A constante veiculação e a comercialização da saúde e produtos a ela relacionados na cultura ocidental estão configurando um novo fenômeno. É o “healthism”, a doença da saúde, um imperativo moral de constante autopreservação em prol de um corpo mais saudável, mais bonito – e, de preferência, magro. O termo não é novo, mas seus “sintomas” foram compilados recentemente em um artigo no Journal of Social Policy Studies.
O healthism, no entanto, não está ligado somente aos padrões almejados pela tríade beleza-saúde-fitness. Já citado desde a década de 1980, o termo aparece em artigo de Departamento da Ciência Política da Universidade de Chicago atrelado à noção de despolitização da saúde.
Segundo os autores, a modernidade passou a entender a saúde no seu aspecto individual – e não no público. Para ter saúde, então, basta que o indivíduo, sozinho, invista na sua própria saúde e que, de preferência, se diferencie dos demais por isso.
No artigo do Journal of Social Policy Studies, o healthism tem Angelina Jolie como sua representante. A atriz, como muitos acompanharam, chegou a retirar as duas mamas e os ovários porque havia chances de que pudesse vir a ter câncer (chance elevada e comprovada por teste genético).
O texto não aborda o caso da atriz especificamente, mas recorre à sua imagem para aproximar e popularizar uma noção de medicina preventiva que, se levada ao extremo, pode conduzir a uma neurose e na estigmatização de estilos de vida considerados não saudáveis. Uma das inúmeras definições de neurose, segundo o International Dictionary of Psychoanalysis (Mijolla, 2005), é um tipo de ansiedade ou distúrbio causado pela dificuldade de lidar com a realidade, seja por algo que foi reprimido, seja porque algo é inalcançável.
A medicina preventiva, segundo Evgenia Golman, autora do artigo, ao mesmo tempo em que certamente leva a um bom prognóstico e previne enfermidades, também pode levar à prevenção de doenças que são meramente hipotéticas.
Na onda da medicina preventiva, esse “cálculo de risco” pode ser aproveitado de maneira inadequada, por exemplo, por toda uma nova indústria que pode levar muito dinheiro surfando nessa neurose, sem necessariamente dar um retorno objetivo – de mais saúde, especificamente falando.
A estigmatização
As práticas de saúde , segundo a autora, também têm sido usadas para situar o indivíduo socialmente. Tem mais status quem está mais engajado em práticas saudáveis. Também há “uma avaliação moral de um indivíduo em função da sua participação em certas práticas [de um estilo de vida saudável]”, escreve Golman.
O tema não está só na academia. Na rede social Reddit, há um tópico sobre o healthism, que tem como gatilho para a discussão um programa de TV. Nele, uma mulher com sobrepeso debate com um treinador. O ponto central do vídeo é a gordofobia (a presunção de que uma pessoa não é saudável por ser gorda). Aqui, na Saúde!Brasileiros, já debatemos o tema. Nesse artigo, vemos como a gordofobia se conecta com o healthism – já que muitos parâmetros de saúde tem como base o IMC (Índice de Massa Corporal)- mas o tema não se encerra aqui e é para lá de controverso…
Paradoxos
Para provocar um pouquinho essa controvérsia, vale olhar para a dicotomia presente entre escolha individual e saúde pública. Dois comentários no Reddit exemplificam o paradoxo que envolve o healthism. Muitas das questões trazidas pelo healthism passam também pelo quanto um hábito saudável, embora seja uma escolha individual, só tenha consequências para o indivíduo ou para a saúde pública como um todo.
“Claro, se algumas pessoas não são saudáveis, isso não afeta as demais. No entanto, quando uma percentagem suficientemente grande da população está com sobrepeso ou obesidade, isso afeta os outros. Eles consomem mais, poluem mais, e colocam uma carga mais pesada no sistema de saúde. Fumar é um outro exemplo que afeta os outros. Nem todos, mas muitos fumantes fumam em lugares onde não-fumantes têm que respirar o mesmo ar e muitos também jogam suas bitucas na rua.”
Outro usuário, então, responde:
“Tudo bem, mas o meu ponto é que não devemos sair por aí dizendo às pessoas como viver suas vidas. Mesmo se toda a população fuma (eu estou perfeitamente de acordo com a proibição em determinados locais), desde que eles compreendam e aceitem os riscos, a escolha é deles. Eu acho que as pessoas ficam muito irritadas com a saúde de outras pessoas. Eu posso discordar da decisão de alguém, mas isso não vai me fazer ficar tão exaltada como alguns ficam.”
É possível evitar uma crítica moralista?
Uma ressalva a se fazer é não cair em uma crítica moralista dessa busca pela saúde. No livro “O Corpo Incerto” (2008), Francisco Ortega, nos ajuda a compreender melhor esse fenômeno. Segundo ele, falar que uma preocupação extrema com a saúde é ceder à sociedade de consumo, ou que o aspecto é patológico porque há uma busca pela dor (como cirurgias plásticas e excesso de exercícios) é simplista. Não dá conta da complexidade do assunto e nega experiências subjetivas do corpo.
Para destrinchar o tema, autor estabelece uma distinção entre corpo vivido e corpo objetivo. O primeiro trata da experiência subjetiva do corpo, aquele que eu tenho e acredito que seja o melhor para mim. O segundo trata desse corpo da medicina, o do organismo vivo, que atualmente é alvo de medidas para prevenção de riscos.
Após a diferenciação dessas duas dimensões dos corpos, Ortega aponta, de maneira bem simplificada aqui, que a exposição à dor e a riscos é uma tentativa de trazer de volta a experiência subjetiva do corpo, que foi bloqueada pela medicina.
Esse argumento de Ortega remete ao artigo da Universidade de Chicago, a despolitização da saúde. Se queremos combater o aumento da obesidade, por exemplo, porque se tornou um problema de saúde pública, será que a via é pela individualização e pelo estabelecimento de um corpo ideal? Ou o caminho, talvez, seja diminuir a oferta de alimentos doces nas escolas, por exemplo?
Colocar um ideal de um corpo objetivo (o magro, o super saudável) não seria um combustível para a neurose, já que o corpo subjetivo é o único possível, o único real?
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