A estratégia da corda bamba

Manifestantes pró-Dilma se unem no Largo da Batata, em Pinheiros. Foto: Vinícius Mendes
Manifestantes pró-Dilma se unem no Largo da Batata, em Pinheiros. Foto: Vinícius Mendes

A conjuntura política brasileira anda tão complicada que torna um convite ao erro qualquer tentativa de previsão. Mas como as previsões equivocadas não são prerrogativas exclusivas de astrólogos e economistas, vou dar uma pequena contribuição de historiador aos nossos milhões de erros.

Em qualquer análise política, devemos levar em conta, ao menos, quatro variáveis: os atores políticos, as instituições, a cultura política enraizada historicamente e a conjuntura internacional.

Comecemos por esta última. A conjuntura é complexa, seja do ponto de vista político, seja econômico. O Brasil é uma economia frágil, apesar do grande mercado interno e dos recursos naturais, amplamente dependente de tecnologia e capitais externos e de demandas mundiais de commodities, muito instáveis. E a crise de 2008 veio para ficar por muito tempo.

A cultura política – ou as culturas políticas – mais enraizada na sociedade brasileira também não permite muito alento. Somos uma sociedade marcada pelo conservadorismo elitista, fisiologismo e corporativismo. E que não se diga que essas mazelas são produtos do baixo nível educacional das classes populares, pois elas me parecem bem distribuídas em todas as classes sociais e níveis de escolaridade. A conjunção desses três elementos da cultura política brasileira dificulta negociações partidárias coerentes e arranjos políticos mais consistentes, embora tenham a vantagem de impedir rompimentos definitivos e violentos entre os vários grupos políticos, o que, se levados ao limite, pode conduzir as sociedades a guerras civis.

O moralismo de ocasião da imprensa conservadora parece ter o objetivo que sempre teve na história: Afastar a esquerda do poder, menos por causa de seus inúmeros defeitos e mais por suas poucas virtudes

As instituições políticas brasileiras dispensam maiores comentários. Os partidos são frágeis e têm história curta, o sistema político é tradicionalmente instável e os poderes de Estado muitas vezes parecem não convergir na busca de um projeto nacional minimamente consensual. Nesse ponto entram os atores políticos (lideranças partidárias, grupos de pressão, entidades da sociedade civil organizada, imprensa, movimentos sociais). O governo, como ator político, parece rendido, tentando conseguir um espaço aqui e acolá. Os partidos de esquerda estão atônitos, perdidos em suas próprias contradições e sectarismos. Os movimentos sociais e sindicais, que poderiam ser o sal da terra em um momento de crise política, parecem igualmente desarvorados, lutando pelas próprias agendas ou para preservar conquistas pontuais. Sobram, portanto, os atores da oposição, que têm tido o protagonismo político mais assertivo desde 2013.

Vale lembrar que os atores de oposição tampouco formam um bloco coeso e articulado. Nesse bloco, podemos situar boa parte da imprensa, vários partidos e lideranças parlamentares, quadros do poder judiciário, grupos econômicos nacionais e internacionais e movimentos mais ou menos formalizados da classe média batedora de panelas. Eles se encontram no antipetismo visceral e no moralismo de ocasião, que podem ser mais ou menos conservadores. Os vários processos judiciais em curso contra a corrupção política não estão sendo acompanhados de um verdadeiro movimento – social e institucional – pela reforma política, a começar pelos termos da campanha eleitoral, momento de maior drenagem dos recursos públicos desviados e de promiscuidade entre políticos e grandes empresas. O moralismo de ocasião da imprensa conservadora parece ter o objetivo que sempre teve na história do Brasil: afastar a esquerda (ou algo que se pareça com ela) do poder, menos por causa de seus inúmeros defeitos e mais por suas poucas virtudes.

Mas o que querem os atores sociais e políticos de oposição no presente momento histórico? Ao que parece, oscilam entre duas alternativas: derrubar a presidente Dilma (e varrer o PT como opção partidária da massa dos eleitores) agora, ou em 2018. A primeira via exigiria uma ação de impeachment, a segunda, uma vitória acachapante nas eleições presidenciais. Até o momento, parece que o fantasma do impeachment surge e desaparece de tempos em tempos, mais para “fazer sangrar” o governo já moribundo, quando ele ameaça retomar o protagonismo. Ora se transforma em um grito das ruas, ora em opção palaciana. É esta última que tem o poder de decisão efetiva sobre o processo.

Neste mês de agosto, assistiremos a uma nova rodada pelo impedimento da presidente Dilma, e dessa vez a coisa toda parece mais consistente, politicamente falando. As “pedaladas fiscais”, caso reprovadas pelo TCU, podem se transformar em processo formalizado de impedimento na Câmara, com a vantagem de preservar o PMDB da degola. Vale lembrar que, ao contrário dos processos sobre financiamento de campanha, a cargo dos Tribunais Eleitorais, o processo do Tribunal de Contas da União não atingiria o vice-presidente Michel Temer, embora possa criar jurisprudência para arrastar vários governadores de Estado que praticaram semelhante malabarismo fiscal.

Além do impedimento da presidente Dilma, a estratégia das oposições implica afastamento de qualquer liderança petista, com possibilidade de votos em 2018. Lula e Fernando Pimentel já estão na mira do Judiciário. Haddad, com menos cacife eleitoral para uma corrida presidencial, por ora, só apanha da imprensa e da opinião conservadora que julga ser a ciclovia pintada de vermelho em São Paulo a criação mais terrível do comunismo e de seu primo pobre, o bolivarianismo.

Enfim, as pedaladas fiscais da presidente, as pedaladas políticas de Lula e as pedaladas dos ciclistas paulistanos estão na berlinda, sob a mira da direita. A queda do governo antes de 2018, aliada à desintegração moral e política do PT, tiraria a base de sustentação dessas alternativas políticas. Pessoalmente, acho que as oposições apostam em 2018, mas se o governo cair antes não será de todo mau para elas, desde que seja um processo pactuado entre PMDB e PSDB e controlado pelo Congresso. Mas ainda assim é uma aposta de risco. Até agora, as oposições optaram pela estratégia da corda bamba que implica cutucar quem está precariamente equilibrado, mas também evitar que ele caia no último segundo. Até porque sua queda pode ferir os mesmos que o cutucam, como demonstra a recente entrada do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, na fila do Lava Jato. Em que pese a importância da luta contra a corrupção na política, os efeitos dessa “operação mãos limpas” à brasileira, sem reforma política radical, podem ser contraditórios, arrastando lideranças e partidos que hoje bradam pela moralidade pública e, assim, comprometendo o sistema como um todo. O que sobraria? Quem ficaria com os despojos da política brasileira?

O antipetismo histérico e visceral estimulado pela imprensa conservadora, independentemente de qualquer “culpa em cartório” efetiva dos petistas, já produziu estragos na sociedade, fazendo com que a intolerância, o fascismo, o preconceito racial e o elitismo social saiam do armário disfarçados do bom combate contra a corrupção. Obviamente, nem todos que saíram às ruas ou batem panelas são fascistas de plantão, mas a confluência entre crise e conservadorismo em um ambiente institucional frágil pode ser fatal para a democracia e para as conquistas sociais dos últimos anos. Não tenhamos dúvida. Se essa serpente, que já saiu do ovo, crescer e engordar, picará a todos, incluídos alguns de seus criadores. Não haverá eleições que consigam recompor um convívio democrático mínimo, não haverá lideranças institucionais a serem respeitadas, pois no caldo grosso do fascismo só poderão sobreviver bufões e aventureiros.

Na estratégia da corda bamba das oposições, legalismo e golpismo frequentemente se entreolham. A retórica da “defesa das instituições” não é suficiente quando o discurso se alimenta do ódio político e exige caça às bruxas. Se a direita brasileira abandonar o marco do republicanismo em nome de alguns votos a mais para derrubar um partido que não conseguem vencer nas urnas, ficará aberta a porta para uma aventura autoritária. Boa parte da sociedade brasileira parece pronta para isso.

*Historiador, pesquisador do CNPq e professor do Departamento de História da USP


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