Última vaga em manicômio é fechada na cidade de São Paulo

Na semana passada, na quinta-feira (1) a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo anunciou o fechamento do último leito de hospital psiquiátrico na capital. “Nossa cidade está livre dos manicômio”, celebrou o secretário de saúde Alexandre Padilha. A iniciativa atende ao movimento da reforma psiquiátrica, uma luta de quase 30 anos dos profissionais da Saúde Mental e da sociedade civil. Seu objetivo é acabar com a segregação, o confinamento e o isolamento e reconstruir os vínculos sociais e familiares dos pacientes psiquiátricos.

Após o anúncio da medida, o questionamento mais comum nas redes sociais era para onde foram levados os doentes remanescentes e o que se pode fazer com os pacientes em crise. De acordo com secretaria da Saúde do município, mais de 160 pacientes foram encaminhados para unidades de residência terapêutica, modelo preconizado pela Política Nacional de Saúde Mental e adotado em vários países do mundo. “Os que necessitavam de acompanhamento hospitalar foram transferidos para leitos de saúde mental em hospitais gerais. Infelizmente, ainda há quem prefira manter pessoas doentes em ‘prisões’ para não ter responsabilidade sobre elas e sua recuperação. Não é isso que os técnicos e gestores da Secretaria acreditam e praticam. Por isso, São Paulo está livre de manicômios”, declarou o secretário municipal Padilha.

O Juquery foi desativado e seus últimos pacientes tranferidos. Fotos: Wikipedia/CCO
O Juquery, no município de Franco da Rocha (SP),  está em processo de desativação. Ainda vivem lá cerca de 130 pacientes. Foto: Wikipedia/CCO

Hoje, a pessoa que precisa de atendimento pode ir a um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Em São Paulo, há 82 deles. Ali, pode passar o dia até melhorar ou permanecer em tratamento intensivo por curto período de tempo. O que não pode é reter o paciente contra a sua vontade, exatamente o oposto do que era feito nos manicômios. A atual rede paulistana de atenção mental  é também composta por 39 residências terapêuticas (para onde foram transferidos os últimos pacientes que permaneciam em internações de longa duração em São Paulo), 16 unidades de acolhimento, 23 centros de convivência e cooperativa e 13 hospitais municipais com enfermaria de saúde mental. Há ainda 18 consultórios de rua, o programa De Braços Abertos (para atendimento de dependentes de drogas).

Mudar a cabeça

Pelo Brasil, a transformação do atendimento para atender a Política Nacional de Saúde Mental busca soluções diferenciadas. Na pequena cidade de Jaraguá do Sul, em Santa Catarina, que tem cerca de 160 mil habitantes, há um ano funciona um modelo baseado na experiência da Finlândia, chamado de Open Dialogue. “Procuramos fazer uma abordagem bastante rápida de pacientes em crise na própria casa dele. Isso evita que a pessoa tenha que buscar atendimento longe da família”, diz o psiquiatra e psicanalista Marcelo Dias, vice-coordenador de residência médica em Saúde da Família do SUS em Jaraguá do Sul e responsável pelo apoio na área da saúde mental a cinco unidades básicas de saúde da cidade. “Desde o momento em que o paciente entra em crise até chegar ao centro de atendimento, seu estado pode se agravar muito durante o trajeto, chegando a uma situação em que a família já não tolera mais a situação e um não entende o outro”, diz o especialista.

Nessa ação baseada no programa Open Dialogue, a equipe promove uma roda de diálogo com as pessoas que compõem a rede social do paciente, envolvendo familiares, amigos, vizinhos, colegas de prática religiosa. “A experiência com cinco famílias atendidas durante 2016 com essa perspectiva foi positiva. “As famílias conseguem entender melhor a doença e a crise, ficam mais tranquilas e se sentem com melhores condições de dar suporte, tomar decisões e lidar com seu familiar com problemas psiquiátricos”, descreve o psiquiatra. Em geral, esses encontros acontecem entre duas e três vezes por semana. Com isso, diz Dias, tem sido possível evitar internações e tirar os pacientes da crise sem que precisem ir ao CAPS. Para o psiquiatra, a permanência em tratamento intensivo nos CAPS, ainda que por períodos menores, precisa também ser repensada. “Apesar de não estarem presos ou confinados, os pacientes ficam isolados, distantes da família.” Atualmente, pacientes graves de Jaraguá do Sul que precisam de cuidados médicos vão para uma enfermaria psiquiátrica existente no Hospital Geral da cidade de Joinville. Entrevistas com funcionários de CAPS paulistano feitas por Saúde!Brasileiros mostraram os efeitos da crise de financiamento da saúde nessas estruturas. 

Além disso, um dos maiores entraves para se criar uma nova cultura no campo da saúde mental é a dificuldade de adaptação dos próprios médicos. “Na reforma psiquiátrica, não apenas os pacientes precisam sair do hospital. Os médicos também precisam sair das suas estruturas e ir para o território. É preciso mudar a cabeça”, diz o psiquiatra Dias.  

Caminhada em Jaraguá do Sul levou mais de 100 profissionais da saúde mental às ruas para sensibilizar a população e discutir  as conquistas e desafios da Política de Saúde Mental na cidade. Foto: RedeHumanizaSusnet.
Caminhada em Jaraguá do Sul levou mais de 100 profissionais da saúde mental às ruas para sensibilizar a população e discutir as conquistas e desafios da Política de Saúde Mental na cidade. Foto: RedeHumanizaSusnet.

Vozes discordantes 

Também existem diversos profissionais da saúde mental que discordam da reforma psiquiátrica. Em um dos seus artigos publicados na versão online do jornal Diário da Manhã, o médico psiquiatra Marcelo Caixeta, de Goiás, abordou a prisão de um proprietário de uma clínica de recuperação para dependentes químicos em Três Ranchos, no sudoeste de Goiás, acusado de cárcere privado e maus tratos a 12 pacientes, mantidos ali involuntariamente. Além disso, criticou veementemente os pressuspostos da reforma psiquiátrica. Segundo Caixeta, para cada dez leitos que o governo fechou, surgiram outros 100 nas chamadas “casas de recuperação.” Nesses locais particulares ou filantrópicos são tratados pacientes com dependência de drogas e álcool e problemas psiquiátricos. “A reforma psiquiátrica levou a uma destruição da psiquiatria e, com isso, o governo produziu dezenas de milhares de pacientes clandestinos, em locais sem nenhuma estrutura de saúde, quanto mais hospitalar.” Ele prossegue: “Enquanto isso, os hospitais de verdade, como o filantrópico que eu dirijo, estão afogados em dívidas, asfixiados por imposição governamental de contratar centenas de empregados desnecessários, tendo de pagar impostos e mais impostos, tendo de seguir caminhões de leis e normas asfixiantes.”  

Daniel Navarro Sonim, autor do livro O Capa-Branca (Ed. Terceiro Nome), escrito em parceria com Walter Farias, um ex-atendente de enfermagem que se tornou paciente do Juquery, revela uma visão contrária. “De fato, devemos estar atentos no âmbito privado, porque ainda existem muitas clínicas particulares que operam como se fossem verdadeiros manicômios. Algumas cobram verdadeiras fortunas e mantêm pacientes encarcerados em condições degradantes, um verdadeiro retrocesso tanto para a Luta Antimanicomial como para a reforma psiquiátrica”, diz o escritor. Mas reafirma que, se a internação fosse a melhor solução, o Juquery, em Franco da Rocha (SP) ainda estaria em pleno funcionamento e não em processo de desativação com pouco mais de 130 pacientes – muito diferente dos 18 mil que chegou a abrigar nos anos 1970.

Daniel Navarro e Walter Farias (à dir.) que de funcionário se tornou paciente do Juquery e depois contou a experiência em livro. Foto: Arquivo pessoal
Daniel Navarro e Walter Farias (à dir.) que de funcionário se tornou paciente do Juquery e depois contou a experiência em livro. Foto: Arquivo pessoal

Ao contar a história de Farias, o livro de Sonim mostra que o antigo modelo manicomial, seguido não apenas pelo Juquery, mas por muitas outras instituições espalhadas pelo Brasil, está falido há muito tempo, pois trancar e aplicar tratamentos desumanos e cruéis não é uma alternativa viável. “Ao ingressarem nesses instituições, os indivíduos perdiam suas identidades e esperanças. Suas aflições se transformavam em agonia e desespero, já que muitos deles nunca mais saiam com vida desses verdadeiros depósitos de gente excluída”, diz Sonim.

Para o escritor, saber que o último leito de hospital psiquiátrico foi fechado na cidade de São Paulo, tornando-a, assim, livre de manicômios, representa uma importante conquista para os profissionais da Saúde Mental e, claro, para a sociedade civil como um todo. Nas palestras que ministra com Farias em universidades, escolas, hospitais e CAPS por todo o Brasil, Navarro conta que a dupla ouve e presencia a realidade de trabalhadores da Saúde Mental que, apesar de todas as dificuldades acreditam que o confinamento não é a solução. “Mas é importante ressaltar que as redes de atenção psicossocial dos outros municípios devem estar preparadas para atender os pacientes. E a própria Rede de Atenção Psicossocial da cidade São Paulo tem que continuar se fortalecendo. As pessoas com problemas psiquiátricos, psicológicos ou mentais precisam reconstruir os vínculos com a sociedade e com a família”, afirma. 

Leia também O Manicômio Manda Lembranças, artigo de Daniel Navarro Sonim sobre a realidade abordada em seu livro. 


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