Miguel Nicolelis é palmeirense roxo. Eu sou corinthiano relapso. Temos idades parecidas – fiz 51 em 2011, ele faz 51 em 7 de março deste ano. Ele é fã de carteirinha do ex-presidente Lula e votou na presidente Dilma Rousseff. Nunca votei neles. Apesar das diferenças, fizemos os 50 experimentos dos kits de educação científica Os Cientistas, lançados em banca de jornal pela Editora Abril nos anos 1970, que vinham em caixinhas de isopor. Além disso, entramos na Universidade de São Paulo (USP) no mesmo ano – ele em Medicina, eu em Jornalismo. Nossos caminhos profissionais foram paralelos. Um faz ciência, outro divulga ciência. Seja como for, é sempre interessante para um jornalista que cobre ciência há 25 anos conversar com o cientista brasileiro Miguel Nicolelis. Não só por ser um pesquisador de renome em neurologia. Ele é usina de ideias e projetos, alguns polêmicos, o que fez com que entrasse em colisão com alguns pesquisadores brasileiros que eram seus parceiros. Seu bom acesso aos políticos do PT no poder e aos meios de comunicação no Brasil e nos Estados Unidos também desperta inveja. “Miguelomaníaco” é uma crítica que alguns fazem as ambições dele.
Em um momento, Nicolelis pode falar de um experimento publicado em revistas científicas de prestígio, como a americana Science e a britânica Nature. Em outro, da educação científica de crianças e adolescentes em cidades do Nordeste brasileiro. Ou discorrer sobre dificuldades institucionais e culturais em induzir a inovação em ciência e tecnologia no País.
Certamente, ele tem extensa milhagem de passagens aéreas. Professor da Duke University, de Durham, Carolina do Norte, Nicolelis estima que passa 70% do tempo nos EUA. O restante fica principalmente em Natal – a capital do Rio Grande do Norte é a sede do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS).
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Eu o conheci anos atrás em Natal, quando o instituto ainda era um sonho. Mas, desta vez, nossa conversa foi em uma casa no bairro do Sumaré, em São Paulo, que sedia a Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa (AASDAP), entidade responsável pela gestão do IINN-ELS. Nicolelis vem a São Paulo para as reuniões de estratégia da associação, assim como para contatar parceiros dos vários projetos.
O objetivo é transformar a região metropolitana de Natal na “Cidade Brasileira do Cérebro”. “Atualmente, a neurociência constitui o principal segmento da indústria da biotecnologia no mundo. Como resultado, indústrias de biotecnologia, tradicionais e emergentes, nos EUA e na Europa, estão se voltando para a pesquisa básica e aplicada em neurociência. Nosso objetivo é atrair investidores locais e estrangeiros para o Rio Grande do Norte”, diz ele, em um resumo do que pretende a associação.
A equipe liderada por Nicolelis procura produzir implantes cerebrais para, um dia, permitir a paraplégicos andarem, além de controlar doenças neurológicas, como Parkinson. Um exemplo dessa pesquisa de ponta foi publicado recentemente na Nature, revista científica editada desde 1869 e considerada a de maior impacto entre as publicações interdisciplinares do planeta.
Nicolelis e colegas fizeram com que macacos tivessem sensações táteis de um braço virtual literalmente controlado pela força da mente. É o tipo de pesquisa que facilitaria a criação de próteses inteligentes, que dariam um feedback táctil das sensações aos pacientes, algo que não acontece com membros artificiais. Além do controle motor do membro, a pessoa precisaria ter uma espécie de “tato artificial”.
A meta é conseguir uma interface cérebro-máquina, que consiga traduzir os sinais cerebrais em movimentos. As macacas usadas no experimento foram capazes de discriminar entre objetos, usando sinais enviados da interface para a região do cérebro envolvida na percepção do tato. A equipe implantou microeletrodos em dois locais do cérebro, no córtex motor (que lida com movimentos voluntários) e no córtex somatossensorial (que está ligado ao processamento de sensações das células do corpo, como as sensações tácteis da pele).
Os animais controlavam cursores com o cérebro para aprender a distinguir entre três objetos visualmente idênticos em uma tela de computador. Idênticos, mas que passavam sinais de tato diferentes enquanto as mãos na tela manuseavam os objetos, enviando sinais elétricos ao córtex somatossensorial e criando o tal “tato artificial”.
“O cérebro criou uma representação das texturas. A grande sacada foi um bypass”, diz ele. Isto é, a interface demonstrou uma comunicação em duas direções entre o cérebro do primata e um atuador externo. Como os dois canais ignoraram o corpo (o bypass), a equipe acha ser possível “liberar o cérebro das limitações físicas do corpo”.
Esse tipo de estudo está na base de um projeto internacional liderado pelo Duke Center for Neuroengineering, centro de pesquisa da mesma universidade, chamado Walk Again (Andar de Novo), que pretende desenvolver esqueletos robóticos externos capazes de restaurar a mobilidade de pessoas que a perderam e estão confinadas em cadeiras de rodas. Esse equipamento “neuroprostético”, também chamado “exoesqueleto” ou “vestimenta robô”, tem como núcleo a interface cérebro-máquina. “No futuro, será possível que pacientes tetraplégicos aproveitem essa tecnologia não apenas para mover seus braços e mãos e voltar a andar, mas também para sentir a textura de objetos colocados em suas mãos ou perceber detalhes táteis das superfícies em que passeiam com a ajuda de um exoesqueleto robótico”, divulgou o projeto em comunicado de imprensa, por ocasião da divulgação do artigo na Nature. Nicolelis sonha em apresentar seu invento com um garoto tetraplégico dando o pontapé inicial na bola no primeiro jogo da Copa de 2014.
Formado em medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Nicolelis é politizado e chegou a ser diretor do centro acadêmico. Sobre sua vida pessoal, ele prefere mantê-la em sigilo. Diz apenas ser pai de três filhos e hoje estar divorciado, encerrando o assunto.
Já outro “divórcio” foi amplamente divulgado pela imprensa. Nicolelis e um grupo de pesquisadores terminaram sua colaboração de vários anos no Instituto Internacional de Neurociências de Natal em julho de 2011. Parte dos pesquisadores do instituto se bandeou para o rival Instituto do Cérebro, criado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) pelo ex-orientando de Nicolelis, Sidarta Ribeiro.
O jornal Folha de S. Paulo divulgou na época: “Para neurocientista criador de instituto em Natal, grupo dissidente defendia pesquisas sem um objetivo médico”; e “Colegas que montaram instituto rival afirmam que problema real foi gestão arbitrária e autoritária do órgão”.
“Estamos trabalhando com mecanismos básicos de interação de células, buscando novas terapias para cuidar de pacientes neurológicos. Essa área não estava alinhada com o outro grupo”, disse Nicolelis, que no mês seguinte à cisão anunciou que seu instituto terá 31 novos cientistas em encontro em Brasília com o então ministro da Educação, Fernando Haddad. Foi anunciado também que o instituto será a sede brasileira do projeto Walk Again.
A ênfase do pesquisador em estudos que possam ter aplicações práticas foi demonstrada em outro estudo importante, dessa vez publicado na Science – a principal rival da Nature entre as revistas de ciência interdisciplinares. Nicolelis e colegas criaram um método novo de estimulação da medula espinhal, com potencial de ter um tratamento mais eficaz, barato e menos invasivo para tratar o Mal de Parkinson. O alvo da estimulação elétrica é uma região da medula que leva informação táctil do corpo para o cérebro.
O estudo foi feito com ratos e camundongos com níveis reduzidos do neurotransmissor dopamina, um modelo animal que imita as características da doença. Quando a prótese era ligada, os roedores, em apenas 3,35 segundos, passaram a apresentar movimentação melhorada. “Uma mudança imediata e dramática”, afirmou Nicolelis
Segundo ele, se o aparelho se demonstrar seguro em testes com primatas e depois com seres humanos, “virtualmente cada paciente vai ser elegível para esse tratamento no futuro próximo”. Ele seria implantado debaixo da pele. Para poder traduzir esse avanço no conhecimento científico em algo rotineiro nas clínicas, a equipe da Duke e do Instituto de Natal está colaborando com pesquisadores da Suíça.
Esse é o grande desafio da inovação no Brasil, segundo Nicolelis: a tradução do básico ao aplicativo. “Faltam estrutura, procedimentos, logística.” Ironicamente, não é por falta de bons profissionais. “A medicina aqui é de alta qualidade. São Paulo é uma das capitais da medicina no mundo”, disse ele, lembrando-se que a cidade tem hospitais excelentes, como o Albert Einstein, o Sírio-Libanês, o Oswaldo Cruz, o HC, a Beneficência Portuguesa. Em compensação, o sistema público não tem em geral a mesma qualidade, apesar de, graças ao SUS, haver uma razoável cobertura da população.
Mas, se a medicina e a saúde pública têm problemas, o que falar da educação em ciência, a raiz sobre a qual toda ciência e inovação futura deverá se fundamentar? “Mesmo no Sudeste, a educação em ciência é precária, mesmo em São Paulo. Pior, os testes são padronizados, não medem inovação, criatividade.” Sua ideia de educação científica para crianças e adolescentes envolve muita aula prática em oficinas e laboratórios.
É o caso da Escola Alfredo J. Monteverde, que tem unidades em Natal e em Macaíba (município a 20 km de Natal), que “visa oferecer o ensino das ciências a crianças e adolescentes da rede pública que estejam cursando do 6o ao 9o ano da Educação Básica” – estudantes entre 11 e 17 anos.
São mil alunos que participam do projeto, seja de manhã ou de tarde, em horário contrário ao da escola regular. A proposta é “promover a educação científica, a fim de oferecer e difundir os princípios básicos do método científico, bem como o exercício da formação científica que não está ao alcance de todos os setores da nossa sociedade, contribuindo para o processo de inclusão social”.
Em Macaíba também fica o Centro de Saúde Anita Garibaldi, especializado na assistência perinatal e “voltado à gravidez de alto risco gestacional, com patologias que repercutam na saúde fetal, e às crianças portadoras de complicações neurológicas”. O município ainda abriga o Centro de Pesquisa de Macaíba, cujo foco principal de pesquisa é o Mal de Parkinson.
Educação e saúde fazem parte, portanto, dos projetos do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, que tem cerca de dois terços dos seus recursos vindos de empresas e o restante de projetos federais via agências de fomento como CNPq e Finep. O nome do instituto remete à grande doação feita por Lily Safra, a maior na história da ciência brasileira.
Palmeirense, petista, polêmico. “As pessoas recebem rótulos, isso é provinciano”, disse o pesquisador, que não milita partidariamente. “Há um papel social no que faço. Eu acredito no sonho”, acrescenta Nicolelis.
* Ricardo Bonalume Neto é repórter do jornal Folha de S. Paulo
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