”Talvez seja difícil de acreditar, considerando-se que sou negro, mas eu nunca roubei nada.” Assim começa The Sellout, de Paul Beatty, que acaba de vencer o Man Booker Prize, mais importante prêmio literário da Inglaterra. Lançado primeiro nos EUA, o romance já havia ganho o National Book Critics Circle Award, além de ter recebido críticas entusiasmadas nos principais veículos do país.
Beatty, de 54 anos, é o primeiro americano a receber o prêmio britãnico. Desde 2014, o Man Booker Prize, que era restrito aos países da Comunidade Britânica, passou a valer para qualquer livro que tenha sido publicado em inglês no Reino Unido. No ano passado, o vencedor foi o jamaicano Marlon James, com A Brief Story of Seven Killings.
O romance de Beatty, que também é professor de escrita criativa na Columbia University, em Nova York, onde mora, se passa numa fictícia cidadezinha semirrural próxima de Los Angeles, chamada Dickens. O narrador e protagonista é um jovem negro chamado BonBon ou simplesmente Me, que acaba na Suprema Corte por defender a volta à segregação nas escolas e ônibus e por manter um escravo “voluntário”, um senhor que insiste em ser sua propriedade para voltar às origens.
O resumo, claro, não deve dar conta das complexidades do livro, mas dá uma ideia de sua proposta: questionar (de forma cômica, niilista, brilhante) o politicamente correto e as boas intenções de multiculturalistas num mundo supostamente “pós-racial”. E também atacar o eterno conservadorismo americano, de brancos e negros. Para Beatty, que tem mestrado em psicologia, passou pela poesia e o hip-hop e é fã de literatura russa e japonesa, está claro que o buraco é mais embaixo e que não se deve baixar a guarda. Não à toa o crítico do New York Times o comparou ao comediante Chris Rock, que recentemente deixou a plateia do Oscar desconfortável com suas geniais tiradas sobre racismo.
Fato é que a literatura negra norte-americana nunca esteve tão forte e em evidência como nos últimos tempos; tempos, diga-se, paradoxais, em que um presidente negro tem altos índices de popularidade ao mesmo tempo em que jovens negros são assassinados pela polícia nos subúrbios pobres do país, e em que um candidato decididamente racista e xenófobo tem reais chances de chegar à Casa Branca. Basta pensar na poeta Claudia Rankine, no ensaísta Ta-Nehisi Coates ou nos romancistas Teju Cole e Colson Whitehead, todos também premiados e, mais importante, também disparadores de discussões que fogem do padrão maniqueísta.
The Sellout foi recusado por 18 editoras no Reino Unido até ser publicado pela pequena Oneworld – coincidentemente (ou não), a mesma que publicou A Brief Story of Seven Kilings. Ou seja, por pouco não esteve apto a receber as 50 mil libras do Man Boker Prize. O romance parece perturbar editores e leitores, no melhor dos sentidos. Para a historiadora Amanda Foreman, que presidiu o júri do prêmio, as melhores obras de ficção “não devem ser confortáveis, já que a verdade nunca é bonita. The Sellout é um desses raros livros que consegue levar a sátira, gênero difícil, nem sempre bem-sucedido, às profundezas da sociedade americana com uma inteligência selvagem que eu não via desde Jonathan Swift ou Mark Twain.”
Deixe um comentário