Ivald Granato foi raptado pelo “Urubu Eletrônico”

Na Bienal de Veneza de 2000 encontro dois amigos debochados: Ivald Granato, que minutos antes fizera uma performance tentando se equilibrar numa das janelas da Paróquia de São Luca, travestido de Casanova, versão  tropical, e Tunga, vagando numa viela repleta de bares e cafés. Afinal, vivenciei a versão de O Bêbedo e o Equilibrista. Virando a esquina pensei, “dia ganho”. Lobos da mesma matilha, eles morreram quase juntos, deixando o circuito de arte mais sisudo e, “infernizando” onde quer que agora estejam. Se o choque da perda é uma condição momentânea, a arte deles é infinita.

Olho pelo retrovisor e vejo os anos 1970, quando Ivald Granato vê refletido seu destino de pintor com alma tingida pela liberdade. Navega no conceitualismo e troca o ensolarado Rio de Janeiro por São Paulo, ainda preso ao movimento. No cinza da cidade se solta e mergulha num mar de cores fortes e corrosivas. Pinceladas multicoloridas bailam na retina e sinalizam a aceleração de formas que transbordam a comporta. Essa pintura-movimento, feita com a impaciência do saber acumulado pela tradição pós-conceitual, foi o combustível de suas performances. Adaptado no circuito paulistano, procria uma nova arte e forma um novo público também à procura de viver o reinado da arte com gozo.

Em torno dele, grupos de outros quadrantes começam a exigir uma nova postura na arte. Todos estávamos presos nas malhas da ditadura militar e, nessa relação dialética entre o contido e o liberto, ele exercita a distinção entre o novo e a sua diluição. Granato cria zonas de diversão, em uma época em que o performer surpreende o público, e inventa o lugar do jogo e da diferença. Não havia galerias ou zonas demarcadas, apenas uma vontade obsessiva de atuar.

Como lembrar do melhor Granato? Em performances antológicas em festas na casa de amigos, onde se somavam a ele José Roberto Aguilar, Alex Vallauri, Arnaldo Antunes, Antonio Bivar, bandas punk? Em “concertos” dadaístas, como Urubu Eletrônico, equivalente à performance do Objet Trouvé, em que tocava uma única nota, em um reduzido teclado por 15 minutos? O que falar da performance na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, jogando o jogo de Andy Warhol? Ou da ocupação do vão livre do MAM do Rio, com uma inusitada partida de futebol? Dos eventos com a Banda Performática de Aguilar?

A “bomba” na Cooperativa dos Artistas Plásticos, em São Paulo, na noite em que ele e sua mulher Laís parodiam a performance de John Lennon e Yoko Ono, ambos nus, teve eco. Na redação do Estadão as fotos “causavam” e o olhar fulminante de minha editora vislumbrava o desastre eminente. O secretário de redação, ao ver as provas de contato, escreve sobre as fotos: “Céus! O que vem a ser isso?” O novo espírito flagrou a ineficiência criada pelo mercado consumidor, que não sabia como se comportar diante da arte experimental.

Mistura de Chacrinha e Artaud, Granato protagonizou tentativas de popularizar a arte, como a “ocupação” Mitos Vadios, uma paródia à primeira e única edição da Bienal Latino Americana, 1978, que tinha o título Mitos e Magia.  Tudo em plena rua Augusta, em sua época de ouro, onde ele convida para “vadiar” Antonio Dias, Arthur Barrio, Hélio Oiticica, Claudio Tozzi, Gabriel Borba, Ana Maria Maiolino, Regina Vater, a argentina Marta Minujin, todos sob a bandeira do “viva e deixe viver”. Granato chegaria ao local de helicóptero, mas a FAB proíbe a decolagem do aparelho e ele chega a pé, representando My Name is not Ciccilo Matarazzo, paródia sobre o presidente da Bienal de São Paulo, de braços dados com Lygia Pape, travestida de Yolanda Penteado, mulher de Ciccilo.. Na caixa de som o Rolling Stones tinha a preferência, enquanto cartazes exibiam slogans: Quem não tem Hyde Park vai de Unipark, estacionamento ocupado pelos “vadios”. O Mercado de Arte é o Preservativo da Criação.

Galeristas como Mônica Silveira, a mais performática e divertida entre todas as marchands que esta cidade já conheceu, além de Regina Boni e Raquel Arnaud, são testemunhas da natureza dinâmica e fragmentária das ações de Granato, que não dá lugar a simplificações e reduções.

Performance é um dispositivo de trânsito, de cruzamento e de sucessões, tudo muito rápido para mentes desabituadas ao choque. Na trilha de Granato se ordena um mundo de “loucos” que, como ele, querem escapar da rotina do ateliê: Luciano Castelli, pintor neoexpressionista e performer de Berlim, com luva de boxe vermelha pinta com ele uma tela a quatro mãos, dentro de um “aquário” de vidro, na extinta galeria Subdistrito. Com Salomé, do mesmo grupo berlinense, se tranca no seu ateliê e ‘performam’ pinturas. Desde os dadaístas a nave dos provocadores parece ébria aos olhos do público. Há quem jure ter ouvido a voz de Polonius, personagem de Hamlet, atrás da cortina: “Há método nessa loucura”.

A arte é desmontagem e um remontar contínuo de peças que podem nunca mais se encaixar. Granato bebeu no universo dos alienados, na Art Brut, na arte das crianças, um turbilhão que deu à arte o sentido da alegria, um vento que soprou a favor da nossa relação com o corpo, na liberdade social e psíquica.Por isso mesmo aceitamos o desafio de também “performarmos”, em Bandait, um evento surreal, sob o comando de Granato, no Centro Cultural São Paulo. Éramos 50 “loucos” da mesma enfermaria, saídos dos teatros, ateliês, redação de jornais, butecos, ensaios de música, do cinema, esquinas, intelectuais de todas as tendências. Foram três horas de boas e inimagináveis gargalhadas.

Granato agitava 24 horas por dia e essa rapidez mental refletiu na pintura. “Não se esqueçam que um gesto, aparentemente fácil, pode ser conceitualmente forte”. Frase lapidar de Mário Schenberg sobre suas telas. Com uma pintura estruturada na cor, volume, vigor, violência, Granato imprimiu um caráter autobiográfico à sua trajetória. Granato morreu no dia 2 de julho implodindo nosso sábado à noite, surpreendendo em seu melhor estilo. Provavelmente raptado pelo Urubu Eletrônico, que o levou em suas asas para a performance final, em GRAN-ATO!

*Algumas revelações de seu território estão para serem descobertas até o dia 10 de setembro na Caixa Econômica Federal de Brasília. Vale a incursão pelas 130 obras de seu arquivo pessoal entre fotos originais, livros, roupas e assessórios usados em diversas performances, livros, além de vídeos originais.


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