A possibilidade de estabelecer uma ligação funcional recíproca entre o tecido cerebral e artefatos robóticos ou computacionais foi demonstrada categoricamente em experimentos conduzidos pelo grupo de cientistas que compõe o Projeto Andar de Novo (Walk Again Project). Essas demonstrações indicam que uma nova geração de interfaces cérebro-máquina (ICMs) poderá levar, num futuro próximo, à criação de uma série de neuropróteses capazes de restaurar funções motoras essenciais em pacientes que sofram de graves níveis de paralisia corpórea. Assim, as duas instituições gestoras do Projeto Andar de Novo, o Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke e o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, propõem construir no Brasil a primeira neuroprótese capaz de restaurar mobilidade corpórea completa em pacientes quadri e paraplégicos. Para atingir esse objetivo, propomos realizar a primeira demonstração mundial dessa tecnologia revolucionária durante as cerimônias de abertura da Copa do Mundo de Futebol em 2014.
Durante a última década, neurocientistas do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos, implementaram e testaram em experimentos com macacos rhesus a primeira geração de interfaces cérebro-máquina (ICMs). Ao criar uma maneira de estabelecer uma conexão direta e bidirecional entre o tecido neural de animais e uma variedade de ferramentas artificiais, essas ICMs permitiram que primatas fossem capazes de utilizar apenas a atividade elétrica produzida por grupos de centenas de neurônios, distribuídos em múltiplas regiões cerebrais, para controlar os movimentos de uma variedade de artefatos mecânicos, eletrônicos, robóticos e até mesmo de braços e pernas virtuais.
Ao aprender a operar uma ICM, esses primatas adquiriram a capacidade de controlar os movimentos de ferramentas artificiais e computacionais apenas imaginando o tipo de movimentos de seus braços e pernas, requeridos para a execução de uma dada tarefa motora. Em outras palavras, esses animais foram capazes de realizar seus desejos motores voluntários sem a necessidade de recrutar qualquer músculo de seus membros biológicos. Ao invés, eles apenas utilizaram o próprio pensamento para jogar videogames ou mover objetos localizados próximos de si ou em ambientes remotos.
Essas demonstrações provaram que, ao trabalhar na convergência de múltiplas áreas de pesquisa, que incluem a neurofisiologia de sistemas, a microeletrônica, a ciência da computação e a robótica, a neurociência moderna está rapidamente adquirindo a capacidade de realizar descobertas que podem levar ao surgimento de uma grande variedade de novas terapias para o tratamento de milhões de pacientes mundo afora, que sofrem com as consequências devastadoras de moléstias neurológicas ou lesões irreparáveis do sistema nervoso central.
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De acordo com essa visão, o objetivo central do Projeto Andar de Novo é desenvolver e implementar a primeira interface cérebro-máquina capaz de restaurar mobilidade corpórea completa em pacientes vítimas de lesões medulares, traumáticas ou degenerativas, que resultam em paraplegia ou quadriplegia.
Esse objetivo será atingido por meio da construção da primeira neuroprótese de corpo inteiro que utiliza uma ICM criada para permitir que pacientes paralisados possam usar a atividade voluntária motora gerada em regiões saudáveis de seu cérebro para controlar os movimentos de uma prótese robótica de corpo inteiro, também conhecida como exoesqueleto.
Esse exoesqueleto (ou veste robótica) será construído com a finalidade não só de oferecer suporte físico para que esses pacientes possam sustentar o peso de seus corpos e manter uma postura ereta, mas também oferecer condições para que eles possam deambular autonomamente pelo mundo que os cerca.
Além de propor a construção no Brasil dessa nova geração de neuropróteses que têm o potencial de melhorar significativamente a qualidade de vida de milhões de pacientes por todo o mundo, e trazer ao País uma série de tecnologias de ponta nas áreas de neurofisiologia, microeletrônica, ciência da computação, robótica, neuroimagem e neuroengenharia, o Projeto Andar de Novo também propõe um método inovador de colaboração internacional e formação de recursos humanos, que permitirão ao Brasil criar o primeiro Parque Neurotecnológico do Mundo, dentro da Cidade do Cérebro, a ser construída na localidade de Macaíba, Rio Grande do Norte, onde hoje se instala o Campus do Cérebro da AASDAP, um projeto desenvolvido em colaboração com o Ministério da Educação e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, onde o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra será sediado a partir de julho de 2012.
Para oferecer apoio ao Projeto Andar de Novo e solidificar a infraestrutura necessária para a criação futura do Parque Neurotecnológico da Cidade do Cérebro de Macaíba, dois novos institutos de pesquisa serão estabelecidos no Campus do Cérebro da AASDAP: o Instituto de Tecnologia do Nordeste (ITN) e o Instituto de Estudos Avançados Cesar Timo-Iaria (IEACT). No ITN, serão desenvolvidos todos os projetos tecnológicos, envolvendo as áreas de microeletrônica e robótica, necessários para a confecção da interface cérebro-máquina e do exoesqueleto que serão utilizados nesse projeto. Já no IEACT será construído o primeiro simulador virtual do mundo para testes de interfaces cérebro-máquina em pacientes acometidos de graves níveis de paralisia corpórea.
Tal simulador se valerá de uma “caverna virtual”, onde um equipamento de magnetoencefalografia, acoplado a uma ressonância magnética nuclear, fornecerá os dados neurofisiológicos e de imagem cerebral necessários para que pacientes possam aprender a comandar os movimentos de um corpo virtual (avatar) apenas por meio do pensamento. Todas as funções desse simulador serão controladas por um supercomputador IBM-Blue Gene Q, com velocidade de processamento de 1.2 Pentaflops.
Para capacitar estudantes e pesquisadores brasileiros para atuar no Projeto Andar de Novo, os três institutos de pesquisa do Campus do Cérebro – IINN-ELS, ITN e o IEACT – coordenarão um programa de pós-graduação internacional nas áreas de Neuroengenharia, Neurotecnologia, Neurorreabilitação e Neuroeducação.
Fomentado pelo programa da Escola de Altos Estudos da CAPES e pelo Programa Ciência sem Fronteiras do MCTI, esse programa será ministrado por um seleto grupo de 71 neurocientistas do Brasil, Estados Unidos, Europa e Ásia.
Além do programa de pós-graduação, o Projeto Andar de Novo servirá como a fundação necessária para o lançamento do maior projeto de educação científica infanto-juvenil da história do Brasil. O projeto de educação científica Alberto Santos Dumont, moldado nas experiências educacionais desenvolvidas pelo IINN-ELS nos municípios de Natal (RN), Macaíba (RN) e Serrinha (BA), permitirá que centenas de milhares de crianças de 7 a 17 anos de idade, espalhadas por todo território nacional, possam participar de um curso de educação científica no contra-turno da escola pública regular.
Vislumbra-se também que tanto as crianças que frequentarem o programa educacional Alberto Santos Dumont, quanto os alunos de toda a rede pública federal, estadual e municipal poderão participar ativamente do dia a dia do Projeto Andar de Novo, através de interações virtuais com a equipe científica, via internet, participação em desafios científicos e experimentos em sala de aula, olimpíadas de robótica e participação coletiva em certas etapas do projeto, como a definição do logo do projeto e cores do exoesqueleto. Tanto o programa de educação científica Alberto Santos Dumont como o curso de pós-graduação servirão como um legado inestimável do Projeto Andar de Novo, permitindo que toda uma geração de crianças e jovens brasileiros possa sentir, com sua própria experiência, a enorme relevância humanística e social que a prática da ciência de alto nível pode ter na formação de um país e de uma sociedade verdadeiramente democrática.
O programa de formação de recursos humanos do Projeto Andar de Novo também inovará na forma de colaboração científica utilizada. Primeiramente, uma rede mundial com mais de 50 cientistas e tecnólogos de instituições de renome internacional, localizadas nos Estados Unidos (Universidade Duke), Alemanha (Universidade Técnica de Munique) e Suíça (Escola Politécnica Federal de Lausanne), constituirão o grupo principal de pesquisadores envolvidos na realização de todas as metas científicas que levarão à construção e teste da neuroprótese de corpo inteiro. Esse grupo principal será complementado, através do recém-criado programa Ciência sem Fronteiras do MCTI, por cientistas das áreas de neurociência, microeletrônica, ciência da computação, robótica e neuroengenharia que serão recrutados para trabalhar por períodos de até dois anos nos novos laboratórios do IINN-ELS, ITN e IEACT.
Metas científicas do projeto
Levando em conta as observações e resultados acumulados em mais de uma década de pesquisa básica e aplicada com ICMs, chegou-se ao consenso de que uma neuroprótese de corpo inteiro precisará se valer de uma série de novos desenvolvimentos tecnológicos. Primeiramente, será necessário desenvolver e implementar uma nova geração de sensores, conhecidos como cubos de microeletrodos, capazes de registrar e processar, por longos períodos de tempo (pelo menos uma década), os sinais elétricos neuronais necessários para controlar o funcionamento de uma neuroprótese.
Esses sensores tridimensionais deverão ser implantados cronicamente, através de um novo procedimento neurocirúrgico, em pelo menos seis regiões corticais de cada um dos dois hemisférios cerebrais de cada paciente. Essas regiões incluem: o córtex motor primário, o córtex pré-motor ventral e dorsal, a área suplementar motora, o córtex somestésico primário e o córtex posterior parietal.
Em cada uma dessas regiões corticais, a atividade de milhares de neurônios isolados, bem como aquela de grupos neuronais e potenciais de campo, será registrada simultaneamente para servir como fonte dos sinais de comando motor necessários para estabelecer o controle voluntário do paciente sobre o exoesqueleto. A nossa expectativa é de que, pelo menos, 5-10 mil neurônios individuais sejam registrados simultaneamente, em uma primeira fase de desenvolvimento, durante operação da ICM, que servirá como base da neuroprótese.
Para manter a sua performance e continuar a oferecer um alto grau de proficiência clínica para os pacientes, esses registros neurofisiológicos terão de permanecer viáveis durante pelo menos uma década, sem qualquer reparo cirúrgico.
Microchips desenvolvidos somente para uso com a nossa neuroprótese, conhecidos como neurochips, serão utilizados para todos os procedimentos de condicionamento dos sinais neurofisiológicos usados pela neuroprótese. Para eliminar qualquer risco de infecção ou dano do tecido cortical, esses neurochips também incorporarão uma nova tecnologia de transmissão multicanal sem fio, de baixo consumo de energia, capaz de transmitir coletivamente a informação gerada por milhares de neurônios corticais.
Os sinais neuronais transmitidos por esses neurochips serão captados por uma unidade de processamento, acoplada ao exoesqueleto. Essa unidade computacional será responsável pela execução de todos os modelos matemáticos criados para otimizar a extração de comandos motores da atividade elétrica neuronal gerada por cada paciente. Essa unidade computacional também será responsável pela execução de todas as rotinas de treinamento que permitirão a cada paciente calibrar a operação da neuroprótese e do exoesqueleto de corpo inteiro.
Uma vez extraídos da atividade elétrica cerebral de cada paciente, os comandos motores serão utilizados para controlar os atuadores hidráulicos distribuídos por todas as articulações do exoesqueleto de corpo inteiro que cada paciente usará para se locomover espontaneamente. A estratégia de controle desse exosqueleto se baseará na técnica de “controle-compartilhado”, onde sinais cerebrais interagirão com circuitos eletromecânicos, distribuídos ao longo de todo exoesqueleto com o objetivo de reproduzir alguns dos reflexos espinhais mais básicos e fundamentais. Assim, instruções motoras de alto nível, como iniciação do ciclo de marcha, mudanças de postura, velocidade e direção de locomoção, e mudanças de postura de acordo com variações de terreno serão controladas diretamente pela atividade voluntária motora do cérebro do paciente. Por outro lado, comandos reflexos seriam controlados pelos circuitos eletromecânicos do exoesqueleto. Essa interação permitirá que pacientes paralisados possam voltar a se manter numa postura ereta e caminhar autonomamente de acordo com a sua própria vontade.
Nesse cenário, sensores de força, distribuídos ao longo de todo o exoesqueleto, serão responsáveis pela geração de um fluxo contínuo de sinais de “feedback” tátil e proprioceptivo para o cérebro de cada paciente. Esses sinais de retroalimentação serão disponibilizados diretamente ao córtex somestésico do paciente, através de um sistema de micro estimulação elétrica multicanal. Baseado em experimentos recentemente publicados, a nossa previsão é que, depois de algumas semanas interagindo com esses sinais, em combinação com sinais visuais, o cérebro de cada paciente será capaz de incorporar, por meio de um processo de plasticidade cerebral, todo o exoesqueleto como uma extensão do seu corpo biológico e utilizar esse aparato para uma vez mais mover-se, livre e autonomamente, pelo mundo exterior.
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