Há uma guerra silenciosa sendo perdida pela indústria nacional e que afeta diretamente a Amazônia. Cada vez mais, grandes empresas multinacionais ligadas a produtos farmacêuticos e de cosméticos percebem que a Floresta Amazônica é uma das maiores fontes atuais e futuras de matéria-prima para os dois setores e investem nisso, muitas vezes à revelia dos governos, que mal sabem como lidar com essa indústria e com a exploração de comunidades tradicionais, envolvidas num discurso de sustentabilidade.
“A indústria mundial está de olho nesses produtos que vem da floresta, mas o setor nacional já perdeu o trem da história”, afirma o farmacêutico e doutor em Ciências Naturais Wagner Barbosa, pesquisador ligado à Universidade Federal do Pará.
Barbosa acredita que a solução seria o investimento nacional na indústria farmacêutica ligada a produtos fitoterápicos, já que a competição com a indústria de produtos farmacêuticos sintéticos não tem condições de competir com as grandes empresas internacionais, por falta de investimentos adequados no setor.
“Existe uma questão política muito forte nessa discussão”, diz o pesquisador. “Quando a política de fitoterápicos se implanta, ela se choca com a dos produtos sintéticos. O grupo que apóia o primeiro não é o mesmo que apóia o segundo”.
Não é difícil entender os motivos. Produtos fitoterápicos envolvem comunidades tradicionais e agricultura familiar. A lógica dos produtos industrializados enfatiza a produção em larga escala e as monoculturas. “É um dilema a ser resolvido”, diz Wagner Barbosa.
Um medicamento fitoterápico é aquele alcançado de plantas medicinais, onde são utilizados exclusivamente derivados de droga vegetal, como suco, cera, óleos, extrato, tintura, entre outros. Os fitoterápicos são medicamentos industrializados e tem legislação específica. São uma mistura complexa de substâncias, onde, na maioria dos casos, o princípio ativo é desconhecido.
O Ministério da Saúde do Brasil reconhece mais de 70 plantas que podem ser utilizadas como medicamento fitoterápico. São produtos extraídos diretamente da floresta e que envolvem, além de tudo, o conhecimento tradicional.
A cura vem das plantas
Na comunidade África, entre os municípios de Moju e Abaetetuba, no nordeste do Pará, crianças enfermas costumam ser tratadas com plantas do local, cujo conhecimento a respeito das propriedades medicinais de cada erva, folha ou raiz é passada de mãe para filha. São cerca de 20 famílias. Pariri, cabi, carucaá, mucurará…os nomes são complicados, vindos da mistura entre índios e negros. Mas os resultados são simples. Curam anemia, tosse, dores de barriga. É o que garante Domingas da Conceição Moraes, do alto de seus cabelos brancos cultivados ao longo de mais de 80 anos. Domingas é considerada a mais sábia, a melhor entre as que conhecem os segredos das ervas. “Aprendi com os meus pais. Isso é coisa que a gente vai passando de geração a geração. Mas tem de ter o dom”, diz ela.
Na comunidade vizinha de Laranjituba, Francisca Moraes Cardoso também conhece os segredos das plantas, das rezas, das benzeções. “Meu avô era pajé, minha avó era pajé. Eu só uso os saberes quando é necessário. Não abuso muito não”, diz.
É a mesma postura adotada no município de Benevides, na Região Metropolitana de Belém, por João Gualberto Farias da Silva, 63 anos, mais conhecido como “seu Codorna”, apelido que nem ele sabe dizer de onde saiu. Ele também não costuma cobrar pelos serviços que faz. É um curandeiro nato. “Um dia apareceu um homem aqui querendo que eu curasse o filho dele porque o doutor já tinha dado como perdido. Aí ele veio aqui e eu curei ele. Eu nem sabia que tinha o dom da cura, mas Deus sabia”, diz.
É um dom que pode ter vindo da infância. Codorna conta que quando criança via uma luz forte. Segundo ele, era a “luz da cura”. “Só quem tem o dom da cura é que pode ver a luz”, assegura.
Logo a fama se espalhou. Apareceu gente de todos os lugares interessados nas famosas garrafadas feitas por ele e nas receitas de cura. “Vem muita gente me procurar com todo tipo de problema. Coluna, reumatismo, tudo quanto é tipo de dor”, conta.
Conhecimentos simples como esses são preservados porque há um espaço adequado para que essas tradições se mantenham. São as comunidades tradicionais, locais onde antigos valores são ensinados, ao mesmo tempo em que se buscam inserções na sociedade tecnológica atual.
A relação entre essas comunidades a as instituições de pesquisa sempre foram complexas, mas é cada vez maior a busca do que essas pequenas populações têm a oferecer em termos de conhecimento dos saberes da floresta. Quem mais está de olho nessas possibilidades são grandes indústrias, que podem ser farmacêuticas ou de cosméticos. Mas é uma relação com pesos e medidas diferentes, principalmente porque há um descompasso entre os grandes interesses da indústria e a preservação dos saberes locais.
“As comunidades estão tirando os produtos da floresta, mas correm o risco de serem exploradas. É um trabalho de família, de sobrevivência delas, que muitas vezes dependem daquilo, mas é preciso que se tenham os direitos respeitados”, afirma Flávia Lucas.
Flávia trabalha diretamente com os relatos de comunidades sobre as indicações de plantas que curam, mas ainda sem a comprovação em laboratórios. Estuda a partir das receitas e plantas coletadas e a experiência das populações.
“O conhecimento precisa ser protegido, mas o interesse econômico faz com que se pulem etapas”, complementa a pesquisadora Cláudia Martins. Junto a Flávia Lucas, Cláudia desenvolve um trabalho que é conhecido como ‘etnobotânico’. Nele, a pesquisa a respeito das propriedades farmacêuticas de uma planta não está dissociada do respeito ao conhecimento tradicional das comunidades envolvidas.
“Os nossos documentos passam por todos os rigores do Ministério do Meio Ambiente. Não visitamos comunidades de forma exploratória. Para nós, esses saberes tradicionais estão acima de qualquer coisa”, garante Flávia Lucas.
“Chegar à floresta, conhecer e levar um produto envolve convivência, respeito à tradição, à cultura, aos saberes. Tudo isso tem de estar presente para o pesquisador”, afirma Claudia Martins.
“O grande desafio é transformar a imensa diversidade da Amazônia com o conhecimento tradicional associado num potencial farmacológico ainda a ser explorado pelo nosso Estado”, diz a pesquisadora do Museu Emílio Goeldi, Cristiane Amarante.
“Entretanto para a maioria das plantas com indicações farmacológicas, ainda são necessários estudos para confirmar segurança e eficácia. A agricultura familiar, de onde elas vêm, é uma das prioridades do Governo Federal e apresenta como vantagens a disponibilidade de terra e trabalho, a detenção de conhecimentos tradicionais, a experiência acumulada na relação com a biodiversidade e as práticas agroecológicas voltadas ao atendimento dos mercados locais e regionais”, defende a pesquisadora.
Segundo ela, a participação da agricultura familiar nas cadeias e nos arranjos produtivos de plantas medicinais e fitoterápicos é estratégia fundamental para garantir insumos e produtos, para a ampliação dos mercados e melhor distribuição da riqueza gerada nas cadeias e nos arranjos produtivos. “A Amazônia já nasceu com a vocação para o fitoterápico”, diz ela.
O pesquisador Wagner Barbosa, da Ufpa, concorda. “Nosso caminho é a fitoterapia. Temos de aprimorar técnicas de controle de qualidade dos produtos e encontrar formas de organizar a sociedade para produzir esses medicamentos, mas que isso não se torne propriedade de grandes indústrias”.
Mas há entraves para isso. Tempo, falta de recursos e a legislação brasileira deixam de agilizar esse processo. Em outros países, a legislação é mais flexível. Com a biopirataria é fácil para uma indústria de maior fôlego obter a matéria-prima e dela extrair um produto sintético facilmente patenteável.
“Temos patentes de produtos, de formulação”, diz Wagner Barbosa, da UFPA. O ‘amor crescido’ é uma das plantas cujas propriedades como agente antibacteriano já foram comprovadas. Outra que já foi patenteada é a carapanaúba, que atua contra o parasita da malária. Todas com base no conhecimento popular.
“O problema é que há o entendimento de que aqui na Amazônia não há competência. Enquanto isso, a indústria farmacêutica está de olho, com pesquisadores levando material daqui, enquanto continuamos enrolados. Um imenso patrimônio genético está sendo levado de forma descontrolada para ser pesquisado fora. Não conseguimos controlar essa saída. É uma situação muito séria”, alerta Barbosa.
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