O lado alado de um sergipano

Percílio e o carcará Tito, que na verdade é uma fêmea, no Parque dos Falcões, em Itabaiana (SE), único centro de criação, multiplicação e preservação de aves de rapina da América do Sul

Ele atende por Percílio. Gago e, ao mesmo tempo, fanho, esse autodidata modesto consegue o que muitos doutores não passaram nem perto. E, mais uma vez, atenção: este relato não é uma fábula, embora tenha muito dos quiméricos e saborosos ingredientes dos contos de fadas.  Portanto, quando nos disseram que iríamos conhecer um sujeito que falava com pássaros, achamos que essa história estava mais para Barão de Münchhausen.

Deixamos a rodovia que une Aracaju ao sertão sergipano e tomamos uma estradinha poeirenta até a Serra de Itabaiana. No final do caminho, diante da crista verde da montanha, se aninha a casa de Percílio. E é ele mesmo, muito alto e magro, quem chega para nos receber, precedido de um séquito inverossímil: uma galinha pardacenta, um gavião carcará, uma seriema, um urubu, além de um ser inusitado, meio pavão e meio galinha-d’angola.

Pofft! Antes de saber o que havia me atingido na testa, ouço: “Ohh, de-d-d-desculpe, Cucur ho-hoje acoordô azeda, ela so-s-o-só qué me dev-fendê”. Brabeando com uma corujinha menor do que meio palmo, Percílio pediu que ela fosse para a toca. Não é que a bichinha obedeceu?

Já não nos admiramos mais que esse homem fale com aves – com gente deve ser mais difícil. Entendê-lo tartamudeando é uma sinuca de bico e Percílio ainda rebate: “O povo diz que falo com as aves. É claro que não falo. Eu entendo”.

José Percílio Costa, 34 anos, é o idealizador do Parque dos Falcões, local de acolhida, abrigo e treino de aves de rapina. Os segredos da falcoaria, símbolo de requinte na Era Medieval (só os nobres podiam dedicar tanto tempo a esse esporte de adestrar aves de presa), são aplicados ali de maneira inédita. A maior diferença é que em todas as falcoarias do mundo as aves são condicionadas pela recompensa com alimento, enquanto Percílio substitui comida por carinho. Essa é uma história que merece ser contada.

O sonho
Menino franzino, muito tímido e com sérios problemas para se expressar, Percílio não se interessava por estudos, só por passarinhos. Seu único sonho era ter um falcão. Tanto pediu que, certa manhã, um caçador lhe trouxe um ovo, talvez o da ave sonhada. O menino, após muita conversa, conseguiu convencer o irmão a deixar que a galinha chocasse. Após 21 dias, todos os ovos eclodiram, menos aquele tal. Percílio, então, implorou para que ficasse por mais alguns dias sob a galinha. Uma semana mais tarde, no dia de seu 7o aniversário, saíram todos para as comemorações da santa do povoado, exceto ele, que piamente acreditava no nascimento daquele ovo. Logo mais, nascia na palma de sua mão Tito, um falcão carcará.

Certa vez, depois de uma chuvarada, o menino encontrou um ninho cheio de água, com quatro filhotes de coruja, mas só um sobrevivente e já quase afogado. Cuidou tanto daquela avezinha, que “Lucinha” se tornou sua nova companheira. Vinte anos mais tarde, ela o faria viver um momento de enorme sufoco: Lucinha voou para perto de Percílio, abriu o bico, sem nenhum pio, caiu e parou de respirar, imóvel. Ao acariciar a corujinha ele sentiu que algo em seu pescoço a havia sufocado. Com cuidado foi puxando de sua garganta tanto barbante que deu até um pequeno novelo. Mas ela continuava sem respirar. Percílio não pensou duas vezes: fez respiração boca a bico e o coração dela voltou a pulsar.

Hoje, Percílio assegura que tudo o que aprendeu sobre pássaros foi na prática e com Tito: ovos de falcões eclodem aos 28 dias, gafanhoto é ótimo para problemas digestivos, gordura de sapo é eficaz contra infecções, e é possível fazer implantes de penas, bicos e ossos. E ainda: uma ave adestrada, muito jovem, nunca se acasala, sempre arrastará asa apenas para o treinador.

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Uma única coisa Tito deve ter achado desnecessário que ele soubesse: Percílio descobriu isso há dez anos, quando Alexandre Correia, biólogo amador, atraído pelas histórias desse ser humano único, quis conhecê-lo – só então Percílio ficou sabendo que o carcará Tito (Caracara plancus) era na verdade… uma fêmea. Juntos, Alexandre e Percílio decidiram criar o Parque dos Falcões, pois a essa altura 350 aves de rapina viviam ali. Em sua maioria, chegavam machucadas e mutiladas, levadas pelos técnicos do Ibama para eles cuidarem. Depois de tantas idas e vindas, a instituição tornou-se parceira do parque. No entanto, muito mais parceiros são necessários, pois o trabalho é intenso e a despesa com alimentação, entre rações e 100 kg de carne por semana, é enorme.

As aves são treinadas para apresentações de voo livre, de defesa pessoal, para controle da fauna nos aeroportos ou ainda para companhia. Entre elas, estão gaviões como o quiriquiri, o menor do Brasil, coruja buraqueira, murucututu, suindara – popularmente conhecida como rasga-mortalha –, caburé-de-orelha, mocho-orelhudo, além de seriemas, socós-boi e até urubus. Sem contar uma “espécie” nova que nasceu há pouco, mistura de galinha de angola com pavão.

O parque recebeu, em 2005,a equipe de TV japonesa para acompanhar, desde o início, e comprovar como ele fazia amizade com as aves. Percílio recorda esse tempo, quando, inclusive, teve de ensinar o adestramento para um artista nipônico.

“Azuma era um falcão com 30 dias de nascido quando a equipe japonesa chegou. No começo, foi muito difícil porque tudo o que eu falava, o intérprete traduzia e o ‘japa’ repetia. Era uma canseira só, e Azuma estava confuso. Falei que tinha de ser do meu jeito, que o treinador japonês repetisse minhas ordens, com minha pronúncia errada mesmo. A ave então foi se apegando a ele. No dia da partida, depois de duas semanas, ele ficou na dúvida se a ave sabia ao certo quem era seu treinador. Fizemos, então, um teste: soltamos o falcão que, no começo, ficou indeciso em quem pousar. Voando sobre nós dois, se aproximou de mim, mas, no último minuto, desviou e foi pousar no ombro do japonês e roçou o pescoço dele. Depois, o falcão pousou em mim e também tocou meu pescoço. Esse ato de carinho significa aceitação.”

Outra visita ao parque aconteceu em 2010 quando biólogos brasileiros queriam saber como Alexandre e Percílio conseguiram a reprodução em cativeiro do gavião pernilongo (Geranospiza caerulescens), nunca alcançada por cientistas. No Parque dos Falcões, apenas um casal dessa espécie já havia gerado dez ninhadas. Mais uma vez foi Tito: ele mostrou que nessa espécie o macho deve trazer diferentes tipos de gravetos, e a fêmea então escolherá o ideal para construir seu ninho. Simples assim.

Um dos trabalhos mais recentes de Percílio foi a “limpeza” que fez no Polo Petroquímico de Guamaré, Rio Grande do Norte, onde milhares de andorinhas pousavam nas torres. Ele conta que o céu estava preto, fazendo até medo nas aves que havia levado para o serviço. Depois de acalmá-las, elas começaram a voar por entre a nuvem negra: “Em dois dias, limpamos uma grande área, sem matar uma única ave. Em 15 dias limpamos tudo. O contrato dizia três meses”, alegra-se Percílio.

É quase inacreditável, mas podemos assegurar que conhecemos Percílio, Tito e a galinha chiadeira Bronquite, comprada por pena, que chocou os ovos dos gaviões, Chorão, Xaraque, Dara, Dedé, Pimpão, Coragem, Jurubeba e Azuma. E ainda a seriema Lambreta, o anu Virgolino, a pomba Psicopata, o urubu Romualdo, que fez arte na Bienal de São Paulo de 2010, o socó-boi Nicinho, as corujas Curcur e Lucinha, e o insólito Mutante, meio angola, meio pavão. Todos vivendo juntos nessa arca de Noé exclusiva dos alados.


Parque dos Falcões Povoado Gandu II – BR-235 – km 46 – (79) 8839-9570


Comentários

2 respostas para “O lado alado de um sergipano”

  1. Avatar de idelvan Rosal
    idelvan Rosal

    Boa noite, sou piloto de voo livre (parapente )e ganhei um filhote de Carcará e gostaria de saber qual o alimento adequado pra ele?

  2. Olá, boa tarde. Por favor, peço que substituam o número para contato do Parque pelos contatos corretos: 9962-5457 e 9945-9020 (Percílio e Alexandre, respectivamente). Grato.

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