A democracia não cabe no Orçamento

Um Legislativo que atropela. Foto: Pedro França
Um Legislativo que atropela. Foto: Pedro França

O Brasil vive hoje uma crise multidimensional: política, econômica, social, institucional, mas, também, democrática. O pacto social brasileiro, firmado na Constituição de 1988 e reafirmado nas últimas eleições, vem sendo atropelado pelas ações do Executivo, Legislativo, pelas agendas Renan, Cunha, Levy e pelo discurso ideológico dos economistas de mercado.

A queda no crescimento e a consequente diminuição na arrecadação criaram um ambiente fértil para análises rasteiras que apontam para a insustentabilidade da trajetória de crescimento do gasto púbico e para a inevitabilidade da redução do gasto social.

Em meio à crise, questões essencialmente políticas têm sido tratadas às pressas como se fossem questões técnicas, a despeito dos princípios que norteiam a democracia brasileira.

No Brasil, por exemplo, um cidadão pobre com uma doença grave tem direito constitucional a tratamento no SUS. O custo desse tratamento, às vezes muito oneroso, é arcado pelos contribuintes. Simbolicamente, trata-se de um pacto de solidariedade entre nós, onde dividimos os custos do acesso universal à saúde, aos outros bens públicos e benefícios sociais diversos. 

Já em outros países, como nos Estados Unidos, um cidadão pobre com uma doença grave é deixado à sua própria sorte. A saúde é uma mercadoria como outra qualquer e os mecanismos de mercado selecionam aqueles que podem acessá-la. O individualismo – e não a solidariedade – norteia esse pacto social que limita o acesso aos serviços sociais àqueles que têm dinheiro.

Esses dois modelos de pacto social são frutos de decisões coletivas e reflexos do processo democrático e são baseados em valores socialmente compartilhados. É nesse contexto que deveria se colocar o debate sobre o gasto social no Brasil.

No entanto, o tema do gasto social tem sido tratado à revelia do ambiente democrático. O projeto da nova DRU (Desvinculação de Receitas da União) é discutido em Brasília, sem que a população sequer saiba o que significa essa sigla e tampouco que a DRU possibilita desvincular recursos públicos de sua finalidade constitucional, retirando-os do gasto social (que configura a maior parte do gasto vinculado).

Não há nada de inexorável na situação fiscal brasileira que imponha um ajuste nessa direção. A dívida bruta brasileira se encontra em patamar próximo ao de dez anos atrás, em torno de 65% do PIB, mas a situação fiscal é melhor, já que a dívida líquida brasileira, indicador mais adequado para análise da solvência do Estado, está dez pontos percentuais mais baixa, em torno de 35%.

Sobre o equilíbrio entre gastos e receitas tampouco pode-se apontar uma situação incontornável. Na última década, a trajetória do gasto público cresceu acima do PIB, pois acompanhou o crescimento da arrecadação e dos salários. Já a arrecadação também cresceu acima do PIB, refletindo as melhoras no mercado de trabalho, com a redução do desemprego e aumento da formalização.

Se a atual mudança no cenário econômico impõe desafios para a continuidade do crescimento do gasto social, certamente há alternativas a serem discutidas. Uma pesquisa de Rodrigo Orair e Sergio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com dados da Receita Federal, mostra como a carga tributária contribui para perpetuar nosso cenário dramático de desigualdade de renda e aponta soluções para melhorar a distribuição de renda e a arrecadação.

No Brasil, 71 mil pessoas (0,3% dos contribuintes) concentram 14% da renda total dos declarantes. Essas mesmas famílias pagam apenas 6% de impostos sobre a sua renda total, já que essa renda é composta principalmente por lucros e dividendos, rendimentos isentos de imposto. Ou seja, no Brasil os ricos pagam muito menos imposto do que a classe média assalariada. Por isso, com a implementação de um imposto sobre lucros e dividendos, além da melhoria da progressividade da carga tributária, seria possível arrecadar em torno de R$ 50 bilhões para os cofres públicos, segundo estimativa dos autores.

Portanto, dizer que não há alternativa, que o ajuste é inevitável, que o gasto social é insustentável, como fazem alguns economistas, além de falso, é antidemocrático. Esse tipo de argumento configura um artifício retórico para defesa do livre mercado, de um pacto social individualista, da desconstrução do incipiente Estado de bem-estar brasileiro e da mercantilização dos serviços públicos. Nele, subordina-se o político ao técnico e o social ao fiscal, como se a democracia não coubesse no orçamento.

*Professor do Instituto de Economia da Unicamp e coordenador editorial do Brasil Debate


Comentários

Uma resposta para “A democracia não cabe no Orçamento”

  1. Avatar de Paulo Cezar de Mello
    Paulo Cezar de Mello

    É interessante acrescentar que essa defesa de um pacto social individualista (expressão um tanto esquizofrênica, pela contradição entre os próprios termos) caracteriza um pensamento centrado num eu incompatível com tudo que não seja esse eu. Assim, por natureza, tudo que esse eu conquista ou ganha deve ser mantido imperiosamente consigo, caso contrário ele estará sendo espoliado, roubado, violado. O ato de pagar impostos é apresentado como uma das formas dessa espoliação – um dinheiro que é meu mas que me obrigam a dar para quem não é eu. O ridículo impostômetro exposto numa rua do dentro de São Paulo talvez seja a melhor ilustração dessa cultura que insiste em pregar o desligamento entre o indivíduo e a sociedade em que esse indivíduo nasce, vive e se baliza em cada ato de sua vida.

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