O carro da Prefeitura circula por uma das 16 favelas localizadas no entorno da Avenida Roberto Marinho, na zona sul de São Paulo, quando uma moradora faz sinal para o veículo parar. Pela janela, ela conta uma novidade à funcionária que participa do projeto de reurbanização da localidade: “Sabe, ainda não vou me mudar para o meu apartamento, porque antes vou reformar a cozinha e instalar um cooktop”. Quem narra o diálogo é a arquiteta Elisabete França, que acumula os cargos de secretária-adjunta de Habitação e superintendente de Habitação Popular do município. Relatos desse tipo são cada vez mais comuns nas comunidades abrangidas pelos programas de moradia social do município. “É natural que as pessoas queiram participar e valorizem mais o imóvel quando sabem que há um especialista encarregado de projetar seu prédio”, diz.
Desde que chegou à administração pública, em 2005, Elisabete foi responsável por mudanças inegáveis no modo como são pensadas as soluções para as más condições de moradia na maior cidade do País. Sua liderança no trabalho de mapeamento das famílias em situação precária, na capacitação dos profissionais da esfera pública e nos projetos desenvolvidos em parceria com renomados escritórios de arquitetura renderam-lhe reconhecimento dentro e fora do País. Em novembro, ela recebeu o Prêmio João Batista Vilanova Artigas, do Instituto de Arquitetos do Brasil. Três meses antes, o Programa Municipal de Urbanização de Favelas fora selecionado entre três mil iniciativas internacionais na área da habitação para receber o prêmio Scroll of Honor do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Urbanos (ONU-Habitat).
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No primeiro semestre deste ano, delegações multidisciplinares de seis países vieram ao Brasil para uma experiência pioneira de comparação das realidades de seis comunidades paulistanas com as de seis cidades de diferentes continentes, mas que enfrentam problemas também presentes no Brasil – Roma (Itália), Nairobi (Quênia), Medellín (Colômbia), Mumbai (Índia), Moscou (Rússia) e Bagdá (Iraque). Os resultados foram reunidos em uma edição especial publicada em novembro pela revista italiana Domus, uma das mais prestigiadas publicações mundiais na área de Arquitetura.
Antes de atacar os problemas, a equipe de Elisabete dedicou um ano a visitas a dois mil assentamentos precários no município – a classificação inclui desde favelas e cortiços até loteamentos irregulares e prédios abandonados. O resultado foi um sistema on line capaz de cruzar as informações geográficas com índices de vulnerabilidade social, saúde e educação. O que permitiu concluir que cerca de três milhões de pessoas vivem em situação de risco em São Paulo – uma situação confirmada, depois, pelo Censo de 2010.
Os resultados revelaram muito sobre a realidade da população em assentamentos precários. “Pensava-se que a pobreza era maior na periferia, mas descobrimos que nas áreas centrais a vulnerabilidade é a mesma”, afirma a arquiteta. “As redes sociais das famílias, algumas já na terceira geração que vive nas mesmas condições, são incríveis. Um mesmo cartão de crédito pode ser usado por até 20 pessoas.”
Essas informações, nas mãos de alguém com anos de experiência como consultora em projetos internacionais de entidades como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a ONU-Habitat, permitiram dar início a uma iniciativa inovadora na área de habitação popular. Além de recrutar arquitetos, Elisabete modificou até mesmo a sede da Superintendência, no simbólico edifício Martinelli, no centro de São Paulo. “O local estava muito feio e compartimentado. Depois de um ano de reforma, ficou parecido com um escritório de arquitetura, mais amplo e aberto, para cada um ver o que o outro está fazendo e facilitar a criação.”
Para iniciar o trabalho de reurbanização, a arquiteta substituiu as intervenções pontuais, geralmente solicitadas por vereadores para suas bases eleitorais, por um loteamento a partir das sub-bacias hidrográficas. “Mudamos a mentalidade da equipe, que vinha da época dos conjuntos habitacionais do Projeto Cingapura. Os prédios eram reproduções de um mesmo projeto. Não é para isso que existe um curso de Arquitetura, em que o profissional aprende durante cinco anos a trabalhar com as condições de cada lugar.”
Para ampliar o conhecimento dos novos arquitetos, organizou intercâmbios com as escolas das Universidades de Harvard e Columbia. Alunos estrangeiros vinham ao Brasil realizar pesquisas, e a equipe brasileira foi convidada a participar de duas das maiores bienais de arquitetura do mundo, a de Roterdã, na Holanda, e a de Veneza, na Itália.
Outro passo importante foi fechar parcerias com escritórios de arquitetura. “Em qualquer país desenvolvido, um projeto público é objeto de concurso”, defende. Assim teve início, em 2010, o Renova São Paulo, programa que selecionou 17 escritórios para participar dos projetos de reurbanização. Graças à iniciativa, famílias de Heliópolis, a segunda maior favela de São Paulo, na zona sul, moram nos prédios circulares projetados pelo renomado arquiteto Ruy Ohtake, que despertam a admiração até mesmo de quem observa as transformações da favela do alto dos prédios de classe média das vizinhanças.
Na maioria das vezes, entretanto, a reação da vizinhança é negativa. Quando a prefeitura adquiriu terrenos fora da área de interesse especial, nos arredores da comunidade Real Parque, a associação de moradores do bairro de classe média de mesmo nome procurou a Justiça para tentar barrar o crescimento da favela. “Não havia espaço para a demanda de 1,2 mil famílias, embora 70% das pessoas trabalhassem no bairro. As pessoas confiam na sua babá, mas não a querem morando perto”, lembra Elisabete. A construção dos prédios colaborou para demolir o preconceito. “Após a construção dos prédios, recebíamos ligações de moradores do bairro para solicitar apartamentos para seus funcionários. A cidade é rica justamente porque tem diferenças convivendo.”
Na comunidade Cantinho do Céu, também na Zona Sul, os moradores viviam de costas para a Represa Billings, e agora frequentam um píer, onde praticam tai chi chuan, corrida e podem nadar. A construção de praças nas áreas públicas dos conjuntos tem sido uma preocupação constante, segundo Elisabete. “Com isso, surgem novas demandas. Por exemplo, os bailes funks nas praças acabam gerando reclamações à polícia. Os bombeiros também se queixam ao ver duas mil pessoas tomando banho na represa.”
As dificuldades refletem o tamanho do débito social acumulado. Paraisópolis, lembra Elisabete, tem o porte de uma cidade média, com 20 mil famílias e quase 80 mil habitantes. “Conseguimos garantir coleta de esgoto para 80% da população, mas não dá para reconstruir tudo”, diz. E não são todos os moradores que aceitam deixar suas atuais casas, que, verticalizadas, às vezes chegam a 200 m2 e abrigam também filhos e netos. “Já realizamos mil reuniões em um ano, com uma equipe de mais de 200 assistentes sociais. Por mais irregular que seja a situação, não dá para simplesmente mandar uma cartinha de despejo, como na China. Um bairro grande exige cinco a seis anos de trabalho.”
A simples presença de equipes da Prefeitura, muitas vezes, estimula o crescimento das favelas. A arquiteta cita o caso da comunidade de Nova Jaguará, onde o projeto começou com uma previsão de 300 unidades e chegou a mil. Na região da Avenida Roberto Marinho, que concentra 16 favelas e 9 mil famílias, há contratos para a construção de 4 mil apartamentos. Reuniões mensais mantêm os moradores a par do andamento das obras.
Os prédios do programa de urbanização têm salão de festas, salas de reuniões e de estudos. Alguns têm até comércio. “O diferencial é que o arquiteto vai até a comunidade e conversa. Isso cria uma identidade para o bairro.” Depois de entregues, os condomínios são acompanhados por ao menos dois anos. Os síndicos fazem cursos e os moradores recebem cartilhas sobre boa convivência. O conceito tem sido levado também aos Cingapuras, onde a maior crítica de Elisabete – além do design padronizado – diz respeito à falta de definição de espaços comuns. “Arquitetos adoram espaços sem grades, embora em suas casas não abram mão delas.”
A superintendente garante que o conforto aos moradores não custa, necessariamente, mais caro aos cofres públicos. Cada unidade custa, em média, R$ 90 mil, ante R$ 80 mil das construídas pelo programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal. “Ao longo do tempo, a qualidade dos projetos torna o custo mais baixo, porque o que é bem feito dura mais”, garante Elisabete. Ela evita, entretanto, as comparações com o programa federal, e diz ter mantido distância de questões partidárias durante sua passagem pela Secretaria de Habitação, que deverá se encerrar com o fim do mandato do prefeito Gilberto Kassab.
“Mas não acredito que a linha de trabalho vá mudar com a minha saída. Temos um Plano Municipal de Habitação, que deve ser aprovado pela Câmara”, aposta Elisabete. “Deixamos os 17 projetos do Renova SP para o Haddad, e ele prevê dar continuidade a eles em sua plataforma de governo, que na área de habitação foi elaborada com a colaboração de alguns escritórios que trabalham conosco.”
Ao deixar a Prefeitura, Elisabete pretende partir com o marido para um período de descanso e estudos no exterior. “O dia a dia é muito complicado na gestão pública quando se quer que dê certo”, diz. “E o break é bom para ver coisas novas e ter ideias.”
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