A retirada de um tumor no cérebro aos 13 anos que, embora benigno, por pouco não atingiu o sistema ocular e interrompeu a visão. Um Acidente Vascular Cerebral (AVC) dois anos depois, que calou por dias a voz, paralisou todo o lado direito do corpo e deixou sequelas ainda hoje combatidas. Em seguida, a retirada de quase todo o intestino grosso para se prevenir dos efeitos violentos de uma síndrome de nome complicado, capaz de criar mais de mil – isso: mais de mil – pólipos nesta área do corpo e com alta potencialidade de resultar em câncer. E por fim, em meio ao combate múltiplo e altivo desses ataques do destino, a descoberta de que o tumor, aquele do cérebro, voltou em parte, passando a ser enfrentado com medicamentos. Diante de um histórico médico como esse, é compreensível que o mais otimista dos seres humanos vincule o seu dono ao sofrimento.
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Mas a velocista e saltadora em distância paulista Verônica Hipólito, 19 anos, promessa maior e musa do atual movimento paralímpico brasileiro, tira logo a conversa desse caminho de lamúrias. “Nada disso! Nunca fui de reclamar da vida ou chorar pelos cantos. Não tive, não tenho e jamais me darei tempo para sofrer ou reclamar da vida”, agiganta-se a morena esguia de fala doce e sorriso farto. “Nesse período, entre uma recuperação e outra, tratei de ganhar medalhas e me preparar para chegar às Paralimpíadas do Rio no melhor da forma, na ponta dos cascos. Se as forças divinas quiserem, quero sair de lá com ouros e recordes”, completa. Os Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro 2016 serão realizados entre os dias 7 e 18 de setembro.
Com seu otimismo e valentia, disfarçados no corpo esguio de 1,61 metro de altura e 49 quilos, Verônica dá a sensação de fazer qualquer situação de risco parecer obra do cotidiano em sua vida pessoal. Sempre em grau raro de firmeza e destemor, seu discurso deixa constrangido quem costuma transformar em dramas os apertos financeiros da vida ou os percalços nas relações pessoais. “Verônica é extremamente carismática. Na pista, é concentrada, quase agressiva. No dia a dia, ao contrário, é doce, simpática e meiga. Consegue trazer um clima bacana ao Time Brasil. Não por acaso, ganhou muitos “pais” no meio paralímpico, a começar por mim. Todos brincamos que gostaríamos de ter uma filha assim”, declara à Brasileiros o presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), Andrew Parsons. “Ela sabe aliar desempenho na pista e provas de salto a todo esse carisma. Além disso, é uma moça bonita. Então, possui muitos atributos que podem fazer com que empresas importantes se interessem por ela, o que, por sinal, vem acontecendo. Basta ver seus patrocinadores. Vejo nela um potencial para ser ‘vendedora’ do movimento paralímpico brasileiro. Dessas que a gente gosta de ter, vencedoras dentro e fora da pista, exemplos de superação”, acrescenta o presidente. Com 18 medalhas e seis recordes brasileiros e sul-americanos, Verônica é patrocinada por várias marcas, entre elas Coca-Cola e Nike. (Leia em A musa no pódio e Fábrica de medalhas)
Filha caçula de dois professores de História do ensino médio, nascida em São Bernardo do Campo, cidade da região metropolitana de São Paulo próxima a Santo André, onde vive, Verônica começou seriamente no esporte em 2006, aos 10 anos, praticando judô na escola em que cursava a quinta série do ensino fundamental. Antes, tinha sido goleira em disputas esporádicas de futebol e futsal na escola. Tudo correu bem nos três primeiros anos. Apesar de muito leve, o que inicialmente poderia ser encarado como um ponto negativo, a menina mostrava agilidade além da média para se esquivar de golpes, característica elogiada pelos professores.
O primeiro grande adversário imposto pelo destino foi descoberto em 2009, aos 13 anos, três anos depois do início nos tatames, numa consulta de rotina com uma ginecologista. Um dos exames de sangue pedidos pela médica acusou uma quantidade excessiva de prolactina, hormônio produzido pela glândula hipófise, situada na base do cérebro, que, entre outras coisas, estimula nas mulheres a produção de leite. O problema: porções acima da média de prolactina no organismo podem denunciar também a existência de alguma irregularidade na própria hipófise ou mesmo na estrutura cerebral.
Desconfiada, a ginecologista encaminhou a atleta a um hematologista, que, por sua vez, a colocou no caminho de um neurologista. Após nova bateria de exames, incluídos alguns de imagem, a preocupação da médica teve motivo comprovado: Verônica tinha um tumor benigno, mas perigoso, na cabeça, e a cirurgia era necessária. “Ele sangrou e suas partículas por pouco não afetaram meu sistema visual e me deixaram sem visão”, lembra a jovem. “O cirurgião disse no retorno da consulta: ‘Precisamos operar com rapidez’. E começou a folhear a agenda. Era uma terça-feira. Imaginei que a tal ‘rapidez’ significaria o prazo de um mês, 45 dias, uma coisa assim. Aí ele vira e manda: ‘Que tal na próxima sexta-feira? Ou você prefere sábado?’ Dei uma risada e disse: ‘Vamos no sábado, dia mais folgado, mais tranquilo…’ Eu rindo, ele com um sorriso um pouco amarelo e minha mãe quieta, mas em tempo de ter um troço”, diverte-se. A cirurgia foi realizada com sucesso em novembro de 2009. “Consegui ir para casa em menos de uma semana após a cirurgia e me recuperar bem em pouco tempo.”
Até então, Verônica ainda lutava judô nos moldes olímpicos convencionais. A prática duraria até uma noite de meio de março de 2011. Verônica estava sentada em uma das cadeiras da mesa da cozinha do sobrado em que mora com os pais, em Vila Pires, bairro de classe média de Santo André, quando sentiu um “tranco” e um “formigamento” no lado direito da face. Tentou gritar o nome do irmão único, Otávio, um ano mais velho, que estava em seu quarto, no segundo andar da casa (o pai, José Dimas, e a mãe, Josenilda, estavam fora, dando aula), mas a voz não saiu. “Estava estudando muito em casa naquela fase, entrando nas madrugadas com os livros. No primeiro instante, pensei que fosse algo mais leve, resultado de uma estafa ou coisa parecida”, diz.
Verônica começou a ficar preocupada à medida que os minutos passavam e ela não recuperava a voz. Em minutos, o formigamento desceu por todo o corpo, sempre pelo lado direito, paralisando os movimentos do braço e da perna. Ela tentou gritar novamente, mas percebeu que o som não saía. Começou a dar socos fortes na mesa com o punho esquerdo até que o irmão desceu. “Ao ver a cena, ele achou que era brincadeira minha e começou a rir, sem tomar qualquer atitude”, conta ela. “Só algum tempo depois se convenceu de que meu estado era grave e chamou meus pais. Aí eu perdi os sentidos. Só acordei no hospital. Tudo durou uns dez minutos até eu apagar.” Acordou com um lado do corpo ainda congelado e o diagnóstico surpreendente: aquela menina de apenas 15 anos e hábitos totalmente saudáveis havia acabado de ter um Acidente Vascular Cerebral (AVC).
A maior parte dos movimentos de Verônica voltou semanas depois com os tratamentos e a disciplina da atleta. Mas algumas sequelas resistiram ao tempo e aos cuidados. A fala “em soquinhos, gaguejando”, foi praticamente toda corrigida com fonoaudiologia. As sessões de fisioterapia também geraram ótimos resultados, mas a atleta ainda sente dores no pé e na perna direitos, os atingidos, e tem dificuldade para controlar os movimentos da mão direita. Nos primeiros meses de recuperação, quando o problema era mais evidente, a mão direita quase sempre procurava a região do peito na contração involuntária dos músculos. Ferida caprichosamente em sua vaidade, Verônica passou a usar exclusivamente blusas de manga comprida de tamanhos bem maiores do que o dela mesmo nos dias mais quentes do ano. Dessa forma, escondia a mão direita – e seus movimentos parcos – no que sobrava de braço e punho da roupa.
O novo plano de recuperação, para o AVC, incluía uma determinação cruel: esquecer o judô como esporte de rendimento. Meses depois, vendo a filha amuada, o pai, José Dimas Hipólito, corredor de longa distância na juventude, inscreveu Verônica, sem avisá-la, num festival de atletismo de um clube local. Antes da largada, Dimas disse a ela: “Você poderá fazer o trajeto em nove segundos, noventa segundos, nove minutos ou nove horas. Não importa. Vá lá, faça seu melhor e analise depois”. Eram oito meninas. Verônica chegou em quarto. Gostou da experiência, menos do resultado e menos ainda de não ter tirado do coração naquele momento o judô amado. A alma e o sangue de competidora falaram, no entanto, mais alto. “Na hora só pensei o seguinte: não quero saber o que as três que chegaram à minha frente fizeram para me vencer. Meu problema, daqui para a frente, será descobrir o que vou fazer para chegar à frente delas e de quem eu puder.”
O atletismo estava adotado. Em abril de 2012, Verônica foi à sede esportiva do Serviço Social da Indústria de São Paulo (Sesi-SP) à procura de Daniel Biscola, um dos técnicos de atletismo do grupo. Era dia de folga de treino e, para piorar, Verônica chegara no final da tarde. Mesmo assim, não se intimidou: “Vim fazer meu teste”, disse ao técnico. “Ele ficou me olhando assim, como se não tivesse entendendo, mas, surpreendido pela ousadia daquela adolescente, aceitou fazer.” Experiente, Biscola percebeu algo estranho: “O que você tem no braço e na perna?”. Verônica tentou driblar o técnico com respostas evasivas, mas não adiantou. “Ele foi sério e carinhoso. Explicou que meu perfil, a partir de então, estava totalmente ligado ao esporte paralímpico. E me conscientizou da importância de seguir aquele caminho. Foi, sem dúvida, uma das pessoas decisivas em minha nova trajetória”, reconhece.
A carreira paralímpica de Verônica, que logo se revelaria cheia de resultados brilhantes, estava iniciada. E tomou um embalo definitivo – não sem antes sofrer mais um “ataque” do destino. Meses atrás, em 2015, a atleta retirou praticamente todo o intestino grosso em outra cirurgia. Descobriu ter uma síndrome de nome esquisito e alto potencial de devastação física: a síndrome de Polipose Adenomatosa Familiar. Trata-se de uma alteração genética hereditária capaz de gerar centenas ou até mais de mil pólipos no intestino grosso, na maioria dos casos entre a adolescência e o início da idade adulta. Em quase todos os pacientes, a solução final costuma ser a retirada do intestino grosso e o reto do paciente antes dos 25 anos, a tempo de não dar mais chance do que se deve ao azar. Foi o caso de Verônica.
A cirurgia foi feita com sucesso e, uma vez mais, Verônica se recuperou bem, com a força e a coragem de sempre. Mais motivada do que nunca, ela espera confirmar participação no maior número possível de disputas na Rio 2016 nas últimas provas classificatórias até os Jogos. “Muita gente me acha madura, mas não sou tudo isso. Quando a água bate no bumbum, há duas saídas: nadar ou se afogar. Eu apenas decidi que prefiro nadar”, brincou recentemente com os repórteres Helena Rebello e Marcos Guerra, do Globoesporte.com.
Após três horas de entrevista e sessões de fotos, Brasileiros quis saber de Verônica o que ela considera seu maior ganho em meio a tantos que o esporte proporcionou, do dinheiro e bens materiais às medalhas. “Quer saber? Ganhar novos amigos e ídolos, viver melhor com minha família e voltar a mostrar minha mão direita sem qualquer incômodo, sem qualquer bloqueio, para quem quiser ver”. Relaxe, campeã: ela é bonita, ela é bonita…
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