Viver para trabalhar ou trabalhar para poder viver?

Linha de montagem da Volkswagen, em Taubaté - Foto: Comunicação Volkswagen do Brasil
Linha de montagem da fábrica da Volkswagen,em Taubaté (SP) – Foto: Comunicação Volkswagen do Brasil
A questão da apropriação do tempo de trabalho é um aspecto central na disputa entre capital e trabalho. Como o dia tem somente 24 horas, o tempo dedicado ao trabalho significa reduzir espaço para o descanso ou para viver outras dimensões da vida. Por isso, a redução da jornada foi uma das primeiras e principais reivindicações do movimento trabalhista a partir da consolidação do assalariamento como condição de acesso à renda. Na história do final de século XIX até o último quartel do século XX, a tendência foi uma redução progressiva das horas semanais, anuais e da vida dedicada ao trabalho (jornada de 40 horas semanais, férias, aposentadoria, descanso no final de semana etc.). Por exemplo, nos países desenvolvidos a jornada anual de trabalho reduziu de quase 3.000 horas ao ano para em torno de 1.600 horas no período. Assim como, a tendência foi de estabelecer regras de como as empresas utilizam o tempo de trabalho.

A partir dos anos 1970 há uma mudança de tendência na regulamentação do tempo de trabalho, tendendo a prevalecer uma maior flexibilização da jornada. A análise das tendências implica considerar quatro dimensões em torno da disputa do tempo de trabalho: 1) duração; 2) distribuição; 3) intensidade; 4) tempo gasto para se deslocar e manter o trabalho. Nos quatros aspectos ocorreram mudanças nos últimos anos.

No tocante à duração da jornada, a tendência foi de uma composição mais heterogênea. Para alguns segmentos profissionais foi eliminada a separação entre o trabalho e a vida pessoal. Vive-se em função do trabalho. Em outros, como mostram relatórios da OIT, houve ampliação de contratos mais precários (tempo parcial e temporários), que reduziram o número de horas trabalhadas. Assim como países com longas jornadas ampliaram a sua participação na produção de bens, nos países com jornadas menores ocorreram pressões para ampliar as possibilidades das empresas utilizarem a força de trabalho de acordo com as suas necessidades. Em relação à distribuição da jornada, a tendência foi avançar a composição de jornadas mais flexíveis, organizadas a partir da lógica do negócio e não da vida das pessoas. Ou seja, as jornadas tendem ser ajustadas com as características das atividades e ciclos econômicos. As novas tecnologias, combinadas com estratégias de organização baseadas em metas, permitiram introduzir mecanismos mais sofisticados de controle do trabalho, o que intensificou o trabalho. A exigência de cumprir metas e resultados ficou muito intensa. É um processo que levou ao surgimento de novas doenças do trabalho, tais como o estresse, o ansiedade, o assédio moral. Por último, para uma parcela dos trabalhadores, a jornada não começa no horário formal estabelecido, mas fora dele, especialmente no tempo dedicado ao deslocamento e ao preparo (estudo, resolução de problemas) para poder trabalhar.

No caso brasileiro, apesar da jornada de 8 horas ter sido regulamentada ainda nos anos 1930, a jornada sempre foi longa, inclusive pelas excessivas horas extras. No entanto, a partir dos nos 1990 duas mudanças ocorreram. Por um lado, especialmente nos anos 2000, há uma tendência de redução da jornada excessiva, acima da formal de 44 horas semanais. Entre 2001 e 2014, o número dos que trabalham 45 horas ou mais regrediu de 39% para 24%, em média. Existem segmentos econômicos que a jornada aumentou, mas na maioria caiu. Ainda é alto o número de pessoas em jornadas excessivas, apesar da expressiva trajetória de queda. A queda tem relação com o processo de avanço dos indicadores de emprego, de formalização e de melhora da renda do trabalho ocorrida no período. Para parte importante da sociedade o trabalho não é sinônimo de realização pessoal, mas uma forma de ganhar recursos para (sobre) viver. Assim, havendo condições, parte importante dos ocupados/as opta por trabalhar um pouco menos.

Ao mesmo tempo, houve um processo que tornou a jornada mais flexível. A flexibilidade ocorreu de várias formas. As que mais se destacam são: 1) banco de horas, ou seja, a possibilidade de empresa negociar uma compensação anual da jornada, alterando período com mais e outros com menos horas trabalhadas, dependendo da variação da atividade econômica. É uma iniciativa que racionaliza o uso de horas trabalhadas e desorganiza a vida dos trabalhadores, ao privilegiar a dinâmica econômica; 2) liberação do trabalho aos domingos, o que também facilita a vida as empresas e tende a criar dificuldades na vida pessoal dos empregados. O descanso semanal coincidir no domingo não foi uma opção somente religiosa, mas resultante de uma compreensão que a vida social saudável necessita de espaços de convivência, de socialização; 3) alteração dos turnos e escalas de acordo com cada setor econômico; 4) a possibilidade de organizar a atividade fora do local de trabalho, em casa, inclusive fazendo que a separação entre a vida pessoal e do trabalho fique menos nítida. Inúmeras ficam conectadas eletronicamente, estando a disposição da empresa para encaminhar solução de problemas e/ou realizar encaminhamentos de trabalho. Muitas pessoas levam trabalho para casa e levam preocupações para resolver. A jornada de trabalho fica estendida, ocupando o tempo social das pessoas.

Portanto, a tendência foi combinar uma redução do número de pessoas que trabalham 45 horas ou mais – um crescimento dos que se encontram na jornada de 40 e 44 horas -, com o avanço da flexibilidade da jornada. Ou seja, criou-se uma situação em que as empresas estão tendo maior espaço para determinar as condições de uso do trabalho. Mesmo assim, há uma ofensiva em 2016, patrocinada pelas entidades patronais e do governo de aumentar a jornada (até 80 horas semanais, conforme propôs o presidente da Confederação Brasileira da Indústria) e de flexibilizá-la ainda mais, por exemplo, reduzindo ou até eliminando o horário do almoço.

São tendências que tendem subordinar progressivamente a vida à lógica da reprodução econômica, dificultando as pessoas usufruírem das múltiplas dimensões que a vida oferece.

* José Dari Krein é pesquisador do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) e professor do Instituto de Economia da Unicamp


Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.