Assisti à pré-estreia do Que Horas Ela Volta? de Anna Muylaert no dia 11 de agosto, no auditório do Ibirapuera. A emoção ainda não passou. Dura na retina e no corpo todo.
Há quase quarenta anos quando cheguei pela primeira vez ao Brasil, me alojei num hotel do Flamengo. Um vizinho árabe de Buenos Aires que era muito viajado me trocou uns dólares e me indicou os lugares mais econômicos.
Mesmo querendo logo conhecer a cidade, me recostei para descansar e fui tomado pela voz de uma mãe preta que ninava seu bebê. Não consegui sair do quarto do qual conservo o cheiro e a sensação de umidade. Mal sabia que estava entrando na brasilidade.
Anos atrás escrevi sobre a função-bá que é algo assim como a posição dos terapeutas e cuidadores de pessoas que não aceitam ajuda ou que não se adaptam aos protocolos clínicos tradicionais.
Bá porque mais antigo que babá e significa o mesmo: ama-de-leite, ama-seca, preta velha. Mas no filme de Anna Muylaerte essa bá é muito mais, como no dizer de León Rozitchner (Materialismo ensoñado, Buenos Aires, Tinta Limón Ediciones ) “é o solo nutrício onde o pensar se engendra”.
Anna Muylaert disse naquela noite que o filme tratava da história de três mulheres: Uma que se achava superior, outra que se achava inferior e outra que se achava igual.
A que se achava superior, a patroa, é brilhantemente atuada por Karine Teles.
Mas Jessica (Camila Márdila) efetua a igualdade por conta de uma mutação histórica que produziu a revolução lulista que elevou a dignidade e os direitos dos de baixo. E pelo encanto. Ela olha o mundo com tesão pela vida e junto com Val vão buscar nas raízes do Brasil a força dos afetos, a força da mãe, mas não de qualquer mãe, da mãe pragmática, aquela que verdadeiramente cuida.
O filme não tem um pingo de pieguice nem de emoção barata. A patroa é politicamente correta e diz à empregada que ela é como da família. Ela quer tratar a filha da empregada carinhosamente mas não suporta o encanto e a potência como tantos que não conseguiram engolir as domésticas nos aviões. Mas Jéssica não escapa da tragédia da mulher brasileira.
Mas então se o Brasil tem essas raízes porque o ódio está tão vigente? Pelos séculos de escravidão, pelos crimes não julgados e porque é produzido por contágio, por uma micropolítica fascista baseada na moral. E no dizer de Luiz Fuganti (Escola Nômade de Filosofia) “para a moral a vida é corrupta por que não é capaz de autonomia”.
O ódio é produzido por contágio de pessoas separadas do que elas podem, que, impotentes, vão buscar suas forças no poder até de polícia e de ditadura.
A potência dramática de Regina Casé produz uma mãe daquelas que Henry Miller queria ter, aquela que te olha e te eleva.
E ela é tão importante nessas horas não só porque mostrou que Fabinho (Michel Joelsas), prefere o colo da Val, mas porque vai buscar ao fundo dos afetos a potência que se efetua em cada mínimo acontecimento e expande uma força e uma dignidade que valem a pena experimentar.
Quando assistirem verão que o ódio e o ressentimento embora empoderados são menos potentes que a generosidade e o amor.
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