Sabemos que não dá para alguém ir ao médico só quando tem emprego, diz Cebes

Após derrubar a CPI dos Planos de Saúde e tentar sanar dívidas dos planos com o Sistema Único de Saúde, a nova cartada de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) é um projeto que torna obrigatória a assistência de saúde privada para quem está trabalhando. 

Mas no que depender do Cebes (Centro de Estudos Brasileiros para a Saúde) e de sua presidente, Ana Maria Costa, Cunha vai enfrentar muita resistência.  Para Ana Maria, atrelar a saúde a serviços privados faz com que a população gaste com atendimentos de baixa qualidade e se veja desamparada no desemprego.

A instituição defende, por isso, cada vez menos subsídios para o serviço privado e preconiza que eles deixem de ser abatidos do Imposto de Renda.  Essa renúncia fiscal está em torno de R$ 5 bilhões e deveria ir para a saúde pública, avaliam. 

O Cebes foi, nos anos 1970, um dos protagonistas da Reforma Sanitária Brasileira ou Movimento Sanitarista Brasileiro. O movimento pensou todas as variáveis (culturais, políticas e econômicas) que determinavam a qualidade de vida da população e foi o pano de fundo para a 8 Conferência Nacional de Saúde, de 1986. De lá, saiu o projeto que culminou na formação do SUS na Constituição de 88.

A reforma não se reduzia ao SUS e era mais ambiciosa. Pensava, por exemplo, o gênero, a raça e as etnias na saúde. Hoje, o Cebes, se vê na posição de defender o sistema público que ajudou a viabilizar. As ameaças, somadas ao ajuste fiscal e as iniciativas do Congresso e do Senado (leia reportagem aqui) são muitas.

Por tudo isso, o Cebes publicou neste mês a “Tese para a 15 ª Conferência Nacional de Saúde”, que será realizada nos nos dias 1 a 4 de dezembro. 

Lá, lista os princípios que acreditam serem capazes de fazer com que o SUS retome seu projeto inicial de universalização da saúde gratuita.  Em entrevista, Ana Maria Costa  explica parte das teses, diz por que é contra à proposta de Cunha e faz uma avaliação do governo Dilma na saúde.

Ana Maria Costa, presidente do Centro de Estudos Brasileiros para a Saúde. Foto: Arquivo Pessoal
Ana Maria Costa, presidente do Centro de Estudos Brasileiros para a Saúde. Foto: Arquivo Pessoal

Saúde!Brasileiros: Vocês defendem o aumento do gasto público à saúde. Isso não vai na contramão da situação em que vivemos? Temos força política e dinheiro pra isso?

Ana Maria Costa: Saúde não é gasto, mas investimento. Um povo sem saúde é incompatível com o desenvolvimento. O Brasil investe poucos recursos públicos para a saúde apesar de um mandato constitucional de um sistema público e universal.

O SUS não tem financiamento suficiente e, com o ajuste fiscal, esse dinheiro foi ainda mais reduzido. Ainda temos a DRU que desvinculará agora, se aprovada, até 30% dos recursos da saúde a depender das necessidades prioritárias do governo.

Entretanto, o Brasil continua gastando um volume muito grande de recursos públicos com o pagamento de juros e encargos da dívida (10%)  e amortização da dívida (8%), contra apenas 6% para a saúde. 

O SUS precisa de recurso adequado e vinculado para que se consolide como o sistema de saúde previsto na Carta Constitucional.

Também argumentam que a não dedução do IR de serviços gastos com a saúde poderia aumentar os recursos para o SUS. Acredita que uma medida tão impopular poderia ser implementada?

A renúncia fiscal opera como incentivo para que trabalhadores e população em geral gastem com serviços e planos privados de saúde. Claro que a população é estimulada a buscar recursos assistenciais privados em saúde porque não confia no SUS para resolver de forma oportuna e com qualidade os seus problemas.

Enquanto o SUS não for um sistema de qualidade e de fácil acesso à população, ninguém confiará nele. Mas são necessários recursos. O montante estimado da renúncia fiscal não é desprezível e esse recurso deveria ser aplicado no SUS. Isso seria, segundo estimativas, em torno de 5 bilhões de reais. 

E o SUS gasta com a população segurada por planos privados, mas estamos muito distantes de receber todo o gasto de volta. O seguro lucra duas vezes: com o que recebe do segurado e com o que deixa de gastar com o atendimento feito pelo SUS.  É justo isso?

Mas tudo depende de força política e a medida é pouco popular…

A medida pode ser impopular para uma parcela da população segurada mas, essa mesma parcela da população que tem seguro privado associado ao emprego sabe que, ao perder o vinculo do emprego ou com a aposentadoria, não conseguirá seguir pagando plano de saúde que, ainda por cima, aumenta com a idade. A população sabe que isso é insustentável. 

E isso ocorre justamente na fase da velhice, quando as pessoas mais precisam de atendimentos e serviços de saúde. O recurso que resta a elas é o SUS. Defender a consolidação do SUS é uma questão de consciência política em relação aos direitos sociais e de cidadania. Trata-se de um processo longo de incorporação dessa consciência que já está em curso no Brasil.

Entre outras questões, o Cebes cita a participação do Brasil no BRICS, a reforma política e a reforma tributária na tese. Por que essas questões são importantes para a saúde?

Primeiro, fortalecer o BRICS é lutar pela despolarização e contra o acirramento das desigualdades entre países. A saúde está no meio disso tudo porque precisa assumir um destaque nos projetos de desenvolvimento dos países, como expressão da valorização do ser humanos. Há chances de que novos acordos surjam no cenário criado por esses países.

Por outro lado, a saúde mobiliza um enorme setor produtor de insumos tecnológicos hoje está muito centralizado nos países centrais e que poderão ser melhor distribuídos. Isso poderá contribuir com melhores preços e maior acesso das populações a insumos hoje restritos a grupos de populações privilegiadas. Portanto, a saúde tem muito a ganhar com o BRICS e esperamos que, na queda de braço que assistimos hoje, essa associação de países possa prosperar efetivamente.

Vocês citam o projeto de emenda constitucional 451, de autoria do Eduardo Cunha, que tornaria planos privados obrigatórios aos trabalhadores empregados. Por que são contra? 

Somos contra porque a proposta remete o Brasil ao modelo anterior à Constituição Federal, em que saúde era privílegio dos segurados pelo INAMPS, que tinham vínculo de trabalho. 

Precisamos lembrar que a Política de Proteção e Seguridade Social – articulando saúde, previdência e assistência social – aprovada pelos nossos constituintes e constantes de nossa Carta tem por base uma sociedade solidária que, para funcionar, conta com distintas faixas de contribuintes para que todos, de forma indistinta, possam usufruir. Esse tecido solidário é básico na democracia social . 

Somos contra porque a saúde é de relevância pública e não pode ser mercantilizada como qualquer produto. Somos contra porque a saúde é direito de todos e dever do Estado tal como o artigo 196 da Constituição preconiza.

Como avalia o governo Dilma e a atuação do Congresso  nesse momento?

O governo Dilma deve ser avaliado no contexto das complexas forças sociais que imperam no Brasil e que mantém governos sob seus interesses. Os avanços conquistados nos últimos anos são inegáveis ainda que insuficientes em relação a conquista de justiça social plena.

Ao examinarmos, foi muito o pouco que se gastou no país para promover as políticas de inclusão social e da renda, mesmo com o real impacto que ocasionou na qualidade de vida e acesso a bens e serviços de parcelas da população mais pobre. E houve impacto real sobre o consumo o que satisfaz claramente ao mercado.

E os avanços na saúde, tivemos?

Na hora de avançar, de promover mais mudanças na estrutura das classes sociais e na soberania nacional, a reação das forças privilegiadas historicamente surge de forma agressiva, tal como temos assistido na tentativa de golpe político e inviabilização de um avanço de um estado com mais compromisso com o bem-estar social. 

Um cenário de forças antagônicas, mas covardemente manipulado pela condução da opinião pública. Temos uma mídia aliada ao poder dos mais abastados, que,  mesmo em menor número, acumulam um poder descomunal. Eles servem e obedecem muito bem aos que lhes financiam. 

Um jogo duro. Dilma tem sobrevivido – e certamente sobreviverá – mas com muitas concessões e, por isso, com um enorme desgaste de seu patrimônio político e o de seu partido. Nesse contexto, a saúde não tem recebido as prioridades, os recursos e o lugar que gostaríamos. 


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