Wallace Roney é um grande músico. Desde bem pequeno já demonstrava um domínio fora do comum de seu instrumento de escolha, o trompete. Teve aulas com ninguém menos que Clark Terry, Dizzy Gilesppie e Miles Davis. Poucos podem colocar isso no currículo. Com relação a Davis, só ele. Foi seu único aluno, por cerca de seis anos, até sua morte, em 1991. Teve, em suas próprias bandas, músicos do porte de Ron Carter, Kenny Garrett e Chick Corea, e foi votado algumas vezes o melhor trompetista do ano pela revista Down Beat, especializada em jazz.
Com tudo isso, era de se esperar um show menos burocrático na noite de abertura do Jazz na Fábrica, festival de altíssimo nível que acontece desde 2011 no Sesc Pompéia, em São Paulo. Não que tenha sido ruim, longe disso. Com exceção do baterista, Lenny White, que parecia querer galopar para todos os lados ao mesmo tempo, muitas vezes correndo na frente da banda, os músicos mostraram técnica refinada, sensibilidade e coesão. O mais interessante era o pianista Victor Gould, com seus dreadlocks e seu toque “duro”, à Thelonious Monk, privilegiando desenhos estranhos de acordes (no limite da dissonância). Era o contraponto perfeito às notas do trompete de Roney, tocadas em velocidade impossível, num vai e vem estonteante que seguia as curvas da melodia sem perder a elegância. Seu corpanzil imóvel fazia um contraste curioso com a mobilidade frenética da música que criava. Na única balada da noite, mostrou porque é tido como herdeiro de Miles: o timbre peculiar (elogiado por Zuza Homem de Mello, que estava na plateia), o som alongado, sensual, e os silêncios “eloquentes” criavam um clima que deixou o público extasiado – melhor momento da noite.
Por que, então, burocrático? O show foi muito curto – Roney alegou antes do único bis que estava cansado. Ele e o jovem e bom sax tenor, Benjamin Solomon, muitas vezes ficavam parados, estáticos, esperando terminar os solos dos demais para cumprirem sua parte (claro, pode ser o jeito deles, cerebral, concentrado, mas a impressão é desconfortável, de qualquer modo). Tudo parecia muito fechado, sem grandes momentos de improviso ou invenção. O entusiasmo meio descabelado do baterista quebrava um pouco essa sensação de comodismo (Roney, ao contrário do mestre, raramente avançou além do bebop ou pós-bop); ganhou a plateia com a ilusão da intensidade, por assim dizer.
Quem gosta do velho jazz modernista tocado com excelência adorou o show. Quem prefere um pouco mais de aventura e risco ficou levemente decepcionado. Roney ainda toca hoje e amanhã, sempre no Sesc Pompéia, em São Paulo, às 21:30.
DESTAQUES DO JAZZ NA FÁBRICA
Uma das grandes atrações do festival é daqui mesmo, a baiana Orquestra Rumpilezz, comandada pelo maestro Letieres Leite. São dez anos de estrada fazendo uma mistura única de batuques do candomblé e sopros do jazz. O disco novo, que acaba de ser lançado, é incrível: A Saga da Travessia (Selo Sesc). Tem tudo para se tornar conhecida e admirada no mundo inteiro. Tocam neste sábado (13) e domingo (14), às 21:00 e 19:00, respectivamente.
A cantora israelense Ester Rada faz também uma mistura singular: jazz etíope, funk e soul. Próxima quinta, dia 18, às 21:00, no teatro do Sesc Pompéia. O saxofonista canadense Michael Blake, que foi dos cultuados Lounge Lizards, é outra boa curiosidade. Toca no sábado, dia 20 e domingo, 21.
Os pianistas Matthew Shipp e Robert Glasper, ambos americanos, são provavelmente – mais do que Roney – os grandes nomes do Jazz na Fábrica. O primeiro já gravou mais de 50 discos, sem contar dezenas de outros como convidado (entre eles o brasileiro Ivo Perelman). Extremamente inventivo, vai do puro free jazz à composição experimental, por vezes próxima da música erudita contemporânea. Glasper, por sua vez, deixou seu posto de pianista de jazz “puro” e passou a incursionar pelo mundo do hip hop e do R&B, com resultados animadores. Ganhou dois Grammys nessa sua empreitada mais comercial (mas não menos criativa). Vai se apresentar no sábado (20) e domingo (21) ao lado da rapper paulista Tássia Reis, que vem com a banda Mental Abstrato. Shipp toca na sexta, 19.
A grande festa ficou para o final do festival, dias 26 e 27 de agosto, sexta e sábado, com o show explosivo de Cheik Tidiane Seck. O pianista, compositor e arranjador malinês já tocou com Salif Keita, Youssou N’Dour, Santana, Tony Allen e o maior de todos, Fela Kuti, o que dá uma boa ideia de seu potencial. É jazz africano com toques de reggae, hip hop e pop francês de primeiríssima qualidade.
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