No dia 11 de novembro de 2015, o Brasil declarava emergência nacional pelo Zika. Temos, assim, um ano de uma das maiores tragédias de saúde pública da história do País e chegou a hora de um balanço. Nesse período, os talentosos profissionais da ciência brasileira conseguiram comprovar e revelar ao mundo, por exemplo, que o Zika é causa direta das alterações neurológicas verificadas em recém-nascidos, mas o saldo dos esforços de investigação ainda é incerto. Simpósio internacional realizado recentemente pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) mostra que há muito mais perguntas do que respostas, apesar dos avanços. Com anomalias de tamanha gravidade, que os cientistas entendam nossa ansiedade.
O evento, feito no Rio de Janeiro entre os dias 7 e 10 de novembro, fez da tradicional Academia Brasileira de Medicina um palco de perspectivas e de demonstrações de uma ciência pujante e dinâmica. No espaço de um ano, redes intensas foram formadas e especialistas de áreas diversas tiveram que entender de doenças infecciosas para compreender a extensão da epidemia. “A última vez que eu mexi com doenças infecciosas foi com o [trypanossoma] cruzi na graduação”, disse um especialista. “Confesso que a primeira vez que ouvi falar do Zika foi no Carnaval”, disse um outro.
Com muita humildade e força de vontade, a ciência básica se juntou com a clínica, médicos da linha de frente da assistência publicaram em revistas científicas internacionais de alto impacto. De tudo isso, prevaleceu a percepção de que preciso unir esforços para dar uma resposta para a sociedade. E ela foi dada. Com o resultado das pesquisas em solo brasileiro, fundos de financiamento em todo o mundo foram movimentados. Há o Zika Plan (consórcio americano) e o Zika Alliance (consórcio europeu). Essa relação ainda só foi possível porque, mesmo com tantas dificuldades, o Sistema Único de Saúde consegue funcionar e integrar redes de assistência com instituições de ponta e bons profissionais. “O sucesso em desvendar o mistério do Zika foi o sucesso do desenvolvimento da ciência e da tecnologia e do Sistema Único de Saúde”, disse Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, na cerimônia de abertura do simpósio internacional.
Outra vitória foi a mudança de paradigma na ciência. “O Zika fez com que os cientistas se preocupassem menos com as suas linhas de pesquisa, com os paper publicados e passassem a cooperar. A prioridade passou a ser uma resposta para a sociedade e isso foi uma mudança importante que deve ser preservada”, mencionou Wilson Savino, diretor da Fiocruz. Uma questão importante foi o compartilhamento de arquivos. A comunidade científica precisa refletir sobre a posse de dados e o Zika é uma oportunidade para isso. Uma grande contribuição do Simpósio foi a de mostrar o cenário na América Latina. Convidados da Colômbia, Venezuela, Peru, Equador e Estados Unidos apresentaram dados sobre o Zika e achados sobre anomalias e encefalites.
Os elogios cessam por aqui, no entanto, e sobram questões em aberto.
– Outras formas de transmissão precisam ser melhor estudadas;
– Não há tratamento específico disponível;
– Não há como evitar as anomalias durante a gravidez;
– Ainda não há vacina;
– Não se sabe o que a infecção cruzada com dengue causa e porque há variações de imunidade entre indivíduos;
– Não se sabe porque o Brasil tem as maiores taxas de anomalias associadas ao vírus no mundo, quando o patógeno, agora, está circulando em quase todo o globo.Ainda, novos estudos devem trazer más notícias. Uma pesquisa que será publicada no New England Journal of Medicine, feita por pesquisadores brasileiros, vai mostrar efeitos tardios do Zika. Os pesquisadores detectaram e investigam o surgimento de problemas associados ao desenvolvimento do sistema nervoso em 42% dos casos de mulheres infectadas por Zika na gravidez cujos filhos nasceram sem anomalias aparentes.
Também falta dinheiro para a pesquisa. “As agências são virtuais, o dinheiro que foi prometido era bom, mas ele não chegou, virtualmente era tudo muito interessante”, disse Mauro Teixeira, pesquisador da UFMG. Se para a pesquisa nos grandes centros não há pesquisa, na ponta da assistência, o cenário de carência é generalizado.
“Hoje, uma mãe me escreveu no Whatsapp dizendo que não tinha tido direto ao benefício porque o marido trabalha. O marido dela ganha R$ 800 e ela tinha R$ 125 para pagar contas e alimentação. Gente, essa criança é cara”, diz Adriana Melo, a neuropediatra de Campina Grande, Paraíba, que mostrou ao mundo a relação do Zika com as anomalias. “Eu não estou aqui como cientista, nem como médica, estou aqui como embaixadora de uma causa”.
Também há muita informação desencontrada sobre o teste diagnóstico adotado. Há dois tipos de testes: um molecular, conhecido como PCR, capaz de detectar o vírus quando a infecção está ativa; e o sorológico, que identifica anticorpos que tentaram lutar contra o Zika e, por isso, pode ser adotado em qualquer fase da doença e até para descobrir se a pessoa teve contato com o vírus. O teste sorológico é, assim, necessário para mães que estão tentando engravidar e querem saber se tiveram contato com o vírus. A questão com o teste sorológico, no entanto, é o falso positivo – como não foram encontradas diferenças entre os anticorpos para a dengue e para o Zika, pode ser que o positivo seja para dengue e não para o Zika. É preciso, então, que esse teste seja muito específico.
Semana passada, o Ministério da Saúde anunciou a compra de testes. Houve desconfiança em relação a essa compra no simpósio. Wilson Savino, um dos diretores da Fiocruz, tocou no assunto de maneira indireta. “Precisamos de testes eficazes não só na assistência, mas isso pode prejudicar toda a compreensão da doença”, disse. Já Patrícia Brasil, chefe do Laboratório de Pesquisa Clínica em Doenças Febris Agudas do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) foi mais direta. “Para onde foi que o Ministério da Saúde mandou esses testes, quem validou esses testes, por que o ministério não consultou os especialistas que estão lidando com isso?”, questionou.
Perguntas, a frente da assistência e o avanço do chikungunya
De modo geral, o consenso entre os cientistas é que o Brasil ainda irá conviver com o Zika por muito tempo – e que o chikungunya vai crescer por aqui: há indícios de que ele também possa causar anomalias em crianças. Outro ponto é que Brasil lidera no mundo os casos de microcefalia e é preciso entender isso.
Pesquisadoras que tiveram na linha de frente dos casos (Patrícia Brasil, da Fiocruz, Maria Elizabeth Lopes, do Instituto Fernandes Figueira, do Rio, e Adriana Melo, do Instituto de Saúde Elpídio de Almeida, na Paraíba) apresentaram que algumas gestantes testaram positivo para chikungunya . Adriana Melo descreveu casos de encefalite e de dermatite bolhosa em crianças que estão associadas com o vírus.
Maria Elizabeth, do Instituto Fernandes Figueira, apresentou casos de crianças com síndrome que tiveram evolução com estimulação. “Só de colocarmos o óculos em uma das bebês, ela já aumentou a interação com os pais”. A pesquisadora frisou que não se trata de uma geração perdida e que é possível melhora de vários parâmetros nessas crianças. “Me doi quando falam que é uma geração perdida. Eu não aceito isso”. Patrícia Brasil relatou que o Zika tem um efeito de “cluster” – onde mais membros de uma mesma comunidade são infectados. “No ambulatório, é comum às vezes chegar a família inteira, o que não acontecia com a dengue.”
O neurologista Osvaldo Nascimento, da Universidade Federal Fluminense, mostrou um caso em que a medula de um estudante de doutorado desapareceu depois de um tempo após infecção por Zika. Ele também relatou o caso de uma professora de farmacologia em que houve o hipocampo também foi suprimido. “Isso é algo que a gente só vê em pacientes de Alzheimer avançados”, disse. Na audiência, perguntaram se é possível que a dengue possa causar também as alterações. “De dengue, não vimos nada, mas chikungunya é outra história”, diz. “Temos que ficar alerta para casos de chikungunya em crianças.”
Pesquisadores têm ainda muitas perguntas e bombardearam uns aos outros com provocações e buscas por respostas. “Uma das questões que precisa ser resolvida é porque há padrões tão diferentes de anomalias. Por que alguns casos são tão sérios e outros não?, disse Adriana Melo.
No geral, especialistas buscam respostas para as seguintes perguntas:
– O vírus Zika age sozinho ou associado com outro agente?
– Por que a incidência é maior no Nordeste?
– Existem realmente clusters [agrupamentos] de malformações e infecções?
– Apenas estruturas ligadas ao sistema nervoso são atingidas ou outros órgão são atingidos?
– A gravidade dos achados depende da imunidade materna ou do feto?
– Por quais mecanismos o vírus rompe a barreira placentária?
– Qual é o verdadeiro risco da microcefalia e sua incidência? Estudos encontraram de 1% a 13% e a diferença é grande.
– Qual é a consequência clínica do vírus? Já sabemos muito, mas precisamos avançar
– Por que o Zika é tão grave em alguns casos? Isso se deve à carga viral, à manifestação autoimune ou ambos?
Outro questionamento foi adicionado por Pedro Vasconcelos, do Instituto Evandro Chagas, no Pará: “Ainda não sabemos porque o número de casos de microcefalia por aqui é infinitamente maior, mas muito maior mesmo que em outros países. Pelo menos a mim, não há uma explicação que convença.”
Novas linhas de pesquisa e perspectivas
Respostas autoimunes (quando o sistema imunológico passa a atacar estruturas do organismo) podem estar ligadas às consequências nefastas do Zika no sistema nervoso, como mostrou o grupo de Alexandre Morrot, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Viu-se que o vírus aumenta a expressão do gangliosídio GD3, uma estrutura expressa em células-tronco neurais.
“Anticorpos que reagem aos gangliosídios nas células-troncos de fetos podem afetar o desenvolvimento cerebral em bebês”, relata morro. Os anticorpos, ao tentarem atacar o gangliosídeo, podem levar à morte do neurônio. A hipótese autoimune também foi citada pelo neurologista Osvaldo Nascimento, da Universidade Federal Fluminense.
Luciano Andrade Moreira, da Fundação Oswaldo Cruz de Minas Gerais, apresentou estudos promissores de como a wolbachia, uma bactéria presente em grande parte dos insetos, mas não no Aedes, pode ajudar no combate ao Zika, Dengue e Chikungunya. A estratégia tem por base achados do professor Scott O’Neill, da Universidade de Monash, na Austrália, que demonstraram que a Wolbachia é capaz de bloquear a transmissão do vírus da dengue no Aedes aegypti.
Um medicamento utilizado contra a malária, a cloroquina, mostrou resultados contra Zika. Os estudos estão sendo feitos pelo pesquisador Amilcar Tanuri, da Universidade Federal do Rio de Janeiro em parceria com Steven Rehen, pesquisador que produz neurônios em laboratório, também no Rio. A droga foi testada nos neurônios feitos por Rehen e diminuiu a quantidade de células infectadas em até 95%. A vantagem da cloroquina é que trata-se de uma droga já usada e não contraindicada para grávidas.
Mauro Teixeira, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, viu que a memantina é capaz de diminuir a morte cerebral do Zika e tem efeito protetor. O medicamento já é utilizado contra o Alzheimer. O pesquisador espera que o medicamento seja combina com antivirais específicos para o Zika. “A estratégia, ao meu ver, será a de atuar em várias frentes para impedir a doença mesmo que haja a infecção e a combinação de drogas que matem o vírus e ao mesmo tempo protejam as células nervosas é uma estratégia interessante nesse sentido”, diz.
Ian Lipkin, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, mostrou a importância de vários processos nas infecções: a influência do genoma, do tempo de infecção e do meio-ambiente. Segundo o pesquisador, há interações entre bactérias e vírus que podem agravar infecções e que nada pode ser negligenciado. Também Lipkin atentou para a melhoria em sistemas de vigilância epidemiológica já que novos vírus rondam seres humanos e podem se adaptar.
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