Formado em Engenharia Eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o temido ITA, Silvio Meira especializou-se em Ciência da Computação. Fez mestrado em Informática, pela Universidade Federal de Pernambuco, e doutorado em Computação, pela University of Kent at Canterbury, na Inglaterra. É, portanto, proprietário de dezenas de credenciais importantes – foi pesquisador do CNPq por mais de 15 anos, criou e coordenou o programa de doutorado em Ciência da Computação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi assessor da Secretaria de Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia, membro do primeiro comitê gestor da Internet/br, presidente da Sociedade Brasileira de Computação.
Casado, pai de três filhos, Meira é ainda professor da UFPE e o cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R), centro privado de inovação que cria produtos, serviços e empresas com tecnologia da informação e comunicação. Desde 1996, ele desenvolve projetos e serviços que cobrem todo o processo de geração de inovação – da criação à execução de projetos. Motorola, Samsung, Vivo, Bradesco, Unibanco, entre outras empresas, trabalham ou já trabalharam em parceria com o instituto de Meira – bom lembrar que Recife concentra ainda outros núcleos de informática, como o Porto Digital, o maior polo empreendedor de informática do Brasil, o Instituto Tecnológico de Pernambuco e a Universidade Federal.
Aqui, Meira fala sobre inovação, criação, tecnologia, vida em rede. Para ele, as novas ferramentas chegam para nos libertar, e não nos aprisionar. Ao que tudo indica, segundo o cientista, o mundo até poderá ser mais simples e com muitas oportunidades. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
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Inovação – Você costuma dizer que inovação não é tecnologia e, tampouco, pesquisa e desenvolvimento. Inovação é a mudança do comportamento de atores no mercado, como produtores ou consumidores. Já para McLuhan, referência fundamental nesse mundo em formação, inovação “significa um ambiente de serviços criado por uma inovação, sendo que esse ambiente muda as pessoas”. A internet, em última instância, está compondo um novo ecossistema. No fundo, você e McLuhan advertem que, no mundo em rede, a inovação é um sistema contínuo com impactos ainda impossíveis de serem mensurados em todos os processos – econômicos, políticos e sociais. Afinal, que mundo é este?
Silvio Meira – Poucas gerações têm percepção aguda de estar presenciando uma mudança nas plataformas que fazem uso. Então, quando olhamos para a mudança que presenciamos, que é quase uma transposição do que costumavam ser meios de comunicação para passarem a ser meios, ambientes, plataformas ou infraestruturas de conectividade para interação, a amplitude dessa mudança vai levar tempo para ser aprendida. Isso no sentido de ser compreendida para ser usada na mudança de negócios em todas as cadeias de valores – mesmo assim, vai levar mais tempo ainda para ser entendida como uma mudança em si. Tecnologia é um dos insumos para a mudança. Não existe inovação só tecnológica, ela tem de ser proposta ao mercado, que precisa aceitá-la, absorvê-la. As pessoas têm de querer pagar por aquilo e deixar de pagar por outras coisas, precisam desviar a atenção para essa nova forma de usar meios para realizar desejos, atitudes, propósitos. Quando a tecnologia possibilita novas oportunidades, as pessoas capturam. As instituições e os negócios começam a capturar essas oportunidades e, muito mais no longo prazo, as ciências humanas começam a entender quais são as consequências dessa captura. Onde estamos vivendo? Em um ambiente que, na prática, é um mundo fora do ambiente universitário, um mundo voltado para a inovação que começou basicamente há 15 anos e passou os primeiros cinco anos tentando se mostrar como era verdadeiramente. Depois, passou os cinco anos seguintes se redesenhando em função da bolha do “ponto com”, que aconteceu ali pelo começo da última década. A partir de 2005, começou a assumir talvez a sua face verdadeira e a apresentar as suas credenciais.
Inovação – Como esse processo começa a se mostrar ao mundo em que vivemos?
S.M. – A partir de 2005, começa a se estabelecer o Skype, grande rede social de conexões de voz. Surgem também as redes sociais: MySpace, Orkut, Twitter e Facebook. A partir de 2007, a mobilidade computacional, a possibilidade de sistemas de informatização pessoal baseada em capacidades computacionais de superfície, coisas que a gente toca, e não mais coisas que a gente clica. Assim, as pessoas começaram a se informatizar. Isso tem consequência, por exemplo, para dentro das empresas. Se no passado eram elas que tinham os meios computacionais mais sofisticados, em certa hora elas perderam essa soberania e a tecnologia ficou disponível para todo mundo.
Inovação – Quais sãos as consequências disso no nosso dia a dia?
S.M. – Impõe-se uma dinâmica de destruição criativa, que é a dinâmica própria da inovação. Isso deixa muita gente o tempo todo olhando para trás, perguntando-se o que aconteceu com as infraestruturas que usava. Para ter ideia do impacto da profundidade de tudo isso, um exemplo: a patente original da lâmpada elétrica, de Edson, é de 1880, mas até os anos 2000 não tínhamos conseguido universalizar a iluminação elétrica nas casas brasileiras. Estamos falando de algo que, 120 anos depois de ter aparecido no mercado, ainda não está na casa dos brasileiros de forma universalizada. Mas com a internet é diferente. Ela começou a aparecer no Brasil há dez anos e hoje 40% da população brasileira tem acesso. Além disso, a internet tem uma implicação filosófica impressionante: o único meio de inserção do Enem do ano passado foi pela rede e ninguém reclamou. Isso significa assumir claramente que tanto as pessoas como as instituições organizadas da sociedade civil têm acesso à internet – pelo menos, os jovens. Para mim, isso é uma mudança da água para o vinho. Essa é a grande diferença dos tempos em que vivemos. A rede deixou de ser uma coisa que a gente usa, é uma forma que a gente vive, uma infraestrutura essencial. É quase como o ar que respiramos.
Inovação – Skype, Twitter, Orkut, Facebook, como você diz, são infraestruturas. Afinal, como definir de forma didática as redes sociais?
S.M. – Assumindo que nós somos os concretos e as nossas relações uma forma de virtual, que chamamos de redes, grupos ou comunidades. O fato de eu ter instrumentação informacional e infraestruturas para encampar essas redes no espaço virtual cria uma espécie de ritual de segunda ordem. Então, um grupo, seja uma torcida de time de futebol ou ex-alunos de uma escola, teriam as mesmas conexões, que possibilitariam interações com significados. Nas redes sociais, há conexões que criam significados para as pessoas. Famílias, casamentos ou um grupo de ex-alunos são redes sociais. Mas nos ambientes informatizados existe a possibilidade de incrementar de maneira sensitiva a virtualização desse ritual. Ou seja, nem todo mundo precisa estar no mesmo lugar para participar. As conversações se perenizam porque estão guardadas e articuladas em um ambiente informacional que pode se comunicar. Alguém chama para uma discussão, articula e espera uma resposta. Só que a comunicação vai estar sempre lá. Veja, de todas as conexões entre as pessoas do Facebook, por exemplo, 84% estão no mesmo país e 16% são entre pessoas de países diferentes. Isso dá uma ideia clara de que essa rede amplia conexões que já existiam ou tinham potencial para existir porque estão na mesma geografia, língua, cultura. Esses mecanismos, portanto, são as infraestruturas que criam ambientes sociais.
Inovação – De certa forma, o mercado financeiro foi precursor no processo de conexão, enredamento e socialização. No final dos anos 1970, esse mercado já estava globalmente conectado.
S.M. – Dinheiro é virtual, talvez um dos mais antigos da Terra. Ter dinheiro é um virtual de poder de compra. Na hora em que ele fica sem peso e passa a ser digitalizado, podendo ser transferido de um mercado para outro numa velocidade infinita, o dinheiro está em rede social de valores de mercado financeiro, o que gera um processo com sua própria lógica e dinâmica.
Inovação – Como classificar esse processo de correlação com a realidade e a farsa no mundo das redes sociais?
S.M. – Essa história de ter uma correlação com a realidade, o que a gente chamava de realidade objetiva dos fatos, é muito importante. As redes sociais têm uma realidade objetiva dos fatos. É muito difícil manter uma farsa em redes sociais, pois elas prejudicam o arrependimento em longo prazo. Observe o impacto das redes sociais na vida dos adolescentes, aquele espaço ou tempo em que todo mundo faz besteira. Hoje, a besteira está on line, não se apaga. Tem uma tese de Viktor Mayer–Schöenberger, pesquisador de Harvard, que defende o seguinte: “Uma das regulamentações que precisamos usar para sistemas informacionais, incluindo as redes sociais, é que eles precisam ser esquecidos com o tempo, porque as sociedades humanas são baseadas no princípio do esquecimento”. À medida que o tempo passa, os fatos vão sendo relevados a certo cenário de fundo – eles continuam existindo, mas não são tão importantes. De muitas performances nas nossas vidas, o que fizemos quando tínhamos 15 anos é irrelevante hoje. No mundo das redes sociais, não é assim. A besteira on line não se apaga mais. Usamos essa rastreabilidade de permanência, e não de impermanência da informação, sem querer, em um mecanismo de restrição, de excessiva limitação das liberdades e, talvez, em última análise, da criatividade. As pessoas começam a se comportar como se estivessem sendo observadas o tempo todo, como ratos de Pavlov na gaiola. Existe uma reflexão que precisa ser feita sobre esses ambientes, levando em conta a tese de Schöenberger. Até hoje, todas as relações humanas foram baseadas em dois aspectos: no esquecimento paulatino e na assimetria da informação. Nem todo mundo sabe tudo sobre todo mundo. Se todo mundo soubesse, nenhum relacionamento humano seria sustentável.
Inovação – E o que mais sobre o futuro das redes sociais?
S.M. – Estamos olhando para a rede social das pessoas, mas tem outra que está para acontecer, que é a dos objetos. É a câmera de segurança, o carro dando informação sobre onde ele está, a porta da sua casa, o pneu, a máquina de lavar roupa. E vamos fazer isso de livre e espontânea vontade porque os benefícios são grandes para relevar os eventuais prejuízos. Esse é o problema. Acho que, se tem uma coisa também na qual a humanidade foi baseada até a hoje, é o princípio da individualidade. Aliás, a proteção ao indivíduo, a proteção à fonte, sempre foi um dos pilares do jornalismo, como foi concebido nos últimos 250 anos, pelo menos. Agora, isso praticamente deixou de existir. Além do fato de termos criado uma sociedade informacional ampla, não tem mais conversa que não tenha sido gravada, que não será vazada. Isso significa uma nova forma de humanidade ou uma nova forma de sociedade e nós não sabemos quais serão os impactos disso tudo sobre nossas vidas.
Inovação – Esse quadro não o deixa angustiado, quando olha para o nosso sistema educacional?
S.M. – Não, sabe por quê? Porque isso é uma coisa geracional. Acho que a gente está no momento em que os aprendizes passaram os professores. Se tivessem rapidez de entendimento suficiente, eles se transformariam em aprendizes com grande número de coisas. Os professores continuariam fazendo muito bem o que fazem: articular, acompanhar, aconselhar, talvez medir, tentar descobrir. Ao mesmo tempo, eles se tornariam aprendizes dos aprendizes. As pessoas que vão entrar na carreira de professor neste ano devem ter, em média, 25 anos. Nasceram, então, na metade dos anos 1980. Dez anos depois, estavam jogando em lan houses. Então, os novos professores são gamers, nasceram na era da internet. Para mim, isso vai revolucionar a escola. Em 2025, provavelmente vamos ter um presidente da República com 40 anos, que também terá sido gamer e todo o Congresso terá jogado games, com poucas exceções. Isso é uma coisa geracional. Douglas Adams costumava dizer que tudo que já existia quando a gente nasce é absolutamente normal. Tudo o que passa a existir entre o nascimento e termos 25 anos é uma grande oportunidade de desenvolvimento pessoal.
Inovação – Manuel Castells diz que o século 21 não proporcionará às pessoas a abundância prometida pela revolução tecnológica mais extraordinária da História. Ele fala em uma época de aturdimento informado. Pessimismo?
S.M. – Na realidade, minha expressão pessoal para isso é o imprevisível mundo novo. É um mundo que, a cada volta da manivela, não fica mais imprevisível, mas a imprevisibilidade na mudança fica sempre mais intensa. Ela é compactada no tempo. Considerando esse contexto, um dado é que, nos próximos 12 meses, 81% das pessoas que têm celular vão trocar de celular e 75% das pessoas que têm smartphone vão trocar de smartphone. Qual o impacto disso para a indústria? Se ela for líder de mercado e errar um ano, pode passar para o fundo do poço. A dinâmica que estamos vendo de competição é grande, o que significa não só ameaças, mas oportunidades. Acho que aí tem oportunidade para o Brasil, para as periferias brasileiras. Antes, o cara que tinha um negócio estabelecido na esquina havia 20 anos iria passar mais 50 anos estabelecido. Essa é a velha indústria, a velha economia. Agora, nessa economia da imprevisibilidade, a dinâmica é completamente diferente. Uma economia celularizada, mais conectada, democrática e com mais oportunidades. Mais oportunidades é sempre igual a risco. Uma economia menos patrimonialista, não há tempo para fazer uma montanha protetora, uma economia mais de fluxo. De repente, importa muito mais o caminho do que o destino. Importa muito mais o que você aprendeu do que o que você acumulou, porque você acumula, acumula e se acaba. O tempo médio que se prevê de vida hoje para uma empresa que entra na Bolsa de Valores dos Estados Unidos é de 15 anos, era 75 anos em 1930. Ou seja, criava-se a empresa em 1930 e havia a certeza de que ela sobreviveria três quartos de século. Agora, você vai fazer por uma década e meia.
Inovação – Que tal terminar com mais um exemplo da dimensão da revolução que estamos vivendo?
S.M. – Estou apostando na combinação de digitalização, internet, tablet e literatura como serviço, como a provida pela Amazon, mas em um modelo que rapidamente será imitado por outros. Isso vai acabar com a indústria da literatura nesta década, porque ela resolveu se proteger da internet. Não vai sobrar pedra sobre pedra, pois o livro ou a literatura serão como serviço aumentado, comentados pelas pessoas, compartilhados em rede social, providos como serviço, de tal maneira que não precisarão ser armazenados em lugar nenhum. Esse livro é mais leve, mais conectado e com alcance muito maior. Ele cria mercado. Alguém escreve um livro e eu posso comentá-lo, fazer minha resenha em cima da plataforma em que a publicação foi lançada. E dá para ganhar uma porcentagem do meu royalty, porque escrevi sobre o livro. É uma dinâmica nova. Para mim, essa década vai ver o fim do ciclo de Gutemberg. Pouquíssimas gerações puderam ver o fim de um ciclo de 500 anos.
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