Imagine uma internet cerebral, na qual é possível se conectar às outras pessoas sem precisar falar, visualizar uma tela ou mesmo digitar em qualquer tipo de teclado ou monitor touch screen. Se depender do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, essa ideia, aparentemente fantasiosa, poderá um dia se tornar realidade. Mais surpreendente do que isso: os primeiros passos em direção a essa intenção já estão dados. Em estudo recente, que chamou a atenção da comunidade científica e da mídia internacional, Nicolelis conseguiu conectar, como nunca antes foi feito, os cérebros de dois ratos que estavam em continentes diferentes, fazendo com que eles colaborassem na resolução de um problema.
O trabalho, publicado na Scientific Reports, é parte de uma nova linha de pesquisa batizada de Interface Cérebro-Cérebro (ICC), uma variante da Interface Cérebro-Máquina (ICM), com a qual Nicolelis e seu grupo já trabalham há anos no Centro Médico da Universidade de Duke (Durham, EUA) e no Instituto Internacional de Neurociências de Natal (Rio Grande do Norte). De maneira resumida, a ICM possibilita a transmissão da atividade elétrica do cérebro para algum receptor à distância, o que significa transformar pensamentos em comandos digitais que possam ser “compreendidos” pelas máquinas. A ICC, por sua vez, é a transferência das mesmas atividades elétricas, mas entre dois ou mais cérebros.
A ideia do cientista em desenvolver a pesquisa com ICC surgiu por volta de 2005, segundo ele, mas foi só em 2010 que Nicolelis escreveu pela primeira vez sobre o conceito de Brain Net (a internet cerebral). No mesmo ano, começou a colocar em prática experiências com ratos. O estudo progrediu rapidamente e chega agora aos primeiros resultados.
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A experiência
Na prática, o grupo do cientista possibilitou que os dois roedores se comunicassem para resolver tarefas simples. No experimento, um animal no Brasil, designado “codificador”, tinha duas alavancas à frente e uma luz sinalizava qual delas ele deveria pressionar para receber uma recompensa líquida. Os impulsos, captados por meio de microeletrodos implantados no cérebro do rato, foram transmitidos ao rato “decodificador”, que estava nos EUA. Ele tinha os mesmos tipos de alavanca à frente, mas nenhuma indicação luminosa. Para acertar a tarefa e receber a recompensa, o segundo roedor dependia, portanto, do sinal transmitido pelo primeiro.
Como os animais cooperaram para resolver o problema com grau de até 70% de acerto, os autores da pesquisa afirmam que foi estabelecida uma ligação direta e sofisticada entre dois cérebros. Ocorreu também que, quando o “decodificador” errava, o “codificador” alterava seu comportamento para tentar ajudá-lo na resolução da tarefa, o que significa que houve comunicação de mão dupla. Segundo Nicolelis, esse tipo de ligação pode se tornar a base de uma espécie de computador orgânico: “Significa que nós criamos uma nova plataforma experimental na confluência da neurociência e da ciência da computação, que pode ser usada tanto para explorar mecanismos básicos do cérebro como novas arquiteturas computacionais convencionais”, explicou, em entrevista à INOVAÇÃO!Brasileiros.
Melhor que o cérebro eletrônico
Para levar adiante a pesquisa, o cientista aponta os próximos passos. De um lado, serão feitos testes com uma rede maior de cérebros, com quatro ratos interconectados, que poderão comprovar ou não a hipótese de que “mais cabeças juntas pensam melhor”. De outro lado, o pesquisador já começou a realizar trabalhos com macacos, que podem ser treinados em tarefas mais elaboradas e, assim, usar mensagens mais complexas para serem transmitidas pela ICC. O neurocientista argumenta que esse tipo de “rede de cérebros” tem a potencialidade de realizar tarefas que um computador normal não faria.
“Existem certos problemas que uma máquina não consegue realizar. E são problemas que cérebros de mamíferos têm muita facilidade em resolver e envolvem a habilidade de adaptação a novos ambientes e ter soluções inovadoras. O computador faz o que foi programado, o cérebro consegue generalizar soluções”, afirma. E se isso é verdadeiro no caso dos animais, para os quais Nicolelis propôs o conceito de computador orgânico, a potencialidade da ICC é infinitamente maior no caso humano.
Surge daí o conceito de Brain Net, um passo ainda mais avançado na linha de pesquisa. “A ideia é, basicamente, no futuro e com métodos não invasivos, permitir que todos nós naveguemos a internet só pensando! “Seria como estar imerso em um meio de transmissão da atividade elétrica do cérebro, que nos permitisse trocar informações. Não só coisas complexas, mas sinais inteligíveis, que nos deixasse interagir em um meio diferente. É quase uma nova linguagem”, diz Nicolelis.
De qualquer modo, internet cerebral é apenas um conceito teórico no momento e ainda impossível ter qualquer previsão concreta de quando algo do tipo poderá ocorrer. Décadas ou séculos, não se sabe. Mas a velocidade dos avanços nos estudos com ratos e macacos não deixa de ser animadora, segundo Nicolelis. No caso humano, um dos entraves são os equipamentos necessários para ler e transmitir sinais elétricos produzidos pelo cérebro. Se nos animais foram usados implantes (como microeletrodos) instalados, isso não é possível nem desejável em humanos. “A ideia seria que fosse com equipamentos não invasivos. Essa é a dificuldade em e fazer isso agora. Já existem equipamentos que leem sinais elétricos do cérebro, mas ainda são muito pouco precisos. E a comunicação seria muito rudimentar”. Mas, também na evolução desses equipamentos, Nicolelis é otimista quanto aos avanços para os próximos anos. Além de Nicolelis os coautores desse estudo foram Miguel Pais Vieira, Mikhail Lebedev, Jin Wang e Carolina Kuricki.
Andar novamente
Apesar da repercussão em torno da atual pesquisa, não é a primeira vez que Nicolelis ganha destaque internacional com estudos inovadores. O mais famoso deles, chamado Walk Again (ou Andar de Novo), tem por objetivo fazer um jovem tetraplégico voltar a caminhar, usando um traje robótico (exoesqueleto) e a força do pensamento – se tudo der certo, o mundo poderá ver o resultado das experiências durante a abertura da Copa do Mundo de 2014.
Trata-se de um projeto ambicioso, que tem as credenciais de Nicolelis e seu grupo. O problema até aqui é que, há apenas um ano do evento esportivo, a tecnologia ainda não está totalmente desenvolvida. A boa notícia são os grandes avanços na linha de pesquisa com ICM nos últimos anos.
Se tudo ocorrer como previsto, a apresentação na abertura da Copa será, segundo Nicolelis, uma demonstração do potencial da pesquisa para reabilitar milhões de pessoas. “No futuro, será possível que pacientes tetraplégicos aproveitem essa tecnologia não apenas para mover seus braços e mãos e voltar a andar, mas também para sentir a textura de objetos colocados em suas mãos ou perceber detalhes táteis das superfícies em que passeiam com a ajuda de um exoesqueleto robótico.”
Diferentemente do caso da internet cerebral, podemos esperar, para um futuro muito mais próximo, a criação de uma série de neuropróteses capazes de restaurar funções motoras essenciais em pacientes que sofreram graves níveis de paralisia corpórea.
Por fim, seja pelos estudos com Interfaces Cérebro-Máquina ou com Interfaces Cérebro-Cérebro, o fato é que muito se espera do neurocientista Miguel Nicolelis e de sua equipe de pesquisadores. Ao contrário de outros projetos científicos que não prometem mudanças para a vida prática das pessoas, as pesquisas do brasileiro trazem grandes expectativas de transformação nos rumos da humanidade. Transformações que podem acontecer em breve ou não, mas que já mostram seus caminhos.
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