A maior escola do mundo

O autor do sistema de educação a distância, Salman Khan, ex-analista de fundos

Esta história começa com um aluno e um professor”, conta o ex-analista de fundos de investimento Salman Khan, logo no início da recém-lançada versão em português do livro Um Mundo, Uma Escola – A História da Khan Academy, o maior fenômeno educacional da internet. De 2004, quando o engenheiro e financista descobriu-se um educador e ofereceu as primeiras lições a distância para a prima Nadia, até meados de 2012, mais de seis milhões de estudantes passaram a acessar mensalmente a rede de computadores para recorrer às aulas e exercícios online desenvolvidos por ele. Como faz questão de ressaltar no livro e nas palestras que ministra mundo afora, o número de alunos assíduos no site – guardadas as diferenças de abordagem e propósito – é dez vezes maior do que o atendido pela Universidade de Harvard desde a sua fundação, em 1636.

Filho de um bengalês e uma indiana, o educador americano tempera com uma boa dose de humildade seu entusiasmo ao contar como os três mil vídeos que gravou até hoje foram reproduzidos 140 milhões de vezes. Nada menos do que meio bilhão de exercícios foram resolvidos no site. Entre seus fãs declarados, está ninguém menos do que Bill Gates. O fundador da Microsoft catapultou o crescimento do método ao dizer publicamente que utiliza as lições como reforço à formação dos filhos. Hoje, o número de visitas aumentam a um ritmo de 400% ao ano.

Ironicamente, o aspecto inovador do trabalho de Khan guarda mais semelhanças com as façanhas do falecido arquirrival de Gates, Steve Jobs, à frente da Apple. Assim como a marca da maçã, a metodologia da Khan Academy resume-se a uma maneira mais simpática e eficiente de fazer algo que muitos já ofereciam. No caso, videoaulas pela internet. É claro que a analogia termina por aí. Tão logo ele percebeu que seu jeito de ensinar online funcionava, assumiu como missão “fornecer educação gratuita, de padrão internacional, acessível para qualquer um, a qualquer momento, em qualquer lugar do planeta”. Uma filosofia que tornou dispensáveis tanto os artifícios de marketing quanto o uso das agressivas estratégias comerciais tão comuns na indústria do software.

Doações
Depois de Gates, que levou Khan até seu escritório em Seattle para oferecer apoio a sua causa, o educador conquistou admiradores/colaboradores, como o cineasta George Lucas; o presidente do Google, Eric Schmidt; e o empresário mexicano Carlos Slim. Em janeiro, mais um bilionário, dessa vez brasileiro, se rendeu definitivamente aos encantos da escola virtual, que vive das doações. Sócio de empresas como AB InBev, Lojas Americanas e Burger King, o empresário Jorge Paulo Lemann, atualmente o homem mais rico do País, fechou uma parceria global, por cinco anos, entre a Fundação Lemann, que preside, e a Khan Academy.

O anúncio foi feito pelo próprio empresário, no dia 17 de janeiro, durante um evento da instituição, que permitiu a vinda de Khan ao Brasil. Lemann, que considera o educador um “revolucionário pacífico”, revelou que vai investir R$ 10 milhões para facilitar o processo de internacionalização do método e, em especial, sua utilização por aqui. A fundação já atuava na tradução das aulas para o português, e desenvolveu um software para permitir, desde o ano passado, a realização de exercícios na língua local. A conversão de idioma abrangeu todo o conteúdo de Biologia, Física, Química e Matemática Fundamental 1, de acordo com o diretor-executivo da Fundação Lemann, Denis Mizne. Até o final do ano, mais 600 aulas serão acrescentadas, para permitir aos alunos brasileiros acompanharem todos os tópicos de Matemática.

O desafio da equipe da Fundação Lemann, a partir de agora, é conduzir a chamada localização da plataforma da Khan Academy. O processo consiste em traduzir não só o texto que aparece nas telas de computador, mas também as mensagens do sistema, que passam a adotar padrões locais, como unidades, medidas de tempo e formato de datas. O que pressupõe abertura total à tecnologia desenvolvida pela equipe americana.

“Teremos condições de, a cada vez que a equipe de Khan fizer uma melhoria, repassá-la aos alunos brasileiros. Nossas equipes vão trabalhar de perto”, explica Denis Mizne. “Temos outras parcerias com grupos de ensino online, inclusive no Brasil. Mas é uma área tão nova que precisamos aprender mais, estimular o desenvolvimento de plataformas brasileiras.”

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Segundo Mizne, as videoaulas traduzidas pela Fundação Lemann (e disponíveis no site www.fundacaolemann.org.br/khanportugues) foram assistidas 2,2 milhões de vezes. A instituição tem levado o conteúdo, inclusive com o sistema de exercícios adaptado para o português, a escolas municipais de São Paulo e do interior. Nos próximos dias, devem ser anunciados convênios com outras prefeituras, e a mais 200 salas de aula. Ao fim da palestra de Khan, a secretária de Educação do Rio de Janeiro, Claudia Costin, contou que o conteúdo traduzido é oferecido há mais de um ano como material de apoio às 1.074 escolas da rede municipal de ensino carioca.

Em sua passagem pelo Brasil, Salman Khan também angariou a simpatia da presidenta Dilma Rousseff e do ministro da Educação, Aloizio Mercadante. Após participar de encontros com as duas autoridades em Brasília, Khan recebeu a notícia de que os 600 mil tablets que serão distribuídos a professores da rede pública do Ensino Médio vão contar com um aplicativo para facilitar o acesso às suas videoaulas.

“O nível de energia no Brasil é impressionante. Movemos-nos rapidamente no Vale do Silício, mas vocês parecem querer ir ainda mais rápido. Com a diversidade e a escala locais, daqui a cinco ou dez anos o Brasil será um case a ser estudado”, afirmou o educador após a visita a Brasília.

Mas o que torna o sistema da Khan Academy tão atrativo? “O sucesso vem do fato de os alunos se sentirem como se estivessem conversando com eles”, arrisca o criador da instituição. A sensação de proximidade com o interlocutor é obtida justamente pela ausência da imagem do professor. O que o aluno vê durante as aulas é apenas uma tela escura, como se fosse um quadro negro. Os números, fórmulas e conceitos vão sendo desenhados à mão, conforme avança a explicação. No lugar de recursos gráficos sofisticados, Khan apostou em exposições simples e objetivas, sem recorrer a qualquer edição. “Eu erro muito e, com isso, os estudantes percebem que errar faz parte do processo de aprendizagem. E falo o que me vem à mente, sem roteiro”, afirma. O curioso é que a decisão de não usar mais recursos técnicos deveu-se à falta de dinheiro para investir em câmera, iluminação e outros aparelhos, e não à percepção de que mais alunos se interessariam pelas aulas.

Em 2009, quando o gestor de fundos decidiu finalmente pedir demissão da administradora de recursos em que trabalhava para fundar a Khan Academy, a infraestrutura era espartana: um computador, um software de captação de imagens de US$ 20 e uma mesa digitalizadora de US$ 80. Para esboçar os gráficos e equações, Khan utilizava o Microsoft Paint, o mesmo software gratuito que crianças usam para desenhar no PC. “Eu passava a maior parte do tempo usando uma camiseta de US$ 6 e calças de moletom, conversando com uma tela de computador e ousando sonhar alto”, conta o educador em seu livro.

Outra despesa fixa eram os US$ 50 pagos ao provedor de internet, que rodava o software de exercícios desenvolvido por Khan. O sistema que permite aos alunos praticarem o que aprenderam e progredirem nas disciplinas é, aliás, um trunfo tão importante para o sucesso do método quanto a qualidade das aulas.

Tão logo começou a ensinar, Khan dedicou-se a montar um sistema de avaliação e encadeamento de conteúdos, que indica ao aluno quando ele está pronto para progredir para temas mais avançados. Assim, conseguiu superar o que chama de “aprendizagem tipo queijo suíço” – o sistema tradicional de ensino permitiria ao aluno avançar mesmo com falhas graves na formação. “Uma nota relativa a 75% significa que está faltando um quarto daquilo que você precisa saber. Você empreenderia uma viagem longa em um carro com três pneus? Construiria a casa dos seus sonhos sobre apenas 75% ou 80% dos alicerces?”, questiona.

Potencial
Ao mesmo tempo em que levanta severas críticas ao modo como funcionam as escolas atualmente – o tema de suas palestras é A Educação Reinventada –, Khan dedica parte importante de suas entrevistas a explicar que o ensino online não vai substituir os professores nem tornar obsoletas as salas de aula. As videoaulas dariam aos educadores da escola a chance de aproveitar o tempo de aula menos com a exposição passiva dos conteúdos, e mais em conhecer melhor seus alunos e acompanhar o processo de aprendizagem. “A beleza do que estamos fazendo é que agora há recursos para permitir que as crianças alcancem todo o seu potencial, seguirem adiante e se conectarem com outras pessoas no mundo”, defende.

Apesar de contar hoje com uma equipe de 40 pessoas, entre eles professores e engenheiros de software bem pagos e cuidadosamente selecionados, Khan ressalta que há problemas a serem superados. “Temos centenas de coisas para consertar e pessoas do mundo todo para nos corrigir”, afirma. Um dos principais desafios é a ampliação do leque de disciplinas disponíveis, sobretudo no caso dos conteúdos mais subjetivos e menos universais do que as ciências exatas.

Khan recorda a polêmica levantada por uma aula de história, publicada no site, que tratava das intervenções da CIA, a agência de inteligência americana, na política interna do Chile na década de 1960. “Choveram comentários, inclusive do Chile, de pessoas que concordavam e discordavam da nossa abordagem. Isso não acontecia nas aulas de álgebra. Mas não censuramos nada, deixamos que as pessoas interagissem, debatessem e tivessem acesso a outras opiniões.”

Embora tenha nascido de um projeto despretensioso, a Khan Academy agora caminha rumo a objetivos nada modestos. Mudar uma estrutura educacional concebida no século 18 que sobreviveu aos últimos séculos sem alterações radicais pode ser uma meta mais ambiciosa do que a quase onipresença permitida pela internet. Mas é essa a via escolhida por Khan, como ele deixa subentender na frase com que encerra seu livro: “Se a Khan Academy provar ser mesmo uma parte da solução para a nossa enfermidade educacional, eu me sentirei orgulhoso e privilegiado por ter feito alguma contribuição”.


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