Vila operária em rede

Visto de fora, o sobrado de tijolinhos não impressiona, mas ao abrir o portão de metal preto o visitante encontra, além de um espaçoso e caprichado jardim, outras casinhas do mesmo estilo. Na verdade, é uma vila operária construída por volta dos anos 1920, no bairro central paulistano da Barra Funda. É lá que funciona desde 2009 a Casa de Cultura Digital, ou apenas CCD – um espaço compartilhado por empresas de diferentes áreas. Mas não é só isso. O que as une, além da vila, é uma forma digital de pensar o mundo. Em outras palavras, o trabalho em rede, a colaboração e a descentralização de decisões são o mote do lugar.

Por ali, trabalham programadores, engenheiros e tecnólogos, empenhados em construir máquinas e desvendar códigos-fonte. Mas há também jornalistas, publicitários, cineastas, produtores, comunicadores em geral. Rodrigo Savazoni, um dos idealizadores da casa, formou-se em Jornalismo e, até 2008, trabalhou na grande imprensa. De lá para cá, está na CCD operando em projetos ligados ao mundo digital e às novas tecnologias. “A casa surgiu como um sonho de construir um ambiente libertário de criação e hoje é uma espécie de laboratório de vivências”, explica.

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A experiência da CCD de São Paulo já começa a se estender por aí. A casa também está em Santos, desde o mês passado. “Não existe uma receita para recriarmos o que fazemos em São Paulo, tudo depende de quem vai ocupar o espaço”, diz Savazoni. O colega de espaço Adriano de Angelis, que pretende levar em breve a vivência da casa para o Rio de Janeiro, faz a sua definição do que é a CCD. “A casa consegue transferir para o cotidiano uma lógica digital, que vai potencializar as ações a serem desenvolvidas. Muita gente acha que trabalhar com cultura digital é simplesmente operar com tecnologias no ambiente digital. É mais que isso.”

“Por abrigar empresas e pessoas com pensamentos consoantes, a casa possibilita a troca de informações e ideias, permitindo a criação e a promoção de soluções inovadoras”, segundo Savazoni. Na tentativa de facilitar o entendimento, ele compara a CCD a um cluster (conjunto de computadores ligados ao mesmo tempo). Para ele, a casa, guardadas as devidas proporções, é semelhante a Hollywood. “Os caras juntaram um monte de gente no mesmo lugar para fazer cinema. Por isso, a produção é tão boa”, acredita.

Resultado: é praticamente impossível dar conta de todos os projetos que acontecem na Casa de Cultura Digital. “Aqui, pensamos inovação como formas criativas de transformar a cultura, e não formas de melhorar a produção industrial”, diz Savazoni. A jogada é complexa, mas funciona. Foi lá, por exemplo, que nasceu o Baixo Centro, um festival cultural independente, que aconteceu entre março e abril e reuniu mais de cem eventos entre festas, exposições e intervenções de arte, ocupou ruas e polos culturais do centro de São Paulo. Até aí, tudo certo. Mas o fato marcante foi como a CCD arrecadou verba para realizar as programações: via catarse, o site de crowdfunding, que opera sistemas de financiamento colaborativo. “Não arrecadamos muito dinheiro, algo em torno de R$ 22 mil. Depois, abrimos inscrições para os projetos”, diz Gilberto Vieira, um dos organizadores do festival. Formado em Publicidade, Vieira não está ligado a nenhuma empresa da vila, mas participa de todas as rotinas da casa, trabalhando em projetos que vão surgindo. “Uma vez aqui, não consigo mais sair.”

Como é possível realizar um festival com uma verba pequena? “O Baixo Centro foi um investimento nosso, não deu dinheiro para nenhum dos organizadores”, diz Savazoni. “Conseguimos realizar o evento porque o ambiente de criação da casa propicia isso. Muitas das tecnologias usadas na divulgação e execução do festival, como sites e outras ferramentas, foram criadas aqui.”

Ambiente a la Stanford
Uma marca importante da casa é a descontração. Na sala coletiva, almofadões estão espalhados pelo chão e redes foram instaladas em ganchos na parede, causando um clima relax. A decoração rende à CCD comparações com a Stanford University, uma das mais importantes universidades dos Estados Unidos, e com empresas contemporâneas, como o Google, conhecidas por adotarem rotinas mais flexíveis que as do mundo corporativo tradicional.

Trabalham diariamente nas empresas da CCD pelo menos 60 pessoas, mas a população flutuante da casa beira cem pessoas, segundo estima Paulo Fehlauer, um dos três criadores da Garapa, produtora que está na casa desde a fundação. “Atuamos em duas frentes. De um lado, produzimos um trabalho mais autoral. De outro, material multimídia para clientes, como Itaú Cultural e o jornal Folha de S. Paulo.”

Gabriela Barreto, que já trabalhou na Garapa, hoje ocupa uma mesa em uma sala com a estante preenchida por garrafas de pinga. Ela e Felipe Jannuzzi são os responsáveis pela Paralelo Multimídia. A empresa tem, entre outros, o projeto de mapear a cachaça no Brasil. “Lancei essa ideia na lista de discussões da CCD, que está hospedada na ferramenta de grupos do Google. Em pouco tempo, eu já tinha a equipe para desenvolver nosso site sobre a bebida”, afirma Gabriela, que é formada em audiovisual. O mapeamento começou com vídeos com o sommelier Leandro Batista. “Hoje, somos reconhecidos na área e temos projetos para lançar um guia impresso.”

No porão, funciona o Garoa Hacker Clube, um hackerspace, ou seja, um local em que programadores, engenheiros e aficionados por eletrônica desmontam utensílios, inventam novos equipamentos e trocam ideias. “Não somos uma incubadora de empresas, mas um clube que possibilita a interação entre pessoas com as mesmas afinidades e, melhor, propicia espaço e ferramentas que as pessoas não costumam ter em suas casas”, diz DQ, um dos fundadores.

Apesar de não ter como finalidade a criação de empresas, o clube inventou a Metamáquina, que também funciona na vila operária, vendendo e fabricando impressoras 3D de baixo custo. “A partir de um modelo de impressora com software livre, fizemos a nossa”, explica Rodrigo Rodrigues da Silva. O dinheiro inicial para a produção veio via o site catarse, mas hoje a empresa já toca sozinha o negócio.

Informando por aí
Os hackers são um capítulo à parte. Eles embarcam em um ônibus com um desejo comum: ocupar cidades brasileiras com ações políticas. Por política, eles entendem: “Toda a apropriação tecnológica, gambiarra, questionamento e exercício de direitos”. Por ação: “A prática, o faça você mesmo, um projeto de lei, uma escola”. O chamado Ônibus Hacker é uma iniciativa ligada à Transparência Hacker, grupo locado virtualmente com o objetivo de promover a transparência pública, abrindo dados governamentais para os cidadãos.
O projeto desse ônibus começou em junho de 2009, quando a Transparência Hacker o lançou no catarse, uma plataforma de financiamento coletivo. Em dois meses, 500 pessoas doaram R$ 60 mil para a compra do veículo, que começou a rodar para valer neste ano. Ele tem viajado para cidades e bairros, levando cursos e oficinas que mostram como, por meio da tecnologia, é possível atuar politicamente. No mês passado, estacionou em Paraty, cidade do Rio de Janeiro, para participar da Virada Digital – evento que também nasceu na Casa de Cultura Digital. “Ensinamos, por exemplo, crianças a ler dados em planilhas, relativos a gastos públicos. Surpreendentemente, elas adoram essa atividade”, afirma Lívia Ascava, uma das organizadoras do projeto.

O espaço parece ser ultracontemporâneo, mas Savazoni discorda. Modestamente, diz que não haver nada de diferente na CCD: “O modelo de distribuição do hip hop, por exemplo, sempre circulou por uma malha de contatos em rede. Desde os anos 1980, o movimento organizou cenas de forma independente, reunindo pessoas do Brasil inteiro. A diferença é que agora existe um aparato tecnológico, que é descentralizado por natureza”.

É até irônico que a CCD esteja baseada em uma vila operária – o trabalho realizado ali é radicalmente oposto ao de uma indústria. No entanto, as incertezas parecem ser uma constante nesse novo-velho mundo digital.


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