“Para nós, pobres, que não temos um plano de saúde, o Hospital Universitário é o nosso Albert Einstein, porque a qualidade de atendimento é perfeita. Mas é uma pena que esteja partindo para esse desmonte.”
Autor da fala que inicia esta reportagem, Mario Bom Caminho é membro do Conselho Gestor de Saúde, integrante do Movimento Popular de Saúde da região Raposo Tavares e presidente da ONG Grupo de Assistência Social Bom Caminho. Lamentando a situação por que passa o Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU/USP), ele lembra que o HU vem sendo, há anos, a única alternativa de bom atendimento da população da região do Butantã — que supera meio milhão de pessoas — e seu entorno.
Desde 2014, porém, a excelência do hospital tem sido posta em xeque: 21% dos leitos foram reduzidos, serviços foram cortados e, neste ano, os horários de atendimento do pronto-socorro adulto e infantil foram restringidos. Por esses e outros motivos, parte do corpo de seus funcionários está em greve desde maio.
Com a vida dedicada ao trabalho comunitário, Mario diz que a situação da saúde na área é problemática. “O último investimento que nós tivemos de saúde na região foi há trinta anos”, afirma. “A população cresceu, envelheceu e, com as crises financeiras do país, muita gente acabou nos bolsões de pobreza nas regiões de Raposo Tavares e Rio Pequeno [distritos da Zona Oeste]”. Desse modo, a localidade conta com um contingente abundante que, em sua maioria, não tem acesso a convênios médicos, sendo dependente do Sistema Único de Saúde (SUS). O distrito de Raposo Tavares, por exemplo, possui 54 favelas, um número muito grande de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social.
Com cerca de 600 mil habitantes, a região do Butantã abrange cinco distritos — Raposo Tavares, Rio Pequeno, Vila Sônia, Morumbi e o próprio Butantã —, e só possui uma unidade de emergência, o Pronto Socorro Municipal Dr. Caetano Virgílio Neto, criado para atender aos traumas e desastres que acontecessem na rodovia Raposo Tavares. Porém, por falta de alternativas, ele, sozinho, vem dando assistência a toda a população. Numa hora dessas, a falta de uma alternativa de atendimento como a do Hospital Universitário é muito sentida.
Os moradores da comunidade São Remo, localizada logo ao lado do HU, recordam-se da importância de manter o hospital com um atendimento de excelência. Basta um passeio por suas ruas e um bate-papo com os comerciantes e moradores para perceber como suas vidas estão entrelaçadas à do hospital. Senhoras que tiveram seus filhos há mais de 30 anos e ainda se lembram da qualidade do atendimento que receberam; pessoas que, por problemas constantes de saúde, necessitaram de um auxílio rápido e o obtiveram no hospital.
As histórias de gratidão, porém, mesclam-se às reclamações da falta de atendimento no último ano, quando o hospital passou a realizar uma triagem e atender apenas aos casos considerados urgentes. Os demais são encaminhados para outros postos da região — os quais, muitas vezes, não lhes fornecem plena assistência.
Com a restrição do atendimento do pronto-socorro somente para casos emergenciais no período das 19h às 7h, em que um corpo reduzido de funcionários fica disponível, os problemas se multiplicam. “No período noturno, que é quando você acaba passando mal, é quando você chega do trabalho e encontra o seu filho ou alguém doente e vai tomar as providências, o único lugar com o qual a gente poderia contar é o HU”, lembra Mario.
Para além, uma funcionária do hospital — que não quis se identificar — menciona que o período do fim de fevereiro até o início de agosto “é uma época sazonal de doenças respiratórias em crianças. Então, o pronto-socorro, nessa época do ano, é sempre muito cheio”.
Uma greve de quem cuida de vidas
Para entender os motivos por trás da atual greve no HU, é preciso voltar ao início da administração do atual reitor da USP, Marco Antonio Zago, em 2014. “Logo no princípio da sua gestão, ele deixou claro que tinha a impressão de que a universidade era grande demais”, rememora Gerson Salvador, diretor clínico do HU e membro do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp). Zago foi empossado em janeiro daquele ano; em maio, já estava em curso uma greve geral pelo reajuste salarial dos funcionários. Em agosto, quando a greve já se arrastava por quase três meses, a reitoria divulgou um pacote de medidas de austeridade para conter os efeitos da crise financeira da universidade. Entre elas, estava prevista a desvinculação do hospital — significando que ele passaria a ser administrado pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.
A mobilização contra essa decisão, vinda de todas as categorias da universidade, foi sem precedentes. Houve rápida adesão à greve por parte dos funcionários do HU — que não paralisavam suas atividades havia 19 anos — e dos médicos — ininterruptos há 25. Entidades da USP, como o sindicato dos trabalhadores (Sintusp) e da saúde pública, como o Simesp, também apoiaram a causa. Não bastasse isso, o governo do estado se recusou a receber o hospital, por razões de custo. Pressionado pelas negociações finais da greve na justiça, o Conselho Universitário (Co) eventualmente cedeu e recomendou a manutenção do hospital, que foi cumprida. “Nesse momento, sou proibido de contratar docentes para cursos e pesquisas porque tenho de gastar recursos com fraldas e antibióticos”, comentou Zago, à época.
Pouco depois, veio outro avanço da reitoria para tentar conter os excessos da folha de pagamento: o Plano de Incentivo à Demissão Voluntária, ou PIDV. Servidores que aderissem ao plano receberiam uma indenização de até 20 vezes o próprio salário para deixarem seus postos. Dos 1.382 funcionários inclusos no plano, 213 eram do HU. “O HU foi a unidade que mais sofreu com o PIDV”, conta Gerson. “As pessoas estavam desmotivadas. Você tá numa estrutura dentro da universidade, porém o reitor não deseja que essa unidade esteja na USP.”
As consequências dessa medida não demoraram a se manifestar. Em uma série de demissões posteriores à vigência do plano, mais 25 médicos deixaram o hospital. Sobre isso, Gerson comentou que, frequentemente, os pacientes passam a internação inteira, até duas semanas, em macas nos corredores do pronto-socorro. “Isso gera um estresse muito grande pra equipe, é uma condição de trabalho muito adversa, e os médicos começaram a pedir demissão”, diz.
A equipe remanescente ficou rapidamente sobrecarregada, e se viu obrigada a fechar certos serviços; como consequência, 21% dos leitos do hospital ficaram inutilizados. Na UTI adulta, o número de leitos desocupados subiu para 40%.
Não foram somente as internações, que demandam mais força de trabalho, que sofreram cortes. Os atendimentos de emergência da oftalmologia, por exemplo, caíram em 80%. Na ortopedia, os ambulatórios se reduziram em 66%. Consultas ao otorrino foram cortadas pela metade, e os partos — que já chegaram a trazer ao mundo dez novas vidas por dia — foram cortados em um quarto.
Em abril, dois bebês faleceram no pronto-socorro infantil devido a infecções respiratórias. Ainda que a condição de ambos já fosse grave, segundo uma funcionária — que não quis ser identificada — nos contou, eles deveriam ter sido encaminhados à UTI, mas não havia vagas.
Na prática, esses efeitos foram sentidos desde a execução do PIDV, em 2014, mas foi mesmo neste ano em que a situação do hospital atingiu seu limite de precariedade. As autoridades foram notificadas e a reitoria também. Sem respostas dessa última, a solução encontrada foi, novamente, a greve. “Tem que atender à demanda que tinha com o quadro reduzido — isso é impossível. A única arma que nós temos aqui é a greve”, explica Jorge Ferreira da Silva, funcionário do HU há 27 anos e membro do atual comando de greve. As principais pautas do movimento são as contratações de funcionários e a consequente reabertura dos leitos.
A greve em um hospital não é uma paralisação comum. Caso todas as atividades fossem paradas, os pacientes seriam gravemente prejudicados, o que não é a intenção — e, inclusive, é proibido por lei. Assim, médicos e funcionários reduzem tudo o que é possível reduzir — e seguem trabalhando. “O objetivo da greve não é prejudicar as pessoas, é denunciar uma situação de desmonte”, Gerson detalha. “Então, se você for contar entre os médicos quem não estão no hospital, vai dizer que a adesão é zero, porque a gente tá fazendo a greve aqui dentro.”
No caso do HU, reduzir o possível significou restringir os atendimentos dos prontos-socorros para o horário comercial e somente atender aos pacientes cuja condição é grave. Na frente da fila da triagem, no exterior do prédio do hospital, médicos revezam-se para entregar panfletos explicativos aos enfermos. Há cerca de uma semana, reunidos em assembleia, eles decidiram por “radicalizar” a greve em função do aumento significativo de ambulâncias e emergências na unidade. Os outros funcionários, no entanto, enfrentam um problema a mais na hora de se mobilizar: as ameaças de corte de ponto.
Corte de pontos
Há cerca de um mês e meio, todos os funcionários da USP amanheceram com um e-mail vindo da reitoria. Ele consistia em um documento no qual o coordenador da administração geral da universidade, Rudinei Toneto Jr., instruía os chefes de departamento a manter registro de quais funcionários trabalhavam ou deixavam de trabalhar, em meio à iminência de greve. Com base em portarias e ofícios criados na gestão Zago, ele argumentava ser o dever legal dos servidores e seus chefes que continuassem suas atividades, mesmo que o acesso físico aos locais de trabalho se encontrasse bloqueado por piquetes. Além disso, deixava claro que os dias não trabalhados não seriam pagos: vulgarmente, essa prática é conhecida como corte de ponto.
“Tem muitas pessoas que estavam com medo de entrar na greve e, depois desse e-mail, ficaram com mais medo ainda, porque ali fala que vai ter corte de ponto, que ele quer saber o nome de todas as pessoas que estão [de greve]”, explica Jorge. Assim, a adesão dos funcionários técnico-administrativos foi consideravelmente menor que a dos médicos — cerca de 10% do corpo, contra 30% na greve de 2014. “Ninguém quer dar informe do HU para falar de números, porque é vergonhoso, uma unidade de 1.500 funcionários ter 100 de greve”, desabafa Rosane Vieira, também membra do comando de greve e diretora do Sintusp. Junto a seus colegas em greve, ela passa os dias no corredor da entrada de funcionários do hospital, ora realizando assembleias, ora planejando manifestações. As paredes do local foram ornadas com informes impressos e faixas, uma das quais dizendo que cortar ponto é ilegal. Mas a questão não é tão simples assim.
Ainda que o direito de greve seja garantido pela constituição e regulado por uma lei específica, não há unanimidade sobre a legalidade do corte de ponto. A lei de greve (lei 7783/89) afirma que a participação em greve suspende temporariamente os termos do contrato de trabalho. Assim, todas as “relações obrigacionais” entre patrão e empregado durante a greve — incluindo o pagamento de salários — devem vir de um acordo entre as partes e não possuem regulação específica.
Na greve de 2014, também houve ameaça de corte de ponto e uma funcionária do HU chegou a ser processada pela USP por danos morais. Naquele ano, após negociações intensas no Ministério Público estadual, os servidores eventualmente foram ressarcidos pelo período que passaram paralisados e os processos não se sustentaram. Este ano, no entanto, por se tratar de uma nova greve, as negociações em torno dos descontos de salário deverão ser feitas novamente, e é provável que o caso seja levado à Justiça. “A reitoria se impõe pelo assédio”, comenta Gerson. Sobre o receio dos trabalhadores em aderir este ano, ele acrescenta que “nós não podemos ignorar o momento político-econômico que o país vive, né. As pessoas tão com medo de ficar desempregadas”. Por via das dúvidas, montou-se um fundo de greve para repor as possíveis perdas de salários.
Desde o início da greve atual, as negociações de pagamento de salários na Comissão de Relações de Trabalho (COPERT) da USP têm sido sucessivamente planejadas e adiadas. É necessário que as demandas de qualquer um dos lados, servidor ou contratante, passem por esse órgão antes de serem levadas à Justiça Comum, encarregada dos funcionários públicos. Ainda naquele corredor, após dirigir um discurso enfático a seus colegas, Rosane contou sobre a burocracia e a morosidade envolvida na comissão, além das constantes ausências do reitor. Eram sete e meia da noite e passavam por nós, apressados a pegar um ônibus para casa, uma multidão de médicos, enfermeiros, assistentes e também estudantes.
Hospital-escola
O Hospital Universitário, além de funcionar como uma extensão da USP que atende aos habitantes da Zona Oeste, tem por objetivo ser um hospital-escola. Ou seja, em suas dependências estagiam estudantes dos cursos da área de Saúde da universidade — tais como Medicina, Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional. Ao assinar o contrato de trabalho, os funcionários recebem a instrução de que, por se tratar de um lugar de aprendizagem, eles precisam ter paciência com os estudantes com os quais vão trabalhar.
Os desmontes constantes pelos quais o órgão vem passando, como o fechamento de leitos e a sobrecarga de trabalho enfrentada pelos funcionários remanescentes, afetam a formação dessas pessoas, como lembra o diretor clínico, Gerson: “Não é normal o estudante aprender que o paciente fica numa maca de pronto-socorro durante mais de uma semana (…) não gostaria que o estudante da USP saísse daqui com a impressão de que isso é uma rotina”.
Grande parte dos estudantes, por si só, também não está satisfeita. Em conversa com membras do Comando de Greve da FoFiTO (Departamento de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional), elas expuseram os receios e indignações que fizeram com que a mobilização contra a desvinculação do HU se estruturasse como uma das principais pautas de sua greve. “Quando uma organização social passa a administrar o hospital — que é o que vai acontecer se desvincular da USP —, isso precariza muito, porque ele deixa de ser um hospital-escola e passa a ser um hospital em que os médicos têm meta de pacientes pra atender por dia”, diz uma delas. “E a gente sabe que quando o médico tem meta é porque acaba a qualidade do ensino, e do atendimento também.”
De acordo com elas, a ameaça da desvinculação não faria com que os membros das comunidades dos arredores deixassem de ser atendidos; ainda assim, questionam a qualidade que estará sendo oferecida por um serviço público. A separação do hospital da administração da USP poderia, também, levar à abertura de consultas particulares e conveniadas, diminuindo a quantidade de vagas para a comunidade que o utiliza gratuitamente.
O Hospital das Clínicas, ou HC, outra extensão da Universidade de São Paulo, é, como chamam, um hospital de duas portas — fornece atendimentos particulares e pelo sistema público. E as “duas portas” não são o que os trabalhadores e estudantes de saúde desejam para o HU.
No caso deste, os cursos pertencentes à FoFiTO têm seus departamentos específicos, de modo que cada um possui o mesmo direito de decisão. No HC, por sua vez, esses cursos estão subordinados ao departamento médico. A desvinculação e os possíveis rumos do HU poderiam, além de todas os problemas para a população, fazer com que esses cursos perdessem autonomia, mesmo que a futura administração do hospital passasse a decidir se contrataria ou não estagiários. Hoje, cabe a cada curso deliberar quantas vagas de estágio vão abrir e a forma como irão trabalhar.
“Os próprios estagiários tão passando por um momento muito difícil”, dizem as integrantes da Central. A defasagem no corpo de médicos e funcionários do HU faz com que muitos deles fiquem sobrecarregados e arquem com decisões e tarefas que ainda não lhes cabem.
Transparência
A política de corte de custos da gestão Zago é acompanhada por dois outros pilares, correspondentes às terceirizações e à falta de transparência nas contas universitárias.
Assim como já foi feito com a equipe de limpeza da universidade, com o seu centro de convenções e com dois dos restaurantes — vulgos bandejões —, há uma forte suspeita entre os servidores do HU de que eles sejam os próximos a ser substituídos. “Muito antes da desvinculação, a higiene vai ‘dançar’. Na rouparia já está acontecendo, os funcionários da noite acomodados no horário do dia porque aumentou a extensão da terceirização”, pontua, enfaticamente, Rosane em uma reunião. Além dos funcionários da rouparia, parte do pessoal do setor da informática do hospital também é terceirizado. “Isso está vindo do governo. Se o pessoal não bater pé, o HU vai sair”, ela comenta, citando as 18 privatizações anunciadas pelo governo estadual naquele dia.
Há ainda a possibilidade de que o hospital inteiro seja transferido para o setor privado. Segundo as estudantes da FoFiTO, esse cenário seria mais provável do que se o HU fosse para a Secretaria de Saúde, em função do histórico de relações: se, em 2014, o hospital já não foi aceito na rede estadual, dificilmente o seria agora. “O governador também não quer o HU, então por isso que a probabilidade de uma organização social tomar conta é muito maior”, diz uma delas. As alunas da faculdade, cuja construção do prédio principal está parada há 7 anos, também têm como pauta de greve a abertura das contas da USP.
Acerca da questão orçamentária, no último dia 21 (junho), por organização do Ministério Público do Estado de São Paulo, realizou-se uma reunião para discutir a situação do Hospital Universitário. Durante o encontro, o Superintendente do HU, Dr. Waldyr Jorge, afirmou que o hospital vive problemas financeiros que o impedem de atender a um grande número de pessoas. A despeito desse argumento, o representante do Ministério da Saúde de Brasília, que estava presente, disse ter levantado as contas e os repasses feitos ao HU e observou que, na visão do Ministério, não há problema financeiro, mas sim uma gestão deficiente.
Além disso, um representante da Secretaria de Saúde argumentou que não poderia estabelecer uma posição porque os administradores do hospital não atualizam os sistemas eletrônicos. Desde janeiro, informações foram solicitadas para que o Ministério pudesse dar um parecer. Como lembra Mario, “existe um descompasso das informações prestadas pelo hospital para o governo estadual”. Exemplo disso é o fato de que, para a Secretaria de Saúde, existiam 220 leitos funcionando; porém, ao visitar o hospital, constataram que só 178 estavam ativos.
Ele conta que, logo depois, o representante do Conselho Deliberativo do HU disse que jamais, nas reuniões, foram colocados os números ali expostos pelo Ministério. “Eles [membros do Conselho] desconheciam esses números no orçamento (…) O Conselho acaba assinando e aprovando as ideias do Reitor, mas eles não têm conhecimento a fundo da realidade dos problemas. É uma manipulação.”
(*) A J.Press é a Agência de Reportagens da Jornalismo Júnior ECA/USP. Publicação autorizada pela autora Laura Castanho. Contatos: Laura Castanho ( laura.castanho.c@gmail.com) e Mayara Paixão (mayapaixao1@gmail.com)
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