A exposição coletiva que a galeria Vermelho apresenta em junho/julho deste ano permite refletir não só sobre a relação entre arte e política, mas também – e isso é importante – colocar à prova a potência da arte para atravessar tempos e espaços e ainda assim manter-se atual e com capacidade de afetar o mundo. De imediato, num lance que aponta para a complexidade e especificidade da arte, a mostra indica pistas sobre o vínculo entre arte e política sem deixar entrever que essas constituem duas esferas distintas da práxis humana. Neste caso, a dimensão política pode não estar atrelada à obra, mas sim à perspectiva adotada para exibir e relacionar determinados trabalhos dos artistas. Ou seja, a política, ou outra visão da política, pode nascer também da intencionalidade assumida para montar uma mostra de arte.
A exposição é um acontecimento artístico e político por unir instituição, grupo dirigente e artistas para pensar, analisar e posicionar-se diante da tumultuada e polêmica conjuntura política brasileira decorrente do processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff. Assim, a mostra foi montada com a intenção de apresentar à sociedade e ao campo da arte as inquietações postas pela quebra institucional e, para tanto, montou-se uma plataforma para as falas de 25 artistas, a maioria representados pela galeria, materializada nos diversos trabalhos aí expostos. De um lado, a mostra foi organizada de forma compartilhada, sob a coordenação de Gabriel Zimbardi e Isabela Guimarães; por outro lado, a multiplicidade de artistas, com suas visões e resultados específicos, forma a base estrutural da mostra. Neste sentido, o trabalho EUS, de Carmela Gross, com esta palavra construída por lâmpadas de led, constitui uma boa referência da mostra, uma vez que remete tanto aos sujeitos em ação nas ruas das cidades no meio das multidões mobilizadas quanto ao grupo de artistas expositores nas suas semelhanças e diferenças. Pode-se incluir nesses “eus” os sujeitos que se manifestam nas ruas e, inclusive, as subjetividades que construíram as obras da exposição. Cada artista enquanto um “eu” criador que apresenta seu trabalho para compor um manifesto estético, articulado por um momento de intensa significação política.
Ao se percorrer a exposição e analisar cada trabalho e as relações entre eles percebem-se dois conjuntos de obras. O primeiro é formado por trabalhos produzidos recentemente, em 2016, com referência direta ao acontecimento do processo de impeachment. Eles traduzem uma situação de politização da arte, ao se perceber neles o impacto direto da atual realidade na confecção da obra. Desta forma, indicam a linha da exposição, clarificam a posição crítica da mostra e dos artistas diante dos acontecimentos políticos atuais.
O segundo grupo, majoritário, está formado por trabalhos criados em 1964 e entre 2005 e 2015, portanto anteriores ao processo de impeachment, e fornece a oportunidade de constatar a permanência do valor e da pertinência da arte. Trata-se, portanto, de trabalhos que são resignificados em função de um novo momento – de um outro tempo e outro espaço, para além daqueles em que foram realizados. O potencial da arte está na sua capacidade de adquirir atualidade permanentemente.
A exposição demonstra, então, como um conjunto ativa o outro e como um trabalho ilumina aquele que está próximo. Cada trabalho e toda a exposição deixam perceber sensivelmente o Brasil de agora e transpiram um clima de perplexidade e recusa. E algo importante traz à tona os paradoxos da política, suas ambiguidades e contradições. Se a política pode ser necessária ou uma contingência histórica, ela também é insuficiente e perpassada pela irracionalidade e violência.
Ganha sentido abordar a arte a partir de uma exposição em si quando ela deixa difusa a curadoria e lança luzes sobre os trabalhos, permitindo que eles sim abram canais para a percepção do mundo, permitindo ir além do provável. Neste sentido, em Histórias das Exposições/ Casos Exemplares, organizado por Fabio Cypriano e Mirtes Marins de Oliveira, editado pela Educ, Pablo Lafuente, em entrevista, esclarece:” Então percebi uma coisa: que aquele momento em que a arte entra em contato com o publico é muito definitivo para a arte, talvez um momento mais definitivo do que aquele em que a arte é feita. A determinação de significados, efeitos e implicações da obra é construída nesse momento quando se toma contato com a obra em qualquer situação: em uma exposição, em uma escrita…” Lafuente valoriza o enfoque baseado na exposição enquanto fato relevante na história da arte, pois ela não apenas destaca a presença e significado dos trabalhos, mas também abre as portas para efetivos desdobramentos e acontecimentos da arte. Cada vez que é exposta, em função das particularidades da exposição, a obra ressurge reatualizada.
Fica explicitado ao se percorrer esta coletiva da galeria Vermelho que a intencionalidade de uma exposição, o projeto da sua montagem e as pulsações coletivas criam as condições para as obras se tornarem viventes, ativando novos significados. A exposição demonstra o desejo de deixar-se envolver pelo momento histórico e, nesse caso, reafirma a ideia de pertencimento a um lugar.
A rede de “eus” da mostra que levanta as diferentes e inusitadas possibilidades da dimensão política da arte: Andujar, Braga, Cadu, Cesar, Chaia, Chelpa Ferro, Cidade, Dardot, Dias e Riedweg, Gross, Ianês, Ianni, Komatsu, Longo Bahia, Loureiro, Rolla, Marcelle, Morais, Motta e Lima, Myrrha, Peters, Rennó, Robbio, Tavares e Winter.
Deixe um comentário