Uma história de amor e abstinências

Coluna_EVARISTO

Impressionante o espetáculo Dias de Vinho e Rosas, um texto do autor americano J.P. Miller, vertido para o teatro pelo dramaturgo irlandês Owen McCafferty e, aqui, traduzido por Clara Carvalho. Mas, sobretudo, muito, muito bem dirigido por Fábio Assunção, ator de televisão que pela segunda vez experimenta a direção teatral de modo simplesmente irretocável.

Fábio Assunção já havia dirigido, anos atrás, outro espetáculo – O Expresso do Pôr do Sol –, ainda sem grandes riscos, mas agora em Dias de Vinho e Rosas, ele se arrisca com uma direção mais ousada. Acerta em cheio, criando uma encenação exatamente como deveria ser (ou precisaria ser!) para tornar o ótimo texto em uma leitura praticamente perfeita para o palco!

Para tanto, conta com a entrega absoluta dos dois atores em cena para atingir essa plenitude. Em especial porque o drama contado é pesado, triste e longe do lugar comum, mas é muito próximo dos problemas reais causados pelo alcoolismo. O espetáculo conta a história de um casal que se conhece no saguão do aeroporto de Belfast (cidade de Owen McCafferty). Eles estão embarcando para Londres, cada um com seus sonhos e pretensões. E brindam esse encontro com um gole que ele oferece a ela, que até então não bebia…

Chegam à cidade já apaixonados, depois se casam, têm um filho. E sempre celebram tudo com um gole, uns tragos, uns copos, garrafas inteiras… Tornam-se alcoólatras. A partir daí, o vício na bebida passa a destruir tudo: todas as celebrações, todos os tais sonhos e pretensões, mas, principalmente, aquela velha paixão e o casamento. Revelam-se as frustrações, as decepções, os desencontros e não têm mais nada a celebrar.

Os atores Daniel Alvim e Carolina Mânica vivem no palco uma dramática história - Foto: Priscila Prade/ Divulgação
Os atores Daniel Alvim e Carolina Mânica vivem no palco uma dramática história – Foto: Priscila Prade/ Divulgação
Toda essa travessia é contada na peça em nove atos, em que a atriz Carolina Mânica interpreta Mona, a jovem doce e sonhadora que se converte em uma mulher amarga e indiscutivelmente infeliz, e o ator Daniel Alvim, o sedutor Donal, um bookmaker, apostador de corridas de cavalos que, claro, se torna um derrotado e cujos vícios não sustentam a sedução de antes. De um lado, ela apenas passa o tempo em casa, cuidando do filho (que não aparece em cena), sem conseguir – e nem pretender! – ser uma dona de casa. Ele, de outro, fica fora o dia todo, bebendo e, à noite, apostando em cavalos.

Eles vivem assim por cerca de nove anos até que, naturalmente, só o que resta são as amarguras da bebida, já desglamourizada, e o fracasso nas tentativas de largar o álcool e trocá-lo pelas rosas do título do espetáculo. É justamente por causa dessa ruína que impera a excepcional direção de Fábio Assunção, em não permitir que esse triste mergulho seja piegas ou bata de cabeça no chão do clichê exagerado. Por outro lado, seria improvável que conseguisse chegar a tantos acertos sem a extraordinária emoção que transmitem os atores em todas as cenas. Talvez o mais marcante nesse espetáculo seja justamente a dimensão das sensações de angústia que passam para o público. A intensidade nas cenas em que lutam contra o desgaste da relação e com a qual tentam resgatá-la, em meio a uma crise de abstinência, é perturbadora.

Em outubro de 1958, o crítico Jack Gould, do New York Times, ao discorrer sobre a primeira versão do filme Days of Wine and Roses, do diretor John Frankenheimer, assim descreveu a atriz Piper Laurie, que fez o papel que hoje é de Carolina  Mânica: “Sua interpretação da jovem esposa acentua este lado do ‘delirium tremens’ – a dança volúvel ao redor da sala, a sua fraqueza de caráter em momentos de ansiedade e seu charme quando estava sóbria – foi uma realização superlativa. A srta. Laurie está se movendo para a frente de nossas jovens atrizes mais talentosas”. E sobre o ator Cliff Robertson, ator no filme, o crítico do NYT escreveu: “Mr. Robertson alcançou uma atuação de primeira linha, interpretando o falso sóbrio lutando para segurar o bêbado sem esperança, cuja única coragem vem da garrafa”.

Bem, aqui, essas mesmíssimas palavras poderiam ser dirigidas, quase 60 anos depois, para os atores Carolina Mânica e Daniel Alvim. Artistas muito sensíveis, incrivelmente bem dirigidos, vale repetir. Quase dá para sentir o gosto da bebida boa e, logo depois, o desgosto da ressaca ruim. Tudo acentuado de forma ainda mais contundente (mas sem excessos fáceis) pela iluminação espetacular de Caetano Vilela e pelos figurinos e cenografia de Fábio Namatame, ambos experientes e já ganhadores do Prêmio Shell. Como se não bastasse, o espetáculo tem músicas de Egberto Gismonti, que também assina a direção musical, e de Ricardo Severo, vencedor do Shell de 2014.

Ironicamente, entretanto, é que todo esse poderio artístico é utilizado para contar, no fundo, uma dramática história de amor e abstinência. De um amor imperfeito, talvez, comprometido pela ilusão da bebida, mas uma história de amor. E abstinência.

*Evaristo Martins de Azevedo é crítico de arte, membro da comissão de teatro e conselheiro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), e jurado do Prêmio Shell de Teatro.


Comentários

2 respostas para “Uma história de amor e abstinências”

  1. Avatar de Daniel Ferreira Alvim
    Daniel Ferreira Alvim

    Evaristo, obrigado pelas sensíveis palavras. Aprendendo e aprimorando com cada especial olhar. Obrigado.

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