Studies of Tom Zé: Explaining Things So I Can Confuse You – caixa que reúne versões em vinil dos álbuns Estudando o Samba, Estudando o Pagode e Estudando a Bossa: Nordeste Plaza – acaba de ser lançada nos Estados Unidos e vem causando grande repercussão. A convite da Brasileiros, o crítico americano Robert Christgau assina um entusiasmado artigo sobre a caixa, que ganhou nota máxima na revista Newsweek. Confira também resenha do show feito pelo artista no final de dezembro, em São Paulo

Estudando Tom Zé
A caixa Estudos de Tom Zé: Tô Te Explicando Para Te Confundir tem como base três versões de vinis remasterizados da série Estudando. Tratam-se de “estudos” relativos ao samba (Estudando o Samba, 1975), ao hiper-romântico samba, conhecido como pagode (Estudando o Pagode, 2005), e à bossa nova (Estudando a Bossa, Nordeste Plaza, 2008). O upgrade do áudio é impressionante. Em especial no primeiro e excelente disco Estudando o Samba – lançado nos Estados Unidos com o título Brazil Classics 4: The Best of Tom Zé: Massive Hits. Se o aperfeiçoamento tecnológico e alguns extras valem os 70 dólares, escrevo esse texto com a mesma finalidade planejada pela gravadora Luaka Bop ao lançar a caixa: fazer com que o público perceba em Tom Zé um artista merecedor de sua atenção e entusiasmo, de sua diversão e encantamento.

Onde quase todo o pop brasileiro cultiva a suavidade, Tom Zé é áspero, mostra arestas, é peculiar e ruidosamente avant-garde. No entanto, ele nunca sacrifica a melodia ou ignora a levada rítmica (groove)e sabe fazer um gancho (hook) sonoro, como convém àquele que compôs um jingle e diz não haver tesouro cultural que se equipare à perenidade de uma peça de folclore. Não há ninguém como ele. O vagamente semelhante Captain Beefheart é, comparado a ele, um grande e petulante bebê. Tom Zé é muito mais amável, mais sábio, mais são.
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Por razões que entendi melhor desde que a caixa de Tom Zé me inspirou a finalmente ler Verdade Tropical – as memórias críticas de Caetano Veloso -, a música brasileira não se entrosa muito bem com o rock’n’roll e, nos Estados Unidos, ela atrai principalmente fãs de jazz. Uma ligação que começou por volta de 1958, com a invenção da bossa-nova por João Gilberto – que fez do samba uma “coisa nova” sofisticada, ao tornar mais complexos seus acordes, suavizando as batidas e murmurando os vocais. Veloso adora Gilberto: “A música popular é a forma de expressão brasileira por excelência”, declara esse letrado compositor. “João assume a instância da música popular como determinante de nossa verdade dada e criável.” Em contraste, o pop que os ianques estavam “rocking around the clock“, nos anos 1950, era “demasiadamente simples”, “sem originalidade”, com um toque prostibular. Caetano defende que onde a bossa-nova fizera acordes pouco usuais, a Tropicália misturou acordes maiores, de maneira ainda mais estranha. Com Tom Zé, ela trata de justapor acordes incomuns para que eles se movam, de maneira inteligente e funcional, em ritmo de samba. Tom Zé vem inventando instrumentos desde os anos 1970, incluindo um sampler primitivo, com frequências de rádio gravadas, chamado Hertzé, e um kazoo (instrumento de sopro) feito com folhas de fícus, árvore encontrada em toda a cidade de São Paulo. Talvez por ter crescido em uma cultura consideravelmente mais oral e “primitiva” que a da maioria dos brasileiros, ele usa a vanguarda para, com ela, conferir toques à tradição, e não o contrário.

Voltar a mergulhar nos discos de Tom Zé foi ainda mais revelador e prazeroso do que poderia ser. Considero todos eles nota dez, mas os únicos que não ficaram ainda melhores nessas novas audições foram os dois primeiros – que já tinham se convertido em favoritos da vida inteira em uma fita cassete que levei comigo em consecutivas férias – especialmente Estudando o Samba. Gravado quando Tom Zé tinha cerca de 40 anos, ele mina seu início como violonista e cantor de crônicas sobre Irará. Sua voz ainda é suficientemente maleável para adoçar suas canções, embora ele nunca elimine o que Veloso descreve como: “Suas observações mal-humoradas, interpretadas num sotaque rural que mais revela do que obscurece a elegância clássica de seu português educado e correto”. O minimalismo de Zé toma a frente em títulos como Mã, Hein?, Dói, Vai e . A percussão excêntrica – um dos efeitos envolve um liquidificador! – sempre mantém a batida. Mas o disco gruda na mente de maneira mais vívida por meio dos riffs que fundamentam Mã, Nave Maria e Augusta, Angélica e Consolação – as duas últimas, faixas adicionadas por Byrne na versão americana. Quanto à maneira como o samba é estudado, meu entendimento é tão rudimentar que só posso dizer que sei que eu o amaria ainda mais se entendesse as referências dispersas nos acentos rítmicos.

Estudando o Pagode é uma opereta-samba sobre a opressão da mulher, com coros femininos e muitos pontos altos – do coro grego, formado por personagens de cartum recitando a Ave Maria no início, até a cancão final Beatles à Granel. Minha música favorita, situada na Cena IV-Desfile Gay-Lésbico, chama-se Elaeu, uma fusão muito tomzeniana de “ela” e “eu”. Esse é um álbum feito de círculos concêntricos e vivo procurando pretextos para tocá-lo novamente.

Como convém ao tema, o novo Estudando a Bossa é mais leve e mais imediato, com suas belas melodias cantadas por várias intérpretes, cada uma com seu próprio registro vocal, timbre e presença. Sei que há brincadeiras melódicas e líricas cifradas que os brasileiros entendem e eu não, e gostaria que alguém pudesse explicá-las em inglês. Mas há também referências que, sim, eu entendo, duas canções de louvação a João Gilberto, outra que brinca com Ob-La-Di Ob-La-Da e alguns cantores de quem já ouvi falar. Tomo sua beleza penetrante como a reconciliação de um homem velho com o lirismo do Rio, cuja sociedade de classes ele rejeitou quando era um jovem baiano com bons conhecimentos de harmonia. E observo que, embora Caetano trouxesse Tom Zé para São Paulo, no final dos anos 1960, e Byrne o salvasse de uma volta a Irará como trabalhador de um posto de gasolina, no começo dos 1990, ele reside a quilômetros do Rio, na industrializada São Paulo, onde pode cultivar suas arestas por quanto tempo quiser. Ou não. Tudo depende do que escolher para sua nova música, que espero ouvir em breve.

SALVAÇÃO DA CARNE

Provocações e jogos lúdicos, em mais uma celebração de Pirulito da Ciência, show que promove a retrospectiva da carreira de Tom Zé

por Marcelo Pinheiro

Quinze minutos além do previsto, Tom Zé surge no palco do Teatro Popular do SESI, na Avenida Paulista, em São Paulo. Como um mestre de cerimônias, solicita aplausos ao convocar seus músicos. Instrumentos em punho, é hora de conferir se a plateia está pronta: “Estão todos aí? Tem gente brigando por ingresso lá fora, e ainda tem lugar vazio aqui? Vai entender! Estarão atrasados? Ai de quem se atrasar! O SESI não perdoa. Aliás, já fui bem avisado que não podemos passar das 22 horas, então vamos correr e trabalhar, minha gente!”. O sarcasmo e a cutucada no anfitrião dão pistas de que, apesar dos 74 anos, o baiano continua sem papas na língua. O público agradece com palmas e risos.Tem início o show, e o que vemos é um de nossos maiores artistas em plena desenvoltura de suas grandes aptidões. Entra em cena o crítico virulento, o dançarino elegante, o crooner performático e o provocador contumaz. Dizer que Tom é um artista plural ultrapassa a fronteira do clichê. Ele é único. Admite suas intenções mercadológicas a ponto de criar e executar um hilário jingle para impulsionar a venda de seus “produtos”. Leva a questão para outra esfera, interrompe a execução de 2001, para dizer que vai substituir uma das frases, e emenda sorrateiro: “Quem salvou a minha carne/Foi o David Byrne“, acentuando a pronúncia “barne” para rimar com carne, como se o artifício fosse necessário para entender o recado. Bem sabemos que o espólio tropicalista elegeu reis e súditos e que Tom agonizava na segunda categoria, quando foi “ressuscitado” pelo ex-vocalista dos Talking Heads e sua gravadora Luaka Bop.

Pirulito da Ciência é algo programático, como toda retrospectiva, mas é aí que Tom faz a diferença. Mesmo em situações repetidas – como a encenação de tortura em Todos os Olhose a barulhenta peça pregada aos desavisados em Brigitte Bardot-, o que conta mesmo é sua performance e interlocução com a plateia, extasiada com seus jogos lúdicos e cognitivos. Um ritual de crianças. A propósito, o público contava com a presença do filho Everton e do casal de netos – hilariamente advertidos a todo instante pelo avô para não dormirem. Pulverizados entre as centenas de jovens, havia também muita gente com mais de 60 anos. A meu lado, meia dúzia de senhores e senhoras, aparentando mais idade que o próprio Tom, e demonstrando tamanho encantamento que pareciam estar diante de um super-herói da terceira idade. Ele, literalmente, dialoga com uma plateia de 8 a 80 anos. Como sugere o lirismo dos versos finais de 2001, sabe há tempos como fechar feridas e enganar a morte artística: “… Minha dor é cicatriz, minha morte não me quis!“. Com o perdão da brincadeira, Tom está muito vivo. Vivo pra cachorro, como diria Gil, em Cérebro Eletrônico.

Veja os melhores momentos do show

Vídeo de Camila Picolo


Robert Christgau é jornalista, ensaísta e um dos primeiros críticos de música pop e rock dos Estados Unidos. Foi editor de música do semanário nova-iorquino Village Voice por 37 anos.

Tom Zé nu & cru

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