Verdade setentrional

Em agosto de 1971, a revista americana – então jornal quinzenal – Rolling Stone trouxe Keith Richards na capa. Nas 13 páginas dedicadas ao guitarrista de cabelo arrepiado, barba por fazer e dentes podres, ele provava por “a + b” que sua banda, os Rolling Stones, não se resumia a uma imagem rebelde. Eram mesmo terríveis. Sua descrição de como Brian Jones tirava dinheiro de homossexuais idosos para pagar sanduíches para Keith, Mick Jagger e ele próprio, deixando as vítimas na neve, do lado de fora da lanchonete, está mais para Jean Genet do que para Charles Dickens. Décadence sans élégance.

Já em Vida, alentada autobiografia escrita com James Fox, o guitarrista, que completou 67 anos no dia 18 de dezembro, se mostrou mais comedido. Na orelha do livro, vem impresso, pelo menos na edição americana, seu autógrafo com a mensagem: “Esta é a vida. Acredite ou não, eu não esqueci nada dela“. O que já conta ponto. A maioria de seus pares, em termos de sexo, drogas e rock’n’roll, invoca crises de amnésia se o assunto fica espinhoso. E como estamos cansados de saber, Keith é louco, mas não é bobo. Salta aos olhos a importância que “Catarina” dá à amizade – o apelido surgiu não se sabe quando e é contraponto para “Brenda”, codinome de Jagger. Quando conheceu Brian Jones, este, apesar dos 17 anos, tinha filhos com mulheres diferentes, mais de dois pelo menos. E a partir desse aparente descaso com os outros, a começar pelas mulheres, Keith vai descrevendo o desmonte da personalidade de Jones, justamente quando as drogas iam chegando com tudo. O processo culmina com Keith indo morar com o casal Brian-Anita Pallenberg e tomando a anfitriã do amigo. Amigo?
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Amigos aos montes. Keith lamenta muito a morte de dois deles. Ian Stewart, o pianista da formação original que não pertencia ao grupo por ser feio, e Gram Parsons, o americano que levou o country para a música dos Stones. O saxofonista Bobby Keys, o baterista Steve Jordan, da banda paralela de Keith, The X-pensive Winos, são declarados amigos eternos. Nem todos os caminhos levam a Jagger.

“Brenda” e “Catarina” se conheceram ainda novos. Eram vizinhos, crianças, mas já gostavam de rock e blues. Até o meio do livro, as citações são frequentes, mas formais, quase burocráticas. “Éramos praticamente irmãos.” “Tínhamos exatamente o mesmo gosto musical.” “Sabíamos o que tocar e o que não tocar”, não mais que isso. Quando La Pallenberg filma Performance (1970) com Jagger, e acaba tendo um caso com o bocudo, a coisa muda. Keith revê o que fez com Brian e gasta páginas analisando seu amigo de infância. O mesmo acontece quando Gram Parsons volta aos Estados Unidos, aparentemente humilhado por Jagger, que chegou a cantar sua mulher. Logo em seguida, Parsons morreu de overdose, teve o corpo sequestrado por amigos que realizaram seu desejo de ser cremado em Joshua Tree, na Califórnia, e virou lenda. Mas a barra pesa mesmo quando Jagger diz que não vai excursionar para divulgar o álbum Dirty Work (1986). O disco foi gravado por Bill Wyman, Charlie Watts e Ron Wood, sob a batuta de Keith que aparece no centro da capa, rodeado pelos outros – incluindo Mick. Segundo Keith, “foi a Terceira Guerra Mundial!”. Deve ter sido mesmo, porque Jagger excursionou pelo Japão com Jeff Beck que, a exemplo de outros guitar heroes da geração de Keith, não é sequer mencionado no livro.

Ah sim, e tem as mulheres. Desde Haleema Mohamed, a paixão adolescente, até Patti Hansen, sua mulher há 28 anos, mãe de Alexandra e Theodora – com Anita, Keith teve Marlon e Angela, e o casal perdeu o terceiro filho, Tara. Há outras mulheres, muitas histórias. Tipo, os Stones no início eram muito próximos dos negros americanos que tinham invadido a Inglaterra. De Muddy Waters ao trio pop feminino Ronettes, as negras de quem Amy Winehouse roubou o penteado. Keith caiu de amores por Ronnie Bennet, a líder. E foi correspondido. Ocorre que Ronnie logo assumiu o nome de casada, Spector. Virou mulher do lendário produtor Phil Spector, sim, aquele cara que vivia dando tiro na sombra e atualmente cumpre pena por homicídio. Keith confessa que temeu pela vida, mas é amigo dela até hoje.

É muito curioso o relacionamento de Keith, filho único, com os pais. Bert e Doris eram muito divertidos, viviam plantando bananeira, pulando sela e fazendo polichinelos mesmo depois de adultos. Mas quando Keith era pequeno, Doris arrumou outro marido, Bill. E Bert foi morar sozinho. Keith só foi reatar com ele nos anos 1990. Isso fica muito mais curioso porque, quando fala de Jagger, Keith diz que o colega é difícil porque não consegue parar de ser Mick Jagger o tempo todo e que “talvez isso seja a mãe que existe dentro dele”, afirma. Não entendi muito.

Ah, sim, outra vez. Antes que alguém pergunte, Keith fala sobre trocar o sangue e cheirar as cinzas do pai. Verdade? Mentira? Aí, tem de comprar o livro para saber. Fica mais divertido.

» Vida, Keith Richards (com organização de James Fox), Editora Globo, 640 páginas

Pedras rolantes


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