“Fiquei na dúvida se era você mesmo”, diz Laerte ao me encontrar. “É que eu não usava chapéu”, explico. Ele senta-se à mesa da Padaria Real, em São Paulo, onde eu o esperava. O garçom, calça preta e camisa branca, tenta disfarçar. Finge receber com naturalidade o pedido de uma pessoa que está de unhas pintadas de vermelho, brincos, colar, braceletes e minissaia jeans, mas ordena com voz de homem:
– Um café carioca, por favor.
Seus dedos gordinhos são bastante femininos. E as unhas impecavelmente vermelhas. Os adereços são étnicos, inspirados em padrões indígenas. O cabelo vem até os ombros. Mas nenhum gesto, nenhum tom de voz, nenhuma palavra lembra o feminino. Laerte pensa como mulher e fala como homem.
Brasileiros – Dos cartunistas que eu conheço, dessa turma toda, você é o que tem o trabalho mais europeu.
Laerte – Eu estava no aguardo do adjetivo. Por essa eu não esperava.
Europeu porque é inteligente.
Ah, tá. É elogio?
Eu gosto de tudo o que vem da Europa.
Eu tenho um complexo de inferioridade enorme em relação a franceses, italianos, até espanhóis. Pouca gente no Brasil tem conceito para ser publicado em algum país europeu, sem problemas. Eu incluo nisso o Gê, o Angeli, os Caruso. Dificilmente me incluiria. Eu não tenho uma autocrítica muito boa, não. É uma coisa que me atrapalha. Tem algo de doentio nisso. É verdade. Eu tenho uma insatisfação muito grande quando eu vejo meu trabalho. Exatamente na hora em que estou fazendo não, nessa hora eu trafico bem. Mas depois é um problema.
Eu acho que o teu traço é internacional, pode ser publicado na Europa e em qualquer lugar do mundo. E a sacada, a perspicácia, as palavras que você usa. Não digo que o Angeli ou os Caruso sejam inferiores. Você é diferente.
Eu tenho uma timidez pra investir nessa área, a de publicar no exterior. É uma ideia interessante, mas me dá um certo temor. Além disso, esse temor é respaldado por uma falta de conclusão dessas tentativas. A maior parte fica na tentativa. Eu não sei bem como definir isso. Vamos publicar no exterior? Só agora estou vendo alguns gestos concretos nessa direção, gente sendo traduzida para o inglês, francês, meu filho, que é quadrinhista está sendo traduzido. Eu acho bárbaro. A contrapartida à minha timidez em relação à França é uma grande arrogância da parte da França. Eles têm pouca paciência com linguagens do resto do mundo. Eles são paternalistas, quando eles falam de quadrinhos incluem o Brasil no Terceiro Mundo, que pega Sudeste Asiático, África, América Latina. Esses são os franceses.
Muchacha é teu trabalho mais recente?
Saiu ano passado.
Esse você vende em qualquer lugar do mundo. É muito moderno.
Obrigado. Isso é uma proposta? Eu gostaria até de não ter dúvidas a meu respeito. Além disso, eu acho que tenho relação de inferioridade não só aos franceses, mas a Luiz Gê, a Angeli. Eu tenho pouca disciplina. Vejo esses meus colegas numa atividade, num fervor, numa relação com o próprio trabalho, a própria expressão muito mais intensa. Eu, por exemplo, tenho bode ancestral de desenhar em público, não gosto que me vejam desenhar, a não ser rabisco rápido, de autógrafo, mas se me olham desenhando, eu erro!
Isso é chato mesmo. O Gê gosta?
O Gê não. O Angeli também não.
Ninguém gosta.
Os irmãos Caruso, por exemplo, vão em um bar de jazz e fazem desenhos e aquilo vira uma atividade. Eu acho isso tão sensacional quanto impossível para mim. Fora isso, tem a coisa da disciplina, ter horário para desenhar, fazer trabalhos com elaboração complicada, a busca de resultados, pesquisas, a busca de materiais diferentes, nada disso eu faço, tenho uma certa aflição até de resolver logo a parte material da coisa.
Agora, escuta, esse personagem que é você… com tua roupa…
Não é personagem.
É o que eu queria saber. É um personagem?
Não, sou eu atendendo a um desejo íntimo e antigo.
Mas como pintou esse desejo?
Ah, sei lá. É antigo.
E você se diz tímido… E sai assim por aí?!
A timidez é sempre pontual… é seletiva… A não ser os tímidos crônicos, eu não sou isso, eu tenho timidez para desenhar em público, mas acabei não tendo mais timidez de me apresentar com roupas femininas, por exemplo. Demorou um certo tempo. Foi gradativo… foi gradual… Primeiro, eu descobri que eu queria, já há alguns anos.
Você já fazia Piratas do Tietê quando começou a se travestir?
Não, eu comecei a me travestir publicamente no ano passado, em 2010. Comecei a me travestir particularmente em 2009 e eu comecei a querer me travestir em 2004. Eu tive clareza dessa vontade em 2004, quando eu fiz contato com uma travesti amiga minha e ela me colocou: “Veja aqui nessa história que você fez… Nessa outra… Será que você não tem essa mesma vontade dos seus personagens, eu sei que personagem é uma coisa e criador é outra, mas será que você não tem? Pra mim, é claríssimo isso”. Eu pensei bastante no assunto, comecei a comprar umas peças de roupa, calcinhas, peças que não aparecem. E comecei a ver o que é um travestimento. E cheguei à conclusão de que ela estava certa, eu realmente ao me travestir, respondo a tantas coisas antigas… A Marina Silva conta que quando ela foi à Assembleia de Deus, ela sentiu como se encontrasse resposta a uma pergunta que ela nem sabia que estava fazendo. Ela disse: “Não é que eu estivesse em uma busca que me aproximasse disso, eu estava em uma busca secreta, meio difusa e aquela igreja me trouxe a resposta. Como se estivesse procurando aquilo a vida toda”. Comigo foi uma coisa parecida. Quando comecei a me travestir, me senti como se tivesse chegando a um país que eu conheço: “Ah, eu falo essa língua”. Em 2004, fiz essa descoberta de que não só eu quero, como tem muita gente que faz isso. E é possível. Não é proibido. Eu comecei a me vestir privadamente com roupas femininas, reservadamente, a frequentar reuniões onde pessoas como eu se vestem assim e isso foi indo até que eu comecei a deixar isso transparecer em público. Por exemplo, quando eu faço a unha, gosto de ficar com a unha feita. Não tiro. Comecei a aparecer por aí, brincos comecei a usar, comecei a perceber que eu gosto disso, que eu gosto muito (ri).
Mas isso te dá alguma força extra? Você se sente diferente?
Me sinto diferente, me sinto mais perto do que eu gostaria de estar, satisfeita com… Não é muito fácil, não é muito simples de explicar. Quando a pessoa começa a se apresentar em público assim, há uma fase de turbulência de emoções e adrenalina – o que vão achar, o que não vão achar -, mas com o tempo isso vai virando uma coisa normal, vai virando o teu cotidiano, e começa a vir à tona um prazer suave e permanente de estar encontrando mesmo o desejo que sempre existiu, essa vontade de frequentar o gênero feminino, principalmente através de roupa, mas não só através de roupa, não só.
Maquiagem?
E também o gestual… Não sei, estou buscando um equilíbrio entre meu modo natural de ser que tenho desde criança e esse modo que também é uma espécie de naturalidade que andou escondida até agora. Eu tenho um diálogo aí, uma confabulação. Mesmo porque, quando eu vou atrás de algo feminino, vou atrás de algo idealizado do que é ser mulher, que é uma visão ideal do que é ser mulher. Tudo isso são construções culturais mesmo e, quando a gente procura representar isso, necessariamente representa ideias que a gente teve de algumas fantasias também. Até isso virar um modo natural de ser, vai um certo tempo, é um aprendizado.
Tem alguma coisa a ver com Flavio de Carvalho?
Não, Flavio de Carvalho tinha uma ideia avançada a respeito dos transgêneros, mas a ideia dele. Aquele trabalho de 1956 foi precedido de uma série de ensaios em que ele desenvolveu a ideia de uma roupa, de uma arquitetura e um modo visual condizente com uma cultura que estava ascendendo, uma cultura que estava crescendo em direção ao seu apogeu, como ele considerava a cultura brasileira. Ele dizia que as culturas em decadência primam por formas retas, rígidas, cores acinzentadas e culturas em ascensão explodem em cores, em formas, ele pensava que a gente estava submetido a padrões europeus e americanos e que isso estava destruindo a nossa natureza tropical. Ele foi atrás de uma possibilidade de vestimenta, mas também de arquitetura, de cultura, de arte, uma visão geral e discutiu isso com outras pessoas, inclusive aquela roupa não foi desenhada por ele, mas por uma cenógrafa, tinha mais gente envolvida nesse projeto. Só que no dia que ele marcou para sair de saia, os outros arregaram. Ele fez um percurso, foi ao cine Marrocos, fez um discurso, leu um manifesto e foi para casa…
Escuta, não é perigoso você andar assim? Em São Paulo já houve casos de ataques violentos.
Mas não é perigoso vestir a camisa do Corinthians e ir a um bar da Rua Turiassu, em frente ao Palmeiras?
Eu jamais faria isso. Você passou por situações perigosas? O cara anda de saia… e tem voz de homem. Você tem voz de homem.
Não tento fazer voz feminina…
Como as pessoas reagem? Há todo o tipo de pessoas nas ruas.
Eu não sou sem noção, eu sei que existe esse perigo. Em uma situação sujeita a riscos, procuro estar com outras pessoas, mas para circular de dia, em um lugar como esse, descobri que não tem problema. Não tem. A possibilidade de aleatoriamente eu ser visto e atacado por homofóbicos é muito pequena.
Fora as pessoas agressivas, como é a reação dos outros?
Especialmente depois que eu apareci no Jô, no Altas Horas, as reações têm sido muito favoráveis, eu tenho sido cumprimentado por pessoas que eu não conheço, elogiam minha atitude, só tenho notícia de boas reações. Reações agressivas só tenho recebido pela rede: “Ééé… veado!”, “O que é isso?”, “É feio!”. Isso, para mim, é moleza, até pelo volume dessas coisas, como na rede o jogo é solto, o volume proporcionalmente é muito pequeno. No blog da Globo tem a entrevista no Jô e os comentários embaixo: “O que é isso? Parece uma tia velha!”, “É desculpa, o cara é veado mesmo!”. Mas muito equilibrado com comentários de apoio. Elogiosos. Ou simplesmente apoio: “É isso aí”. Tem de ter liberdade. Apoios à ideia da coisa, da liberdade de expressão. Comentários agressivos são frequentemente anônimos. Nem sempre. Na rede, onde o jogo é livre, os animais se sentem sem peias, a rede está assim, educadinha… Beleza! Eu me sinto em situação privilegiadíssima em relação às travestis que são objeto de uma agressividade absurda, não fossem também objeto de desejo, de procura comercial, já teria havido um massacre. Na verdade, há um massacre, que é disperso, o ataque e morte de travestis no Brasil é muito grande. Existe uma compreensão meio perversa de que é possível o homem se vestir com roupa feminina, desde que ele esteja em uma situação de prostituição, desde que haja comércio, serviços sexuais. Não se concebe uma travesti que seja médica, ou advogada, compreende-se uma cartunista. É meio aberração, mas o modo de lidar com uma coisa dessas é bem diferente, nesse sentido tem sido uma experiência que me faz pensar muito.
Você se sente um travesti?
Eu estou travestido! (ri). É esse o problema da palavra. A palavra é usada quase como um sinônimo de prostituição. Então, a carga de demonização, de preconceito, é muito grande. É tão grande que eu resolvi liberar a palavra. Eu e outras pessoas. Resolvemos usar essa palavra mesmo. Eu sou uma travesti, tá? Na verdade, eu não gosto muito dessa coisa classificatória. Eu sou uma pessoa que se traveste. Eu sou um homem que me visto com roupas femininas, frequento o modo de expressão que é normalmente atribuído às mulheres.
E qual é a relação desse modo de ser com sexo?
Ah, não tem nada a ver. Aí, eu teria de entrar na minha atividade, que eu não vou entrar. Eu só declaro o meu nome, número e batalhão (ri). Para efeitos de visibilidade, eu sempre digo que sou bissexual. A minha história é a história de um bissexual. Mas a relação com a transgeneridade, com a vontade de ser travesti não existe. Dentro do universo das pessoas que se travestem, tem de tudo: homossexuais, héteros e bissexuais, inclusive as travestis que vendem o sexo.
Antes de se travestir, você já era bissexual?
Já. Normal. Dizer normal é exagero, foi meio complicado. A minha história sexual sempre foi com homens e mulheres.
Você está casado com a Ciça?
Não, esse é o Zélio.
Desculpe, eu confundi.
Eu me casei três vezes com mulheres. Casei com uma médica, com uma artista plástica e com uma fotógrafa. Eu tive o bom senso de não casar com cartunista. Casei com a Lúcia, que é fotógrafa, com uma médica depois e depois com uma artista plástica.
Agora você não está casado?
Não. Eu tenho uma namorada… mulher… A Tuca.
Você não mora com ela. Mora sozinho? E a tua empregada? O que ela diz?
Cada um na sua casa. Excelente figura humana. Nada! Ela trabalha também na casa da Tuca… Não há segredos… Eu tenho frequentado os arredores da minha casa gradualmente. Tenho aumentado a presença.
Você vai à padaria, por exemplo?
Vou… Com vestido, com salto, como eu estiver. Eu não ando em casa de vestido e salto, ando em roupas caseiras. Eu vou aos lugares sempre fazendo uma certa negociação, vou onde eu sei como é o ambiente, parte de mim é ousadia, avançar no território, e parte é respeitar sentimentos e reações. É assim com tudo. Com meus pais é assim..
Pois é, o que disse a tua mãe?
Quando eu falei com eles, eles já estavam cansados de me ver de unha pintada, de joias, mas não tinham me visto vestida ainda. E eu contei para eles que eu estava me vestindo. Eles aceitaram a ideia, respeitam meu desejo, continuamos nos tratando muito bem, mas eu senti que não é para eles uma coisa tranquila viver comigo travestida, maquiada… Então, eu respeito isso.
Quando vai conversar com tua mãe, você põe outra roupa?
Ponho uma calça. Eu tenho uma calça. Certas peças de roupa, calça ou saia que são diferenciais. Eu tenho calça feminina, mas é diferente estar com uma calça feminina ou com uma saia.
Você compra calça feminina? Jeans?
Ah, sim.
A anatomia não é diferente?
Não, não é. A mulher tem o quadril mais largo, mas e daí? Você pode comprar uma calça que corresponda ao seu quadril. O meu número é 44. Essa saia jeans também.
Roupa de mulher não é mais cara?
Não. Nem sempre. E roupa de mulher tem mais variedade. Ternos masculinos e blazer, sapatos italianos são muito caros. A diferença é que os homens têm uma variedade pequena de opções. É muito comum executivos terem ternos Armani. Se você vê o guarda-roupa, parece sempre o mesmo terno. Não são. Agora, vai em um guarda-roupa feminino, é como uma visita ao jardim zoológico… Tem de tudo… cores, padrões, tecidos…
Você tem quantos filhos?
Dois. O Rafael, com 30, e a Laila, com 20.
Brasileiros – Como eles reagiram quando souberam?
Laerte – Bem também. Como eu já tinha passado com eles a fase de algumas revelações, como essa da bissexualidade, então…
Você contou com quantos anos?
A Laila, quando foi a entrevista na Caros Amigos, em 2005, ela tinha 15, 16 anos. Uma pessoa dotada de senso. O Rafael tinha 25 anos. Foi tranquilo. Houve algum estranhamento… Algumas perguntas… Mas, mas, mas…
Você tinha essa tendência desde que nasceu?
Não era uma coisa… Não me peça para ir muito fundo nisso. Eu não sei identificar detalhes. Muitas pessoas que se travestem têm claro isso desde a primeira infância, aos 4 ou 5 anos, eles se lembram de pegar a roupa da mãe, da irmã, de passar batom, se ver no espelho, esse tipo de relato é corriqueiro na história de qualquer travesti ou cross dresser, como se fala. A minha não é tão nítida. Eu me lembro de gostar da ideia de saias, mas geralmente combinado com algum tipo de fantasia. Por exemplo, eu me vestia de grego, gostava porque tinha aquele saiote, de alguma forma eu me sentia feminino, eu estava frequentando uma coisa feminina. Não tinha vontade de ser o Maciste quando eu estava de saiote… É uma memória meio confusa e não muito nítida, eu gostava de aprender o que as mulheres faziam, como costurar, cozinhar, mas também gostava de jogar bola, de brincadeiras tipicamente masculinas. Quando fiquei adolescente e entrou em campo o problema de definição sexual, foi mais confuso. Eu me lembro de ter vivido conflitos bem mais intensos, comigo próprio, reconhecendo um desejo homossexual e seus problemas, isso virou uma área conflituosa durante bons anos. Até hoje, não é uma situação completamente resolvida. O fato, por exemplo, de eu ter tido relações sociais com mulheres – casamentos, namoros oficiais – é meio bandeiroso, meio indicativo disso.
Você nunca morou com um homem?
Morei, mas não era meu parceiro sexual. As minhas transações com homem sempre foram clandestinas. Sempre existiram.
Mas você nunca quis expor?
Reconhecer isso publicamente, para mim também era um problema. De certa forma ainda é.
Mais difícil que a roupa feminina?
São duas coisas diferentes, mas é mais difícil que a roupa.
Você faz barba?
Faço. Estou fazendo depilação a laser no rosto. São dez sessões. Até o fim do ano, vou fazer isso. E a minha barba escura, pelo menos, vai sumir. Os pelos brancos não somem. Branco e loiro.
A minha barba é toda branca.
Não perca tempo e dinheiro fazendo depilação! (ri)
Por enquanto, você se barbeia?
Me barbeio todo dia.
Com espuma?
É. Com xampu, creme, normal. O problema da barba é esse, é aparecer, é ficar uma sombra. Essa sombra está diminuindo. Com o tempo, vou passar apenas uma gilete e vai parecer que eu não tenho barba. Para a maquiagem, então, é bárbaro. Não aparece nada.
Você se maquia normalmente?
Eu me maquio.
Você está maquiado agora?
Não, só o olho.
E maquiado mesmo com batom?
Ontem, por exemplo, fui em um evento da Cia das Letras, fui maquiado completamente, com batom.
Nesses ambientes mais cultos não há ofensas.
Nada, só aplausos. Mas o que é um ambiente mais culto? Essa conversa sempre acaba levando para coisas que são ideias prontas. Ah, porque você é considerado intelectual. Então, você é aceito.
Artista é maluco. Imagina você como executivo do banco: seria demitido.
Deveria poder. Eu acho que a gente cede muito facilmente. O que você está dizendo é verdade. Elas são a prova de que existe a tal ditadura de gênero. Eu sou artista, beleza. Eu seria aceito no serviço público? Se eu fosse professor? Médica?
Seria demitido.
Não é questão de opinião, é um fato. As transgêneras, que é o nome que se dá às pessoas que têm conflito de gênero, que envolvem inclusive de identidade sexual, envolve travestis, transexuais… As pessoas transgêneras, quando começam na puberdade como transgêneras, em geral são reprimidas. Muito frequentemente são reprimidas até a agressão física. A maior parte das travestis que está na prostituição hoje, passou por coisas escabrosas, como ser estuprada em casa, jogada na rua, ser quase linchada no bairro. Então, o meio social vai cortando as possibilidades daquelas que não se enquadram nesse ponto, de ser expulsas da escola, de desistir de qualquer educação e vão para a prostituição mesmo. Não que a prostituição não seja uma opção de livre vontade, mas acaba sendo, na maior parte dos casos, a única opção possível. Ela vai atrás de ser cabeleireiro, de moda, de atendimento, de depilação, no salão ou coisa assim. É um estreitamento de opções que corresponde a como a sociedade vê as transgêneras. Ah, você quer ser? Você pode ser. Desde que você seja prostituta ou se limite a fazer as unhas e os cabelos das pessoas. É errado isso. Não estou fundando um partido, nem nada, mas acho importante que se discuta isso. Existe uma proposta não sei de quem sobre quotas para travestis e transgêneras em serviço púbico. A ideia de cotas raciais começou a ser discutida na área do serviço público, Abdias do Nascimento tinha essa proposta décadas atrás. Foi implantada nas escolas públicas. É tudo sempre discutível, mas acho positivo que se discuta essa possibilidade, que deixe de ser um problema invisível. Hoje, é um problema invisível. As travestis estão lá na rua dando. As pessoas estão aqui vivendo as suas vidas de famílias de bem. Se os transgêneros passarem a forçar esse caminho, a serem visíveis, talvez seja melhor. Talvez seja o momento de fazer isso. O movimento gay americano só conseguiu sair do buraco e enfrentar a legislação agressiva com a visibilidade, com a política do “foda-se” a sua privacidade, meu amigo, se você não sair do armário, não falar com teus parentes e amigos que você é gay, ninguém vai saber que existem gays no mundo.
Quando se fala “gay”, você se identifica como gay?
Eu sou bissexual, faz parte, é um contexto que deve ser encarado de maneira única. É um problema que tem de ser visto de forma unificada, por mais que gênero e orientação sexual sejam coisas diferentes, o problema do preconceito e da hostilidade é o mesmo. Então, tem de ser visto. Eu acho que os trangêneros têm de, aos poucos, conquistar, não podem se submeter a essa tirania. Ah, eu não posso ir de unha pintada porque vão falar de mim. Tem um momento em que essa luta tem de virar coisa real.
A união gay estável votada no STF, o que você achou?
Achei que foi um avanço… O contrário disso é admitir que homossexual seja um cidadão de segunda classe. Ou como disse o Ives Gandra Martins, que o casamento só é possível se existe a perspectiva da procriação. Um casal de pessoas inférteis não pode ficar junto. Do ponto de vista reacionário, esses assuntos têm perdido muito terreno e foi boa essa decisão do STF, eu gostaria que tivesse sido uma medida do Legislativo, mas se o Legislativo não se mexe, foda-se, que o Judiciário mande ver.
Você falou que a nossa sociedade é machista, o homem manda, o homem ganha mais, etc. Você estava nesse gênero maior e passou para o menor?
(Ri) Maior ou menor, você quer dizer privilegiado e…
Você como homem fica em posição de superioridade. Nem falo de salário, porque na remuneração de artistas não importa o gênero.
Pois é, muitas cartunistas mulheres ganham mais que eu, algumas como a Maitena, ganha centenas de vezes mais que eu. Mas eu entendo o que você quis dizer. Para os nossos padrões o ideal é ser homem, e homem branco
Quando você se apresenta como homem, tem status mais privilegiado?
É difícil aplicar essa hipótese no meu caso, porque eu já vivi quase uma vida inteira de uma forma de gênero até agora. Eu tenho 60 anos. Só daqui a dez anos posso fazer uma avaliação desse tipo. Dez anos de travesti… Qual é o balanço da coisa? Nessa altura do campeonato nem me assusta a possibilidade de perder terreno socialmente, porque eu não estou perdendo. Ao contrário, meu Facebook está estourando.
De um lado tem o espanto de certas pessoas; de outro, é uma atitude corajosa que desperta admiração.
Não fiz nada disso pensando em ser bandeira nem nada. Mas que sirva para isso, eu acho legal. Eu sei de pessoas, porque eu continuo frequentando os grupos de travestis e tal, de pessoas que se sentem autorizadas a ousar mais, nem que seja abrir para a mulher, sabe? Às vezes é isso, abrir para a mulher, para os filhos: “Olha, eu gosto… Sabe o Laerte da televisão? Eu também…”. Se estiver adiantando pra isso, já acho um avanço.
Por outro lado, um homem que se veste de mulher atrai mulheres?
Não sei dizer.
Por que tem o fetiche… bissexual… Você não é objeto de desejo das mulheres?Francamente, não sei. Mulheres e homens têm manifestado apoio, admiração, mas não sei identificar se ali tem desejo – vamos para um motel? -, francamente não sei. Da experiência que eu sei e conheço, acho que existem mulheres que se sentem atraídas por homens feminilizados ou que frequentam, mas é preciso que eles sejam héteros também. Eu não sei se as mulheres quando sentem uma predominância de orientação homossexual investem. Será que as mulheres têm isso? Vou salvar… Será que as mulheres têm isso? Assim como tem homens que têm aquela coisa do “vamos comer aquela menina, ela é lésbica”.
Agora, vem cá, Laerte, o que é melhor, homem ou mulher?
Eu sei lá, cara! Pra transar?
É.
Não sei. Fiquei pensando mais em uma resposta espirituosa. Não tem melhor. Existem homens e mulheres particulares. Se me perguntam se gosto de mulher eu digo: “De algumas”. Gosta de homem? De alguns.
Mas é o mesmo prazer com homem e com mulher?
O prazer não está no homem ou na mulher. Está no sexo, na atividade sexual. Com quem você está fazendo é outro ponto. Depende de tudo, da pessoa, do momento, da música que está tocando… (ri) “Não sei, esse conhaque, essa lua… Eu fico emocionado como o diabo“, isso é do Drummond ou do Manuel Bandeira? Tem cara de Manuel Bandeira…
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