Um grande espetáculo

Coluna_EVARISTO
Amor ao Teatro, enorme compilação de críticas de Sábato Magaldi, ao longo dos anos 1966 a 1988, é um livro para quem ama teatro e, em especial, para quem ama a crítica de teatro. São 783 críticas, em mais de 1.200 páginas, em um único volume editado pelas Edições Sesc, decorrente de uma pesquisa primorosa feita por Edla Van Steen, mulher de Sábato, assessorada por José Eduardo Vendramini. Não se trata, contudo, de sua obra completa, já que ficaram de fora as publicações e os artigos em que ele assinava S.M. ou M.S. e, ainda, todas as matérias especiais e críticas de dança e de espetáculos estrangeiros. Mas o material reunido no livro é extraordinário e passa a ser referência para críticos, pesquisadores e artistas. 

Sábato Magaldi é um dos dois maiores críticos do País, ao lado do saudoso Décio de Almeida Prado. Coincidentemente, ambos também se formaram em Direito: Sábato na Universidade de Minas Gerais, em 1949, e, Décio na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em 1941. E se dedicaram intensamente à Universidade de São Paulo, na qual, aliás, Sábato foi professor emérito, na Escola de Comunicação e Artes (ECA). E Sábato Magaldi é o maior estudioso (e a grande autoridade) da obra de Nelson Rodrigues. Além disso, ele ocupa a cadeira número 24 da Academia Brasileira de Letras. 

Em 2013, recebeu o Prêmio Especial da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), outorgado pela diretoria, representando os críticos de todas as categorias da entidade, a qual, evidentemente, Sábato integrou por anos, de 1956 a 1979. Mas não votou em 1976, quando, por seus pares, recebeu o Grande Prêmio da Crítica.

Com sua vida dedicada à crítica, agora, com Amor ao Teatro, mostra ao leitor um retrato incrível de 22 anos do que aconteceu de melhor no teatro em São Paulo. Dá até para sentir o passeio do crítico por todos, literalmente todos, os teatros da cidade, alguns, hoje, com suas portas já fechadas, outros ainda em pleno funcionamento. Sábato, ao escrever suas reflexões sobre os espetáculos, acaba também deixando um registro paralelo sobre os teatros por onde tais peças foram encenadas: Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), Teatro Oficina, Arena, Teatro São Pedro, Teatro das Nações, Teatro Itália, Teatro Paiol, Teatro Aquarius, Teatro Anchieta, Teatro Ruth Escobar, Teatro Aliança Francesa (que celebrou 50 anos em 2014), Espaço OFF, Teatro Zero Hora, Teatro Odeon, Teatro Cultura Artística, Teatro Bela Vista, Teatro Sergio Cardoso e Teatro Maria Della Costa, entre tantos outros tão importantes na cena da cidade.

Nesses teatros, Sábato visitou clássicos, comédias, dramas, musicais e tragédias. Viu a vanguarda se confirmar e, às vezes, se perder. Observou experimentos cênicos, dos mais variados, consolidando-se. Escreveu sobre farsas e sobre revoluções e golpes. Registrou o surgimento e a consagração de grandes estrelas. Assistiu, em cena, a grandes textos dos maiores dramaturgos estrangeiros e brasileiros. Fez críticas às peças de Ariano Suassuna, Chico de Assis, Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, e, claro, Nelson Rodrigues.

Acompanhou e fez críticas a diretores como Fauzi Arap, Silnei Siqueira, Flávio Rangel, Antônio Abujamra, José Rubens Siqueira, José Celso Martinez Corrêa, Ademar Guerra, Augusto Boal, Gianni Ratto, Antunes Filho, Plinio Marcos, Walter Avancini, José Renato, Fernando Peixoto, Flávio Império, Sérgio Viotti e Ilo Krugli. Também escreveu sobre espetáculos de Roberto Lage, Francisco de Medeiros, Marcio Aurélio, Ulisses Cruz, José Possi Netto. E, ainda, de peças de Jorge Takla, Miguel Falabella, Cacá Rosset e Gerald Thomas, entre tantos outros.

 

Amor ao Teatro também tem registros significativos de críticas de divas, como Odete Lara, em Seu Tipo Inesquecível, com direção de Fauzi Arap, em 1970. Ou ainda Maria Della Costa, em Tome Conta de Amélie, direção de Antunes Filho, em 1974. Tônia Carrero, em A Divina Sarah, direção de João Bethencourt, em 1984. Além, é claro, de Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Bibi Ferreira, Nathalia Timberg, Glauce Rocha, Nydia Licia, Myriam Muniz, Lelia Abramo, Laura Cardoso, Célia Helena, Cleyde Yáconis, Ruthinéa de Moraes, Beatriz Segall, Irene Ravache e Marília Pêra, entre muitas, muitas outras grandes damas e musas do nosso teatro. Estão todas no livro.

Mas não ficam de fora as críticas aos grandes homens do teatro brasileiro. Maravilhoso ler sobre os trabalhos, por exemplo, de Paulo Autran, Fernando Torres, Gianfrancesco Guarnieri, Eugênio Kusnet, Raul Cortez, Antônio Fagundes, Walmor Chagas, Italo Rossi, José Wilker, Renato Borghi, Juca de Oliveira, Paulo José e Procópio Ferreira, alguns deles criticados como atores e diretores.

Não ficam de fora também os gênios da comédia, já que Sábato Magaldi, por seu “amor ao teatro”, incondicional, imparcial e sem preconceitos, publicou críticas sobre José de Vasconcelos, Jô Soares, Dercy Gonçalves, Chico Anísio e Oscarito.

Sábato Magaldi foi rigoroso, embora invariavelmente generoso. Escreveu entusiasmado sobre o Grupo Teatro da Cidade, de Santo André, em 1968, mas, em sua crítica sobre o espetáculo Jorge Dandin, dirigido por Heleny Guariba (que militou contra o regime militar e desapareceu no início dos anos 1970) e cenários de Flávio Império, o crítico afirmou que era “um espetáculo que merece o nosso apreço intelectual, embora não consiga uma completa adesão artística”. 

Vários outros grandes artistas, depois disso, passaram a receber as mais contundentes críticas de Magaldi, mas sempre formuladas de maneira absolutamente precisa e, sobretudo, respeitosa e com o escopo de acrescentar interesse à obra que criticava.

Seus textos continham em si mesmos o melhor entendimento da origem da palavra crítica, que é crise. Assim, Sábato identificava a eventual “crise” havida em um espetáculo e discorria sobre ela de modo contextual, fosse ele artístico, político, cultural, ou técnico, acadêmico. 

E assim o fez com praticamente todos os grandes e mais marcantes espetáculos. Escreveu sobre O Rei da Vela, de 1967, do Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa. E, no ano seguinte, sobre Galileu Galilei, também do Oficina.  Escreveu sobre o histórico Macunaíma, de Antunes Filho, em 1978. Mas sobre Hair, de Ademar Guerra, em 1969 (e, novamente, em 1971), qualificou como “passatempo agradável e inofensivo”, mesmo com um elenco, na primeira montagem, formado por Armando Bogus, Helena Ignez, Aracy Balabanian, Sônia Braga, Neuza Borges. Escreveu sobre os espetáculos do Arena e do TBC. 

Também está em Amor ao Teatro, a crítica de Navalha na Carne, de Plínio Marcos, dirigido por Jairo Arco e Flexa.  E de Esperando Godot, dirigido por Flávio Rangel, com Walmor Chagas e Cacilda Becker, ela em seu último trabalho, quando, ainda em cena, se sentiu mal e foi levada para um hospital, com os figurinos de sua personagem. Sábato Magaldi escreveu também sobre Zumbi, do Teatro de Arena, em 1969, Medeia, de Silnei Siqueira, em 1970, e O Santo e a Porca, Os Amores de Lorca, O Homem Elefante e Virginia Woolf. Escreveu sobre centenas de espetáculos. E, evidentemente, sobre Romeu e Julieta e outras peças de Shakespeare, além de Doroteia, e outras de Nelson Rodrigues.

Muitas peças, muitas histórias do teatro e para o teatro. Um livro que revela a dedicação obstinada de um crítico para retratar, de fato, as mais diversas linguagens e manifestações de um universo enorme de artistas que vivenciaram e lutaram durante o período de censura e, depois, de liberdade, mas sempre impondo um movimento intenso e permanente de resistência e de criação teatral. E, sobretudo, de muito prazer ao longo dos  22 anos retratados nesse livro de Sábato Magaldi e de amor ao teatro. Esse livro é um grande espetáculo.

*Evaristo Martins de Azevedo é crítico de arte, membro da comissão de teatro e conselheiro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), e jurado do Prêmio Shell de Teatro. É também advogado, especialista em leis de incentivo a cultura, presidente da Comissão de Direito às Artes da OAB-SP e colaborador da SP Escola de Teatro e da Brasileiros, onde atua como colunista de teatro.

 


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