Las travesuras de Monteiro Lobato

Em um sítio, ali bem perto de qualquer lugar do mundo, a avó apresentava uma nova interpretação do mundo para os seus netos, ajudada pela astúcia de uma boneca encrenqueira e pelo intelecto de um sabugo de milho personificado. Em cada assunto tratado, fosse História, Geografia ou mesmo Aritmética, eles – e todos os leitores, inclusive os que estão lendo este texto – eram transportados para o centro da questão. Bastava usar um pó mágico, o “pó de Pirlimpimpim”. Mesmo não contando com esse mecanismo utilizado pelos seus personagens, o próprio José Bento Monteiro Lobato também quis conferir in loco a realidade dos fatos em terras distantes, ou nem tão longes assim.

Igual à turma do Sítio do Picapau Amarelo que ele criou, esse “Jeca”, nascido em Taubaté, interior de São Paulo, foi levado à Argentina. Só que no seu caso, o intuito não era desembarcar no centro do problema, e sim sair dele. Em uma espécie de autoexílio ou ano sabático, quis deixar para trás um país onde vinha sendo calado pela ditadura e perseguido pela defesa do seu avançado conceito de “brasilidade”. E encontrou do outro lado da fronteira um lugar que por 20 anos ele só tinha conhecido no papel, pelas páginas de livros, revistas e de muitas cartas.
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A aproximação de Lobato com os argentinos coincidiu com a época em que ele estava no comando da Revista do Brasil e procurava dar espaço a talentos desconhecidos do leitor nacional, como era o caso dos escritores do país irmão. “Pela rezenha que me fez da literatura Argentina, vejo que é de fato menos rica que a nossa; mas vejo também que, acompanhando o progresso geral do paiz, está em plena florescencia. Inda ha pouco recebi um livro de versos de Julio Usandivaras, que achei interessantissimo, e do qual no proximo numero da nossa revista falarei na bibliographia, abrindo assim uma seção argentina” (sic). A carta, de novembro de 1919, foi dirigida a Manuel Gálvez, consagrado escritor realista de tendências naturalistas e que, formado em Direito como Lobato, tomou o caminho jornalístico, colaborando com veículos da grande imprensa nacional e editando a revista Ideas.

VERSÃO ESPANHOLA
Dona Benta Doña Benita
Tia Anastácia
Tía Nastacia ou Anastasia
PedrinhoPerucho ou Pedrito
Emília Emilia, Marquesa del Rabito
Sítio do Picapau Amarelo Quinta del Benteveo Amarillo ou Quinta del Párajo Carpintero
Saci El genio del bosque
Dr. CaramujoDoctor Caracol
Lúcia, a menina do narizinho arrebitado (Narizinho) Lucía, la niña de la naricita respingada (Naricita)
Marquês de RabicóMarqués del Rabito ou Conde de Rabicó
Visconde de Sabugosa Vizconde del Marlo ou Vizconde de la Mazorca

A partir daí, e durante as três décadas seguintes, Lobato fez circular e publicar de norte a sul do Brasil obras enviadas por escritores latino-americanos, principalmente argentinos, da mesma maneira que seus textos ganharam as páginas de fortes publicações como as revistas Nosotros, Atlántida, PlusUltra e Caras y Caretas, e os jornais La Prensa e La Nación. “(…) vou lançar para o anno uma Colleção América para obras traduzidas, e nella darei Facundo, Quiroga, Lynch, Gálvez e outros. Os contos do Quiroga diz-me Garay que estão traduzidos, mas não os vi ainda. Recebi Atlántida com boa noticia critica” (sic), contou em novembro de 1921 para Gálvez.

Entre as pessoas mencionadas, Lobato manteve intensas trocas de cartas com o escritor e diplomata Horacio Quiroga, nascido no Uruguai, mas que fez fama depois de se mudar para a Argentina. Trocou cartas também com seus tradutores, Benjamin de Garay (maior tradutor e articulador da literatura brasileira entre as décadas de 1920 e 1950) e Juan Ramón Prieto, espécie de difusor das suas obras antes de o escritor desembarcar na Argentina e que chegou a ser sócio de Lobato em uma editora quando este se instalou no país.

Em 1921, comentou com Gálvez sobre seus planos para o ano seguinte: “É possivel que em Janeiro ou Fevereiro eu vá com o Garay ate ahi, passar uns quinze dias. Depende, porém, de haver folga no serviço” (sic). O motivo de repetidas postergações parece ser a falta de tempo, já que Lobato chegou a delegar o comando da Revista do Brasil para liderar uma fase de expansão, como editor de livros. Mas em cartas posteriores, quando o Lobato empresário está prestes a pedir falência, comentou: “O negócio não é fácil, mas um dia farei a experiência”.

Mais tarde, o projeto de mudança de país foi a desculpa do governo ditador de Getúlio Vargas para justificar sua prisão, que na verdade se relacionava a uma fervorosa defesa do petróleo nacional feita por Lobato. “Escrevi a v. de muitos lugares, mas nunca imaginei fazê-lo duma prisão. (…) Já estou detido há doze dias – ‘preventivamente’ – pelo crime de haver pensado em mudar-me para Buenos-Aires. Quer dizer que os dirigentes de hoje não admitem que um cidadão pense em ares bons” (sic), revelou ao tradutor Garay, quando estava na Casa de Detenção de São Paulo, em 2 de abril de 1941, onde passou três meses.

No ano seguinte, seus projetos além fronteira já tomaram uma nova forma. Ideia de ninguém menos que a inquieta boneca Emília, como revela ao amigo e alterego Godofredo Rangel. “A ultima da pestinha está me dando dor de cabeça. Imagine que encasquetou conhecer a história da America ‘auto-contadamente’” (sic).

Só faltava mesmo o escritor ir ao país, porque depois de seus contos e livros para adultos, a turma do Sítio já tinha se instalado na Argentina – e de lá tinha saído para muitos outros países da América Latina. Primeiro, em 1937, quando o jornal La Prensa lança em folhetim D. Quijote de Los Niños. Além de toda a coleção infantil publicada pela Editora Americalee, um ou vários dos seus livros também foram publicados pelas casas Claridad, Codex (em forma de “livros de montar”), Perseu, El Ateneo e Losada – que atualmente está relançando a coleção do autor.

As cartas trocadas com Ramón Prieto são testemunho de toda essa atividade comercial. “Prieto esteve à frente, durante os anos 1940, das negociações da publicação das obras lobatianas em espanhol e trabalhou em algumas dessas editoras. Quando ele trocava de emprego, levava consigo os direitos de publicação de Lobato, o que fragmentou a publicação dos seus livros”, expõe Thaís de Mattos Albieri, pesquisadora e doutora em letras pela Unicamp com a tese São Paulo-Buenos Aires: a trajetória de Monteiro Lobato na Argentina.

Quando Monteiro Lobato chegou ao país em 8 de junho de 1946, foi anunciado pela imprensa e disputado por escolas e eventos culturais. “Vamos ter no dia 25 (de setembro) a ‘Semana Monteiro Lobato’ no Harrods, que é um Mappin em ponto grande que há aqui”, contou à sobrinha Gulnara. E, em outra ocasião, comentou: “Vamos ter a Exposição do Livro Brasileiro, promovida pela embaixada, de 20 de outubro a 20 de novembro, na qual o tal Lobato abafa a banca, pois se apresenta com 80 livros (…). Quer dizer que teu tio Juca entrou cá com o pé direito e vai indo muito bem”.

Apesar da agenda cheia e de já contar com uma intensa circulação no mercado argentino, não demorou muito para o espírito empreendedor despertar mais uma vez no dono da Quinta del Benteveo Amarillo (versão para o Sítio do Picapau Amarelo). “Sinto-me na rua, desempregado, sem ter o que fazer e com saudades do trabalho”, exagerou em carta ao amigo Artur Neves. Resultado: entrou para a sociedade da editora Acteón ao lado de Ramón Prieto, Miguel Pilato e Manuel Barreiro.

Nessa proposta, foi incluído o seu único livro escrito em espanhol para a sociedade local, intitulado La Nueva Argentina, que explicava às crianças o Plano Quinquenal do presidente Perón por meio de uma conversa entre um pai e dois filhos. Apesar de assinar com o pseudônimo Manuel P. García, logo chegaram ao Brasil notícias de que seu novo livro era sucesso de vendas, e o polêmico Lobato passou a ser acusado pela imprensa brasileira de ter se vendido ao governo argentino. Ele se defendeu em carta à redação: “Não se trata de nenhum negócio escuso ou inconfessável. Trata-se de um escritor livre, libérrimo mesmo, que só diz o que pensa e escreve o que quer, onde quer que esteja”.

Essa aproximação com o peronismo, que era combatido pelas principais figuras dos campos literário e acadêmico, parece ter afetado a sua presença na Argentina. “Seria interessante indagar até que ponto essa adesão direta à ‘era do peronismo’ também contribuiu à retirada das obras dele do mercado nacional”, comentou o autor de Traducir el Brasil, Gustavo Sorá, sobre o fato de, uma década depois, seus livros já estarem escassos no país. Com polêmica dentro e fora da Argentina, Lobato retomou os planos de percorrer a América Latina, seguindo para o Peru, onde já podia imaginar a Emília arrancando “da boca do Aconcágua” uma autêntica lição de história da região e também uma “erupçãozinha própria para menores”.

A saudade dos amigos, as dificuldades com o idioma (que no começo o divertia), a vitória do Partido Comunista nas eleições estaduais de São Paulo, com Ademar de Barros, e a fragilidade que vinha sentindo na saúde levaram o escritor a passar antes pelo Brasil. “A novidade aqui em casa é que projetamos uma estadia no Peru e no México… e vamos para o Brasil!”, avisou animado ao amigo Rangel.

De volta a São Paulo, em 6 de junho de 1947, mais uma vez em sua trajetória profissional, Monteiro Lobato deixou um rastro de produtividade, de bons e maus negócios, além de contas pendentes. Mas o que seria apenas um pit stop para recarregar energias antes de continuar com o roteiro latino-americano, terminou sendo a parada final de Lobato. Um derrame cerebral aos 66 anos de idade, em 4 de julho de 1948, não permitiu que o escritor retomasse esse ou qualquer outro projeto.

LOBATO RENASCE NA AMÉRICA LATINA

Depois de décadas longe das vitrines e em escassez até mesmo nos sebos, as obras de Monteiro Lobato voltaram ao mercado argentino e de outros países da América Latina.

A Editorial Losada relançou em maio Las Travesuras de Naricita, com tradução de Juan Ramón Prieto (que passou por revisão de estilo) e ilustrações do brasileiro Paulo Borges. A iniciativa contou com o prefácio de ninguém menos que a presidente Cristina Fernández de Kirchner, que se mostrou grande leitora e admiradora do escritor brasileiro. Em julho, chegou às livrarias Las Nuevas Travesuras de Naricita, e outros seis livros estão programados para compor a coleção.

“Essas edições não foram reeditadas por anos, porque vários títulos foram ficando desatualizados na sua temática e na ilustração. Com as mudanças na condução da empresa, nos pareceu que podíamos reeditar as histórias e relatos que nunca perdem a atualidade e são muito educativos e didáticos para o mundo infantil”, explica José Juan Fernández Reguera, presidente da editora.

Trechos de cartas transcritas com base na tese acadêmica de doutorado da pesquisadora Thaís Albiere de mattos, da Unicamp (SP).

Benedito Nunes, o iluminista dos trópicos


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