A mulher que diz não

Para muita gente, é quase sempre difícil dizer “não”. Então, dá para imaginar ter de dizer “não” para quase 200 pesquisadores, grande parte PhDs (Philosophiae Doctor), todas as semanas? E nunca é um simples “não”, é preciso fundamentá-lo com argumentos irrefutáveis. Durante seis anos, essa foi a rotina da bióloga e cientista mineira Andrea Kauffmann-Zeh, quando morava na quase sempre cinzenta Londres. Lá, depois de se debruçar, por mais de uma década, nas bancadas de laboratórios de importantes instituições, ela se tornou editora sênior da inglesa Nature, influente revista científica. Capitaneada pela tradição de mais de 140 anos de existência, a Nature publica papers (artigos científicos feitos para publicações especializadas) que, nas palavras tarimbadas de Andrea, são capazes de direcionar grande parte das comunidades científicas internacionais. É também o aparato que sustenta e dá fôlego às descobertas acadêmicas.

Pelo crivo e aprovação de Andrea passou, em 1997, a divulgação da pesquisa que deu notoriedade à ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado a partir de uma célula adulta, fruto de um trabalho realizado no Instituto Roslin (Escócia) e que gerou na sociedade os mais calorosos debates sobre a possibilidade de clonagem humana. Também foi emocionante, conta ela, ter em mãos o relato do mapeamento dos genes humanos, em 1999, resultado do Projeto Genoma Humano, liderado por um consórcio científico internacional. Mas, entre as centenas de papers que editou, Andrea se orgulha de um em particular. O Brasil esteve na capa da Nature em 1997, com o código genético da Xylella fastidiosa, bactéria responsável pela praga do amarelinho nos laranjais. Pela primeira vez no mundo, um microorganismo que ataca plantas teve o sequenciamento completo de seu DNA revelado em um projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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“Essa pesquisa fez o Brasil dar um salto enorme. Mostramos mundialmente que o País tinha pesquisa de ponta. Para mim, foi demais, não é à toa que colocamos o assunto na capa da Nature”, lembra-se Andrea. Mas uma coisa é certa: poucas vezes ela teve a oportunidade de dizer sim ou não aos seus compatriotas. Simplesmente porque a participação da comunidade científica nacional em publicações como a Nature é mínima, principalmente de pesquisadores que assinam os artigos como primeiro autor, ou seja, como líder da pesquisa. Para Andrea, a principal explicação não é a dificuldade em fazer ciência no País, apesar de essa ser uma verdade dramática, que envolve tanto falta de recursos quanto execesso de burocracia. “O brasileiro não está preparado para fazer uma pergunta original.” Tal pergunta, que faz parte da curiosidade que move a ciência, é o “x” da questão e o que importa às publicações que divulgam parte das milhares de pesquisas realizadas no mundo, além, é claro, da consistência dos resultados.

Na Nature, os papers devem ser inéditos e essa exigência acaba afastando muita gente. “Todos os dias fazíamos reuniões, para discutir os papers que recebíamos para avaliar se eram tecnicamente sólidos, se apresentavam novidade ou se encaixavam nas seções da revista. O material é revisado também pelos pares dos autores. Eram quase 200 papers por semana, só nas áreas biológicas, e cerca de 95% eram rejeitados”, acrescentando: “Tem muito pesquisador com medo de se expor. Tem uma pesquisa bacana, mas dá nele um complexo de vira-lata e ele nem tenta a divulgação em revistas importantes. Lia muitos trabalhos interessantes em outros espaços e só conseguia pensar: por que ele (o pesquisador) não mandou isso pra gente?”. Outro problema enfrentado pelas publicações especializadas é a dificuldade, muito comum, de os cientistas escreverem um artigo ou um projeto “estratégico”, ou seja, aquele capaz de mostrar a real importância do trabalho e despertar a atenção.

Andrea, mineira de Conceição do Mato Dentro, interior de Minas, sabe o que fala. Antes de se tornar editora, emplacou na própria Nature um trabalho sobre apoptose – ou morte celular programada, processo no qual o organismo humano elimina células supérfluas ou defeitosas. O paper foi classificado por um ranking anual da Sciences (a referência norte-americana quando se trata de revistas científicas, na qual Andrea também tem um paper) como um dos dez mais importantes de 1997. Portanto, quando foi convidada para assumir o cargo na prestigiada Nature, ela já tinha uma longa carreira acadêmica. Era, inclusive, a principal investigadora do grupo Apoptosis Signal Transduction, na University College London. “Sempre fui ousada”, garante.

Quase nem dá para acreditar que essa baixinha de 47 anos, que se equilibra com elegância em um sapato de verniz de salto fino altíssimo, já foi riponga e natureba – a primeira vez que passou um batom na vida foi aos 26 anos –, dançarina e cantora em apresentações de Oswaldo Montenegro nos anos de 1980. “Eu tinha um lado artístico”, lembra-se, mas esse foi totalmente sobreposto pela veia de pesquisadora. “Desde pequena, eu sabia que seria cientista.” Aos 15 anos, quando ficou órfã de mãe – vítima de câncer –, ela fez sua escolha definitiva. Ponto para a ciência.

No limiar de 1989, já bacharel em genética e cursando o mestrado no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi a certeza em relação à carreira que motivou a jovem a arrumar as malas e partir para a Europa com uma filha de três anos – Naíssa, hoje com 26. Sem falar inglês tão bem quanto se esperava de alguém que pleiteia uma vaga de doutorado no Ludwig Institute for Cancer Research, Middlesex Hospital, University College London Branch, Andrea não teve medo de arriscar. Em meio à descrença de amigos, escreveu para Michael Waterfield, diretor do Ludwig Institute for Cancer Research e fellow da Royal Society, famoso por inúmeros trabalhos sobre o câncer. Acabou ganhando a oportunidade de estudar e trabalhar ao lado de quem assinava os estudos que mais admirava. Foi o início da longa temporada longe do Brasil, na qual obteve também o pós-doutorado, pelo Imperial Cancer Research Fundation, e se tornou business manager da University College London Bussiness, incentivando a transferência de tecnológica da instituição acadêmica para o mercado.

A rotina de Andrea na Inglaterra foi quebrada em 2003, quando ela, durante a licença maternidade de sua segunda filha – Beatriz, 10 anos – decidiu passar um tempo na terra natal. Ao olhar para o céu quase sempre azul de Belo Horizonte, onde mora, viu que era hora de voltar. Juntou a vontade com o convite da Universidade Federal de Minas Gerais para montar na Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (FUNDEP) uma área de planejamento e prospecção de recursos destinada a diminuir a dependência financeira da universidade em relação ao governo no desenvolvimento das pesquisas. O projeto deu certo e foram sete anos trabalhando na FUNDEP, primeiro como superintendente do Núcleo de Relações Institucionais e Desenvolvimento de Oportunidades e, depois, como assessora de Relações Institucionais.

O passado em Londres e a experiência na FUNDEP determinaram, em 2010, uma nova linha de atuação profissional. Andrea se tornou sócia de duas empresas que espelham sua trajetória. A HCK Projetos e Pesquisas se dedica, entre outras vertentes, ao levantamento de recursos e fundos que permitem a diferentes instituições realizarem projetos na área médico-científico-tecnológica. Na Publicase, ela ajuda pesquisadores a escreverem e publicarem seus artigos. Ou seja, como empresária acabou retornando, de certa forma, à sua atividade na Nature. “Esse trabalho me dá um gás muito grande, porque é muito desafiador”, assinala.

Ao se lembrar dos motivos que a fizeram trocar a vida nos laboratórios pela de editora de uma revista especializada, Andréa destaca sua natureza inquieta, mas também a descoberta de que gostava mesmo era da “construção do processo intelectual”. “Um editor da Nature é quem tem a habilidade de perceber, de identificar a melhor pesquisa no mundo. Ele é capaz de intervir nos papers porque se torna, de certa maneira, um mentor intelectual do autor. Você tem a oportunidade de dizer, até para quem recebe um Prêmio Nobel, que o artigo dele ficará melhor se escrito, se formulado de uma forma diferente da que ele fez. Por isso gostei tanto do trabalho que fiz na revista.” Um trabalho que exigia frequentes viagens, a participação em pelo menos um congresso por mês, noites adentro de leituras desenfreadas, análises e discussões profundas em equipe sobre a produção científica no mundo, mas, sobretudo, o amor pela ciência.


Comentários

2 respostas para “A mulher que diz não”

  1. Tive a oportunidade de assistir o seu curso e de conhecer esta mulher incrivel

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