheres depois de dez anos do aborto. Elas disseram que não voltaram à terapia porque o hospital as fazia lembrar de tudo o que aconteceu. Então, nem sempre é fácil…
Saúde!Brasileiros: Pode explicar quais são os procedimentos utilizados no Pérola para a realização do aborto legal?
Daniela Pedroso: Dependendo do período, ela vai fazer uma aspiração manual intrauterina. Esse é o procedimento para até 12 semanas de gestação. Será internada num dia e vai sair no outro. O procedimento todo dura cinco minutos. A mulher é anestesiada e não lembra de nada.
Agora, se a idade gestacional for superior a esse período e até 22 semanas, é possível fazer ainda o aborto com o misoprostol [o cytotec, medicamento abortivo indicado em bula para a úlcera]. Nesse caso, ela vai sentir cólicas e passar por mais dor física. A medicação será administrada em ciclos até ser finalizado o aborto. Ela sai do hospital em quatro dias em média.
Saúde!Brasileiros: Elas recebem visitas?
Daniela Pedroso: Nem sempre. Isso porque muitas mulheres têm medo de que, lá na enfermaria, fiquem sabendo a verdadeira razão delas estarem no hospital. Geralmente, elas falam que vão fazer qualquer outro procedimento.
Saúde!Brasileiros: Como que essa violência sexual geralmente ocorre e em quais circunstâncias?
Daniela Pedroso: A maioria está voltando ou indo para o trabalho. Geralmente, envolve alguma atividade cotidiana, em horários comerciais. Teve caso de gente voltando da igreja.
Em menor número, mas frequente, recebemos casos de vítimas do “Boa Noite Cinderela”. Tivemos dois casos recentes de estupros em uma boate famosa em São Paulo, de uma estudante de psicologia que se viu grávida depois do ocorrido.
Ela tomou bebida em um copo de outra pessoa e acordou no quarto depois com pessoas que não conhecia. Outra circunstância envolvia o consumo de ecstasy e a mulher acordou em um carro, cheia de esperma.
É uma situação horrível porque ela não lembra o que aconteceu, não sabe quantos foram. Ela acorda com dor na região genital, na região anal, vê a presença de esperma… é muito difícil.
Saúde!Brasileiros: Há casos de encontros marcados por aplicativos?
Daniela Pedroso: Sim. Já atendi uma moça que tinha marcado encontro pelo Tinder. Chegou lá, sinalizou que não queria ter a relação sexual, que não estava a fim, mas acabou sendo estuprada.
Saúde!Brasileiros: Como vê a necessidade de boletim de ocorrência e de corpo de delito para que o aborto legal seja realizado?
Daniela Pedroso: A decisão é dela de denunciar e, no fim, o que percebo como mais importante nesse atendimento é o passo que fazemos para acreditar na história dessa mulher. Faz parte do processo de acolhimento e de confiança que ela precisa ter para superar a violência. Ela precisa se sentir acolhida e perceber que não está sendo julgada.
Não podemos violentar essas mulheres pela segunda vez. Essa confiança é o que vai me ajudar no processo terapêutico posterior. Ali, um vínculo foi estabelecido. No caso de obrigar essa mulher a ir à delegacia, a gente já está rompendo com isso, estamos diminuindo a chance de estabelecer um vínculo.
Saúde!Brasileiros: Alguns críticos à lei também vêm o uso da expressão abortivo como uma maneira de impedir o uso da pílula do dia seguinte? O que acha disso?
Daniela Pedroso: É um retrocesso total. A mulher não está gravida. A pílula não pode ser abortiva.
Como a sua visão do aborto foi mudando e se transformando com os anos?
Daniela Pedroso: Eu comecei no Pérola muito nova e, no começo, atendia crianças que sofreram violência sexual. Depois, fui para o setor de abortamento. Eu trabalho com isso há 18 anos, então, muita coisa aconteceu.
Venho de uma formação muito religiosa, mas eu me convencia de que o aborto era necessário naqueles casos, que era uma situação de violência.
O tempo foi passando e eu passei a ter mais contato com o tema. Entrei para o GEA (Grupo de Estudos do Aborto) e lá eles estudam o aborto como um todo. Também entrei em contato com muitas histórias.
Fui entendendo a motivação de cada mulher, as razões de cada uma. Ela não quer ter um filho daquele namorado que não trabalha e não ajuda em nada. Cada uma tem uma história e eu fui ampliando a minha mentalidade com o tempo. E hoje o ponto é que a mulher que tem que decidir porque o corpo é dela.
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