Onde queremos estar? Ou a incerteza entre documentário e arte

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Vista da exposição “Duty-Free Art’ (2015), Hito Steyerl


Numa manhã do inverno
de 2009 em ­Enschede, no sertão holandês, abri a porta do meu pequeno estúdio para Hito Steyerl. A visita era programada pelo Dutch Art Institute, uma então desconhecida escola de arte-pesquisa que por um curto tempo ocupou os fundos de uma renomada universidade de tecnologia daquela região, na fronteira com a Alemanha. De origem nipo-germânica, ela vinha de Berlim, onde vive e trabalha até hoje entre os ofícios de pensar, escrever, ensinar e fazer filmes. Era cedo e falávamos baixo. Levei tempo pra descobrir se o tom menor do nosso encontro era resultado do frio que fazia ou da timidez daquele rosto tranquilo. Eu buscava as palavras quando ela, de repente, disparou a rir. Olhando para uma fotografia feita por mim anos antes no Recife, na praia de Brasília Teimosa, Hito gargalhava para dentro de si, como quem se lembra de algo íntimo, ao fim do que pensou alto: “Esse deve ser o futuro e, se essas pessoas estão lá, é lá onde eu quero estar”.

Tive a sorte de ser orientada por ela em minha dissertação de mestrado sobre o lugar da fotografia entre o documental e a arte. Já em nossas primeiras conversas, foi ela quem me ajudou a entender que não era preciso deixar de ser jornalista para trabalhar como artista. Ao contrário, ela me dizia, a prática do jornalismo era exatamente a coisa mais preciosa que eu tinha ali. Não foi por acaso que Documentary Uncertainty (Incerteza Documental, 2007) – um de seus textos mais emblemáticos sobre a incerteza do valor de ‘verdade’ inerente aos registros documentais – e posteriormente In Defense of the Poor Image (Em Defesa da Imagem Pobre, 2009) – manifesto que nos alerta para a qualidade material das imagens virtuais e para a natureza ideológica de seus sistemas de circulação – se tornaram leituras fundamentais naqueles meus anos de formação.

Inscrita num campo ainda não fácil de definir, mas que vem sendo chamado de New Media Social Realism ou Documentary Mode, Hito é parte de uma geração de artistas que fazem uso dos mais diversos modos do documentário para discutir conflitos sociais e os efeitos da política e da economia no que entendemos como cultura. Nesse movimento relativamente recente de tomada do documental pela arte, já cunhado como Documentary Turn, a fotografia documental tradicional e o próprio cinema estão no centro de uma tendência à contaminação com as linguagens do vídeo, da performance, da arte conceitual, de estratégias discursivas e das redes sociais. Como resultado, o circuito artístico contemporâneo das duas últimas décadas parece fazer convergir, sem grandes problemas, a arte, o pensamento teórico e o ativismo dentro das galerias e museus, hoje já bastante cordiais às projeções em múltiplos canais, às reportagens de found-footage, aos games de inspiração militar e aos mockumentaries conceituais (tipo de filme em que eventos ficcionais são apresentados em estilo de documentário a fim de criar uma paródia).

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Frame do vídeo “How Not To Be Seen. A Fucking Didatic Educational” (2013), de Hito Steyerl

As obras de Hito, no entanto, vão além de uma busca estética pela desconstrução metodológica do gênero documentário, ou de uma procura formal pela ambiguidade entre “fato” e “ficção”, ou mesmo da urgência ética em se distinguir o “verdadeiro” do “falso”. Sua prática percorre os caminhos da dúvida numa espécie de flânerie intelectual que não enxerga diferença entre as instâncias do ‘documental’ e do ‘ficcional’, uma vez que ambas são igualmente questionáveis em sua credibilidade. Com crítica e humor, ela joga com a ideia de que a imagem deve ser tratada como “coisa” cujo corpo e vontade são capazes de se insubordinar à condição de mera amostra da aparência física de uma dada realidade. Seus temas giram em torno desse status das imagens contemporâneas e das políticas que regimentam sua circulação, e é justamente para investigar o impacto desses regimes da imagem sobre conceitos de governabilidade, economia e subjetividade que ela desenvolve uma linguagem de documentário-de-ensaio bem particular, lançando mão de todas e quaisquer tecnologias do presente, de memes a virais do YouTube, da animação em 3-D à estética forense.

Se seus ensaios e filmes parecem estar engrenados numa máquina de pensamento sobre as contradições do mundo – como se abrisse caminho para uma espécie de materialismo histórico do nosso entorno enquanto olhamos para ele –, isso não acontece, portanto, senão por escolhas rigorosas dos displays e processos de feitura e instalação de cada uma de suas obras. Aprofundando-se mais recentemente numa análise das políticas de apresentação do próprio sistema da arte, suas obras vêm assumindo um caráter instalativo quase monumental, testando os limites entre teoria e entretenimento. Em Guards (2012), vídeo de 20 minutos realizado nas salas de exibição do Art Institute of Chicago,  chefes de segurança do museu explicam diante da câmera como protegem as obras de arte mais valiosas da instituição. A narração de suas experiências como policiais armados junto às demonstrações físicas de estratégias de defesa adotadas dentro do cubo branco transforma a imagem do museu num verdadeiro campo de batalha, onde as paredes só se sustentam por conta de um sofisticado aparato de segurança.

Em How Not to Be Seen (2013), vídeo de 15 minutos apresentado na penúltima Bienal de Veneza, Hito parte do argumento de que, se na segunda década dos anos 2000 a ideia de visibilidade é determinada pela alta resolução, então tudo aquilo que escape a tal parâmetro pode se tornar invisível. Para dar forma a tal premissa, a artista adota a estética de um tutorial em que ela mesma aparece diante de um cromakey demonstrando o passo a passo dos modos mais eficazes de se camuflar, ocultar e disfarçar, seguindo as instruções de vozes geradas por computador. À medida que o vídeo progride, aprendemos que em 1996 câmeras digitais que sobrevoavam a superfície da Terra tinham a capacidade máxima de registrar 12m por pixel, o que em dez anos se ampliou para a dimensão de um pé (0,3m) por pixel. No vídeo, ilustrado por figuras dançando com cubos de 0,3m na cabeça, tal informação não surge dissociada da desconfortável lembrança de que, enquanto alvo de ataques de drones norte-americanos, por exemplo, famílias muçulmanas da borda do Paquistão aprendem a se tornar invisíveis para sobreviver.

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Fotografia que integra a série “Mestres de Cerimônia” de Bárbara Wagner

Já em The Tower (2015), uma videoinstalação em três canais desenvolvida para a 9ª Bienal de Berlin, Hito explora o plano de Saddam Hussein de reconstruir a antiga Babilônia, materializado num palácio de dimensões colossais envolto por murais com motivos da Torre de Babel. Entre registros documentais do próprio palácio feitos com o auxílio de um drone e o uso de imagens renderizadas dos painéis dispostos em 360 graus, a obra toma partido das ruínas da arquitetura de um regime para falar de mitologia, vigilância, guerra e geopolítica. Esse caráter de reflexividade, no qual a um só tempo o suporte da obra e a própria ordem social são examinados, é um aspecto distintivo da prática de Hito, cujas armas são o humor, a ironia e o paradoxo. Seu princípio é a contradição, a colisão.

Numa tarde de inverno de 2016 em São Paulo recebo uma mensagem de e-mail com um convite para esboçar um breve perfil de Hito Steyerl na ocasião de sua participação na 32ª Bienal. Aproveito a chance para retomar a conversa suspensa por quase cinco anos e agendo um Skype com a artista que só agora se apresenta pela primeira vez no Brasil. Cortada por falhas de conexão e com a diferença de fuso horário, sua fala calma contrasta com a força da descrição da obra inédita instalada no pavilhão. Hell Yeah We Fuck Die (2016) tira seu título das cinco palavras mais populares em canções faladas em inglês nos últimos dez anos, inscritas no espaço da mostra como volumes de concreto e luz, como um ‘hino dessa década de torturas, guerras por procuração e austeridade’. A instalação alude em forma a um módulo de treinamento de parcour, com barras metálicas que sustentam telas planas em que vemos robôs criados para salvar pessoas em zonas de conflito sendo empurrados e chutados em testes de estabilidade e resiliência. Do lado de fora, em toda a extensão do Parque Ibirapuera, nuvens de jovens portam celulares e se movimentam lentamente em busca de Pokemóns. Lembro da primeira frase que escutei de Hito, então carregada de otimismo e esperança. É esse mesmo o futuro? E se essas pessoas estão lá, onde queremos estar?


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