Uma das questões mais controversas em relação ao diagnóstico do câncer hoje, dentre tantas outras, é a maneira como ele é realizado. Nos últimos anos, conquistas importantes que salvaram vidas levaram a adoção de exames em massa para a detecção; mas, para alguns especialistas e estudos clínicos, está na hora de levar em conta as limitações do processo.
Os mesmos testes que salvam vidas também detectam alterações inofensivas, que sequer seriam sintomáticas no futuro. Biópsias, intervenções e até cirurgias são realizadas sem que o tumor, de fato, fosse trazer malefícios ao paciente.
Essas intervenções, tidas como desnecessárias, são a principal causa de processos judiciais no mundo desenvolvido.
O Brasil está acompanhando atentamente a controvérsia – e ela está longe de ser consolidada. O overdiagnosis será objeto do II Simpósio Internacional de Imagem, evento previsto para os dias 23 e 24 de outubro no A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo.
Também a campanha outubro rosa, que acontece neste mês e tem o objetivo de conscientizar sobre o câncer de mama em diversos aspectos – como os direitos sociais e médicos – já incluiu entre suas informações as contradições acerca da adoção da mamografia.
Na página do Instituto Nacional do Câncer, lê-se entre os objetivos da campanha a divulgação sobre “os benefícios e os riscos da mamografia de rotina” com o intuito de fazer com que “a mulher tenha mais segurança para decidir sobre a realização do exame.”
De um lado, estão as importantes diretrizes que continuam vigentes; e, de outro, estudos que mostram ser a adoção sem critérios um problema de saúde pública. Por aqui, o acesso à mamografia é garantido a partir dos 40 anos no SUS e o rastreamento é adotado, a cada dois anos, para mulheres entre 50 e 69 anos.
No câncer de próstata, a controvérsia está na adoção do PSA, tipo de exame de sangue para a detecção. Já no câncer de pulmão, a polêmica está no diagnóstico por tomografia.
“Não há dúvida que o desenvolvimento dessas técnicas constitui uma das maiores evoluções da medicina de todos os tempos”, explica à Saúde!Brasileiros Rubens Chojniak, radiologista e diretor de Diagnóstico por Imagem do A.C.Camargo Cancer Center.
“Mas para o público, a maior parte das informações hoje fornecidas enfatiza os aspectos positivos do rastreamento, e a população tende a superestimar os benefícios.”
O especialista do A.C.Camargo também escreveu, recentemente, um artigo na Revista de Radiologia Brasileira destrinchando melhor o assunto. Lá, ele descreve o fenômeno dos incidentalomas (termo médico para alterações benignas encontradas), que acarretam a Vomit (em inglês, Victims Of Modern Image Tecnology, algo como vítimas da moderna tecnologia de imagem).
O reconhecimento desses fenômenos e até o surgimento de termos indicam o quanto a ciência está se debruçando sobre o assunto. Entre o público geral, no entanto, faltam informações mais detalhadas sobre os riscos. “Médicos e as campanhas públicas deveriam, sempre que possível, esclarecer a população de forma mais completa, incluindo informações sobre os benefícios e as limitações do processo de rastreamento”, ressalta o radiologista Chojniak.
Fato é que, apesar da necessidade da comunicação de mais informações, talvez nem médicos, nem as campanhas atingiram um consenso sobre o assunto. O equilíbrio entre os benefícios e as frustrações da detecção por exames de imagens ainda não foi encontrado.
Os estudos são recentes – e muitas vezes contradizem uns aos outros, numa clara demonstração de que é necessário um maior aprofundamento das questões que envolvem tanto a adoção em massa, quanto a crítica ao excesso de diagnósticos.
Câncer de mama
A restrição à mamografia, exame para a detecção do câncer de mama, por exemplo, ganhou força com estudo publicado em 2014 no respeitado British Medical Journal (BMJ).
Pesquisadores analisaram prontuários médicos e viram que 22% dos cânceres detectados jamais seriam letais ou causariam qualquer transtorno à mulher. No Brasil, projeto de lei que quer ampliar acesso ao exame no SUS tem sido alvo de críticas por motivos similares.
Na outra ponta, um estudo de revisão recente pontuou que é a falta de diagnósticos – e não o excesso de exames – o principal problema do câncer de mama. O estudo foi publicado no final de setembro desse ano na edição on-line e aberta do periódico Population Health Management.
Câncer de pulmão
Mais recentemente, começaram questionamentos em torno do papel do rastreamento de câncer de pulmão, o mais letal do mundo, por tomografia computadorizada de tórax para redução de mortalidade pela doença.
No entanto, um estudo publicado na edição de outubro The Annals of Thoracic Surgery, apontou que o rastreamento não aumentou o número de cirurgias. Os pesquisadores analisaram em retrospecto pacientes do programa de câncer de pulmão do Lahey Hospital & Medical Center e viram que a intervenção para o câncer benigno foi rara (menos de 0,24%) .
“O rastreamento do câncer de pulmão salva vidas e nosso estudo serve de modelo para ter um programa eficiente”, escreveram.
Câncer de próstata
Um dos mais importantes estudos sobre a controvérsia desse tipo de câncer foi publicado no Lancet, em 2014. A pesquisa ocorreu em vários países europeus e acompanhou por 13 anos pacientes que realizaram o PSA (sigla para Antígeno Prostático Específico; em inglês, Prostate Specific Antigen). Na prática, é um exame de sangue que detecta a proteína PSA, que é única e específica para a próstata.
A cada 4 anos, esses homens foram escolhidos de forma aleatória (ou seja, sem consideração do histórico clínico, nem outras variáveis) para a realização do teste. Na Suécia, o exame foi feito a cada dois anos. Se a concentração de PSA fosse superior a 3,0 ng/ml, o participante era encaminhado para a biópsia.
O número de mortes por câncer de próstata foi reduzido em 21% entre os homens que foram selecionados. Além disso, os homens que realizaram o PSA tiveram menor risco descobrir o câncer de próstata em estágio avançado.
A questão é que, embora tenha diminuído a mortalidade, o estudo também apontou que 60% dos tumores detectados pelo exame da PSA eram de baixo risco, com pouca probabilidade de realmente apresentarem sintomas mais sérios.
Então, o que fazer?
Em face dessas contradições, como devemos proceder? Afinal, focamos nas limitações, a despeito da necessidade de prevenção? Ou dá para juntar as duas coisas, considerando também outros fatores que podem contribuir a um melhor diagnóstico? Por fim, dá para delegar tudo ao exame?
As questões são complexas de responder –como o câncer. Mas dá para perceber alguns movimentos:
– Novas diretrizes vão sendo estabelecidas para cada tipo de tumor em relação às estatísticas que já se tem sobre esses exames. Ou seja, pesquisas de revisão olham para o quanto esses testes de fato levaram a procedimentos desnecessários e começam a estabelecer suas conclusões a partir daí.
– Há variáveis que devem ser consideradas, como o histórico familiar da doença, estilo de vida e demais fatores de risco conhecidos que possam justificar o exame.
– O terceiro movimento importante é que o paciente seja protagonista desse diagnóstico e seja informado dos riscos associados.
No fim, talvez o caminho seja abraçar essa contradição e se certificar de todos os cuidados e evidências na hora do pedido do exame, que é apenas complementar, como aponta Chojniak.
“Prevenção e tratamento precoce bem conduzidos continuam sendo a mais promissora frente de combate às doenças comuns e graves como o câncer”, diz.
Contudo, o entusiasmo pela tecnologia, continua o especialista, “pode levar a um cenário onde um exame passa a ser visto sempre como ‘uma boa ideia’ que ‘só pode ajudar’, sem o entendimento que existem riscos envolvidos.”
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